As grandes propriedades de terra no Brasil são brancas. Em terras com mais de 10 mil hectares, para quatro produtores rurais brancos há um produtor negro. Já nas pequenas propriedades ocorre o inverso: nos estabelecimentos com menos de 1 hectare, a proporção é de três produtores negros para cada branco. As conclusões são de um levantamento inédito da Agência Pública a partir de dados do último Censo Agropecuário do IBGE, divulgado no final de outubro deste ano. Os dados foram coletados em visitas a mais de 5 milhões de estabelecimentos agropecuários em 2017.
No país todo há mais produtores negros que brancos – são 2,6 milhões de negros produtores para 2,2 milhões de brancos somando-se todos os tipos de propriedades, independentemente do tipo de cultivo ou do tamanho da terra. Contudo, os negros são maioria apenas nas terras que ocupam menos de 5 hectares. Dessa área para cima, os brancos ultrapassam os negros em todas as categorias. A partir de 20 hectares a desigualdade é nítida: quanto mais se aumenta o tamanho da propriedade de terra, menos negros são produtores rurais.
O resultado da desigualdade de distribuição de terra no Brasil é significativo: produtores brancos ocupam 208 milhões de hectares – quase 60% de toda a área das propriedades rurais registradas pelo IBGE. Os negros, mesmo sendo a maioria dos produtores rurais, ocupam menos da metade da área dos brancos – 99 milhões de hectares, ou 28% da área total de estabelecimentos rurais.
Em cinco estados brasileiros, todos os produtores de estabelecimentos com mais de 10 mil hectares são brancos – não há um único negro nesse grupo nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
No Mato Grosso, estado com maior número de fazendas com mais de 10 mil hectares, há cinco brancos para cada negro nesses estabelecimentos. O único estado com mais negros entre os produtores de terras nessas dimensões é o Amapá, em que há oito negros com terras de mais de 10 mil hectares para seis brancos nessas condições.
Herança de uma história colonial e escravista
Esta é a primeira vez que o IBGE traz números sobre raça no Censo Agropecuário, mas eles não surpreenderam a historiadora Wlamyra Albuquerque. Professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), ela avalia que a concentração de grandes terras nas mãos do segmento branco da população é herança direta de um passado escravista e colonial.
De acordo com a historiadora, desde a primeira política de divisão de terras pelo colonizador português – as capitanias hereditárias –, a concessão de áreas foi direcionada aos brancos. Essa divisão, no período colonial, marcaria todo o processo de distribuição das grandes propriedades de terras no Brasil, pontua Wlamyra.
“Existiam, no período colonial, critérios para determinar quem era preto, quem era pardo e quem era branco. Eles trabalhavam com a ideia de pureza do sangue. Estavam na categoria de ‘impuros de sangue’ os índios, africanos e os que não professavam a fé católica, como judeus, inclusive”, explica a professora. “Em diversos momentos, essa categoria foi proibida de ter propriedades.”
Em 1850, o Brasil teve a primeira legislação, após sua independência, para regulamentar a propriedade particular no país, a Lei de Terras. O texto aboliu a concessão de terras do Estado para indivíduos, que ocorreu por meio das sesmarias e estabeleceu a legitimidade da posse por meio da compra.
A pesquisadora Joana Medrado, professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e doutora em história, afirma que o processo não rigoroso de regulamentação da propriedade privada intensificou conflitos. De um lado, fazendeiros se autoproclamaram donos de propriedades; de outro, pessoas escravizadas recém-libertas passaram a reivindicar terras por meio de ocupações consideradas ilegais pelo governo. “Não há um processo de regulamentação realmente cuidadoso. É uma autodeclaração e é óbvio que, neste momento, os mais fortes vencem”, diz a professora.
Uma abolição incompleta
No período após a abolição da escravidão no país, oficializada em maio de 1888 pela Lei Áurea, as pessoas que foram escravizadas não receberam nenhum tipo de reparação nem se buscou atenuar a desigualdade, pontuam as historiadoras.
O movimento abolicionista, lembram, não era unificado e possuía diversas vertentes. Entre elas, houve a discussão sobre regulamentação fundiária e divisão de terras, feita principalmente pelo abolicionista negro André Rebouças. “Quem possui a terra, possui o homem”, escreveu em 1890 na obra Democracia rural brasileira. Ele propunha que as terras devolutas fossem divididas em pequenas propriedades e a produção nessas áreas fosse comprada e subsidiada pelo Estado.
Wlamyra afirma, no entanto, que o plano de Rebouças nem sequer foi cogitado: “Mesmo os abolicionistas liberais não consideraram isso como um plano possível. Nem o Estado monarca, que sustentava a escravidão, nem a República bancaram um plano como esse. Então, a gente não tem, na história do Brasil, nenhum momento em que se tenha colocado em pauta a divisão de terras. Essa concentração de terras e a sobreposição desse dado com o dado racial são o resultado direto de uma estrutura agrária ainda herdeira do escravismo”.
O momento histórico também coincide, explica a historiadora, com a modernização da produção agrícola no início do século 20. “Quando o agronegócio começa a surgir no cenário econômico do Brasil, essas propriedades já estão há séculos garantidas nas mãos de herdeiros”, observa Wlamyra.
“Talvez não haja algo mais estável na sociedade brasileira e na economia do que essa lista de terras dos primeiros colonizadores até os grandes proprietários de hoje. Além do que foi conseguido por grilagem, apropriação de terras indígenas”, continua a professora. “O projeto agroexportador caminha e vai se articulando com uma perspectiva de classe em que jamais essas terras quilombolas poderiam ser tão produtivas [quanto o agronegócio]. É preciso que essa elite agropecuária seja branca para ela caber nos seus próprios projetos e ações de eugenia, inclusive, para perpetuação do poder”, conclui.
No início do século 20, em meio à propagação de ideias nacionalistas e racistas, imigrantes brancos europeus tiveram acesso à terra facilitado, ao contrário dos trabalhadores negros que haviam sido escravizados, destaca a pesquisadora Joana Medrado, da Uneb.
Joana explica que essa disparidade regional ocorre também pelo fluxo territorial das próprias populações negras. “Essas populações negras foram mais inibidas de ocupação nas terras no Sul – onde havia uma forte exploração econômica pela cafeicultura, pecuária e algodão; enquanto, no Nordeste, talvez por conta dessas terras não estarem tão centradas para a economia nacional, houve uma ocupação mais presente, até como forma de resistência”, diz.
Soja e boi são de brancos; pesca e florestas, de negros
O cultivo de soja no Brasil é majoritariamente branco: 88,24% dos produtores de soja do país são brancos, comparados a 9,64% de negros e 0,41% de indígenas. Segundo os dados do Censo Agropecuário, em seguida vêm as fazendas de uva e de fumo, ambas com mais de 84% dos produtores brancos.
O brancos também são maioria no cultivo de café, cana-de-açúcar, criação de bovinos, produção de sementes certificadas e aquicultura em água doce. Por outro lado, negros são maioria no cultivo de cacau, na pesca em água doce, na criação de suínos, caprinos, ovinos e aves, na produção de laranja e cereais e no extrativismo em florestas nativas.
O cultivo com maior proporção de produtores negros é o cacau. De acordo com o IBGE, 22,50% dos produtores de cacau nunca frequentaram escola – para se ter uma ideia, entre os produtores de soja, esse número é de apenas 1,73%. O maior estado produtor de cacau no país é a Bahia.
Para a pesquisadora Joana Medrado, o Estado teria que encontrar saídas institucionais para acolher demandas de todos os modelos de desenvolvimento rural. “O Ministério do Desenvolvimento Agrário [MDA], por exemplo, era fundamental, porque toda a estrutura do governo ligada à agricultura foi aparelhada por grupos de elite, ligados ao agronegócio e a esses grandes projetos econômicos rurais”, defende a pesquisadora. A pasta foi extinta em 2017, durante o governo de Michel Temer. Hoje, as competências do antigo MDA estão concentradas na Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (Seade), que integra o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
“É necessário criar um processo de democratização do acesso à terra para se ter um processo real de abolição da escravidão no Brasil”, finaliza Joana. “Temos que reconhecer que as populações negras, indígenas e os agricultores familiares têm projetos legítimos de desenvolvimento rural. Não é só uma questão de ocupação de terra. É uma luta por um modelo produtivo rural.”
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