*Este é um dos 38 artigos reunidos no livro “Direitos Humanos no Brasil 2020″, organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos com o intuito de trazer reflexões de movimentos sociais e organizações da sociedade civil sobre direitos humanos no contexto da pandemia. A publicação completa você encontra aqui .
Por: Monique Cruz, Raissa Maia, Carolina Diniz, Raissa Belintani,
Natália Damazio, Gustavo Magnata, e Thiago Cury²
Reduzir emergencialmente a superlotação, realizar testagem em massa, garantir acesso à rede pública de saúde e condições mínimas de higiene: apesar de diversos esforços de familiares e da sociedade civil, o estado segue
descumprindo estes compromissos internacionais para impedir o alastramento da Covid-19 dentro das prisões.
O avanço da Covid-19 nas prisões
Para exemplificar o potencial de contaminação da Covid-19 dentro das prisões, indica-se que, entre os dias 15 e 19 de junho, houve testagem em todas as pessoas presas da Penitenciária II de Sorocaba (SP). Na unidade, onde há 2.073 pessoas (77% a mais do que sua capacidade), 747 (ou seja, 36%) estavam infectadas com o vírus. Mesmo após a testagem em massa, a unidade prisional manteve nas mesmas celas superlotadas pessoas que testaram positivo e negativo, em desrespeito com a vida destas pessoas, de servidores e ignorando os protocolos de cuidado já publicados.
Segundo dados colhidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),3 de maio a início de junho de 2020, houve aumento de 2.237% nas taxas de contaminação nos presídios e de, ao menos 288%, dos índices de mortalidade. Os números ainda estão longe de dar conta da realidade já que não há nenhum programa de testes massivos ou sequer significativos no sistema prisional. No que se refere à contagem de casos e à temática da subnotificação, um painel foi lançado pelo Departamento Penitenciário (DEPEN) durante este período sobre presídios.4 Os dados não produzem, por exemplo, informações sobre número de presos com síndrome gripal, essencial para se avaliar a potencialidade da presença da Covid-19 em cada estado, especialmente se for levado em conta a ausência de testes. Estima-se que no pior cenário do vírus, aproximadamente 10 mil presos podem necessitar de acesso a unidades de tratamento intensivo de saúde, levando em consideração os grupos de risco e as faixas etárias.5
A precariedade do acesso à saúde e a Covid-19
Em pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, foi apontado que a tuberculose, doença controlada e de fácil tratamento extramuros, tem incidência 30 vezes maior dentro das prisões.6 O que se gestou assim, pela falta de acesso à saúde e condições insalubres e degradantes, um contingente incontável de presos com comorbidades, como problemas respiratórios, cardiológicos e diabetes, fatores que colocam pessoas nos grupos de risco da Covid-19. Destaca-se que, ao falarmos em acesso à saúde, tratamos não apenas de falta de medicamentos e requisitos mínimos de saneamento, mas também de um déficit abissal de profissionais de saúde e condições dignas.
Apesar da alarmante situação, as poucas ações do governo federal são completamente impraticáveis no cenário prisional nacional, como a Portaria Interministerial dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Saúde nº 7/2020, que prevê medidas de distanciamento social em unidades superlotadas ou protocolos que pressupõem um acesso a profissionais de saúde nos ambulatórios das unidades, cenário completamente diverso do encontrado nas unidades. Vale pontuar, que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), de 2014 e que visava garantir aos presos acesso ao SUS, jamais foi efetivada.
No país, 31% das unidades prisionais não possuem nenhuma cobertura de saúde, segundo dados produzidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)7. No nordeste, 42,7% das prisões estão nesta situação e nas demais regiões variam entre 26 e 30%. Assim, em torno de 456 prisões não têm assistência médica. Quando há presença de médicos, estes muitas vezes vão somente duas vezes por semana. Existe, em média, um médico para cada 687 presos, índice inferior ao acesso da população extramuros que possui um médico para 460.
Além da inércia, as autoridades públicas brasileiras têm, em meio à pandemia, endereçado políticas de retirada ou restrição ainda maior de direitos. A Portaria n. 135 do Ministério da Justiça e Segurança Pública limitou não apenas a entrada de advogados e de visitantes em unidades prisionais federais, mas também o acesso a banho de sol e a atividades de trabalho, lazer e outras, o que foi prontamente replicado nos mais diversos estados da federação. A limitação ao tempo de atividades externas às celas ocasiona violação massiva dos direitos humanos dos presos, que passam a viver em regime absoluto de confinamento, o que aumenta a contaminação por doenças infecciosas. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em comunicado emitido em 17 de abril deste ano, a pandemia não pode servir de justificativa para a violação de direitos humanos assumidos a partir de suas obrigações internacionais.
Subnotificação dos óbitos: afronta ao direito à memória e à verdade
O próprio CNJ reconhece a precariedade de testagem de infecção pelo vírus, especialmente no contexto prisional, indicando o possível não diagnóstico de óbitos de pessoas presas pela ausência de testes da Covid-19. Neste cenário, ainda se vê retrocessos severos em relação ao direito à memória e à dignidade daqueles que vêm a óbito. Em um país em que o desaparecimento forçado em presídios faz parte da realidade local, o risco de subnotificação de óbitos e de encobrimento de mortes violentas durante o período pandêmico torna-se ainda mais agudo. Em plena contrariedade a protocolos básicos de perícia, como Protocolo de Minessota, foi editada a Resolução SEAP/SEPOL nº 10 no Rio de Janeiro. A resolução passou a responsabilidade sobre declarações de óbito de presos para os médicos da
própria administração penitenciária, retirando dos IMLs tal competência.
Tal ação vem gerando um uso massivo da categoria “causa indeterminada” para determinar o motivo pelos quais presos estão morrendo. Destaca-se uma duplicação do número de óbitos no sistema, que, em 7 de maio, já chegava a 82. Destes 82, 58 vieram a óbito entre março e maio (70,73%), ou seja, duplicou-se a taxa de mortalidade dos presos se comparado aos índices encontrados em janeiro e fevereiro. A situação se torna ainda mais crítica com a constatação do Departamento Penitenciário Nacional de que dentro dos muros do cárcere a letalidade da Covid-19 é cinco vezes a daquela que aflige a sociedade.8 A primeira morte dentro dos estabelecimentos prisionais ocorreu nove dias após o primeiro caso confirmado, enquanto na população em geral ocorreu 20 dias após. É urgente que medidas sejam adotadas para reverter este quadro sob pena de ser impossível a recuperação da memória das vítimas desaparecidas em prisões durante a pandemia da Covid-19.
Manutenção do encarceramento em massa: entraves a pedidos de liberdade
A superlotação das unidades prisionais brasileiras é um elemento agravador para a vida das pessoas presas e dos profissionais do sistema prisional. O Brasil possui déficit de cerca de 303 mil vagas, acarretando 171,62% de taxa de ocupação no Sistema Penitenciário. Conforme a Organização Mundial de Saúde, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Organização das Nações Unidas, a única medida eficaz para a real contenção da doença é a redução emergencial do encarceramento. No entanto, no Brasil, essa política é fortemente atacada. O Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 62, que, dentre outras medidas, orienta magistradas/os a: i) reavaliarem todas as prisões provisórias de pessoas que se enquadrem no grupo de risco à contaminação pela Covid-19, presas há mais de 90 dias, ii) determinar a saída antecipada de pessoas do grupo de risco ou que estejam em unidades superlotadas, iii) decretarem novas prisões apenas em casos de crimes com violência ou grave ameaça.
Uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo levantou a proporção entre prisões e liberdade nos casos assistidos por seus defensores em atuação no Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital (DIPO) durante os três primeiros dias de vigência da Recomendação nº 62: entre os dias 17 e 19 de março de 2020, foram apresentados 199 autos de prisão em flagrante, nos quais houve concessão de liberdade provisória ou relaxamento da prisão em apenas 57 casos. Tal número se equipara ao período pré- pandemia. Outro levantamento da Defensoria Pública de São Paulo demonstra o cenário de manutenção do superencarceramento: dentro de um universo de 25,8 mil processos que tiveram movimentação, apenas 756.9 pessoas presas pertencentes a grupos de risco para a Covid-19 tiveram alvará de soltura expedidos. Dados do Instituto Pro Bono mostram que de 507 Habeas Corpus impetrados, apenas 25 foram concedidos. No mesmo sentido, caminham as decisões de Habeas Corpus coletivos, cuja negativa vem sendo a regra, apesar dos esforços de diversas defensorias como Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro.
Esta postura refratária à implementação mínima de salvaguardas ao grave risco à saúde e vida dos presos é reproduzida tanto nas primeiras instâncias, como no próprio Superior Tribunal de Justiça e Superior Tribunal Federal. O mesmo se observa quanto à situação de mulheres gestantes, lactantes ou mães com filhos de até 12 anos, em que a liberdade ou, no mínimo, a prisão domiciliar deveria ser a regra. Segundo o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), essa garantia tem como objetivo proteger o direito do nascituro a uma gestação distante do ambiente carcerário e da criança a ter proximidade com a mãe em uma fase tão crítica de seu desenvolvimento. No entanto, apesar das expressas previsões legais e do enquadramento como grupo de risco à contaminação pelo coronavírus, o STJ continua a manter até mesmo mulheres gestantes, puérperas e lactantes presas durante a pandemia que se alastra pelas unidades prisionais.
Incomunicabilidade: aprofundamento das violações de direitos
A incomunicabilidade nas prisões, que já vinha sendo utilizada de forma ilegal e arbitrária como política de Estado, com a declaração da pandemia, se tornou uma das principais políticas de combate à Covid-19 nas prisões, pela já mencionada Portaria nº 135 do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Embora o discurso tenha sido de isolamento temporário, a prática é de rompimento total de comunicação e contato externo das pessoas presas, uma vez que estes são praticamente apenas realizados por meio das visitas pessoais de familiares, advogados e defensores públicos. Ressalta-se que a incomunicabilidade viola as Regras de Mandela número 56 e 58.
No cenário de uma pandemia é ainda mais necessário haver a transparência das informações e a constância com que a mesma ocorre, sob o risco de ampliar o medo e a angústia nas pessoas que têm seus familiares em situação tão desfavorecida. É certo que a proibição das visitas é acompanhada da ausência de transparência sobre a situação de saúde e, por vezes, da própria localização das pessoas presas. Nesse sentido, os Mecanismos de Prevenção à Tortura no Brasil e o CNJ construíram documentos orientando e recomendando a criação de espaços interinstitucionais que
possam lidar com a dramática situação dos locais de privação de liberdade no Brasil e tentar impedir o cenário generalizado de incomunicabilidade. Contudo, vários são os relatos de que as famílias não falam ou não têm informações dos seus entes há meses. Muitos estados têm apostado no precário e lento sistema de entrega de cartas ou nas visitas por videoconferência para a comunicação entre presos e familiares.10
Relatos de familiares dão conta, contudo, de que as cartas têm demorado mais do que o usual para ser entregues e, em alguns casos, sequer o são. As videoconferências, por outro lado, segregam e vulnerabilizam ainda mais uma população que já sobrevive às desigualdades do país. Para garantir um máximo de cinco minutos de contato virtual, famílias tiram recursos do seu próprio sustento para arcar com planos de dados e outras exigências do poder público. Tirar o direito à comunicação com seus familiares, advogados e organizações representativas é colocar em risco o direito à vida das pessoas privadas de liberdade. A falta de informações fidedignas, desencontradas e com pouca comprovação, aponta para a omissão de cuidado com a Covid-19 dentro das prisões. As denúncias de violações de direitos eram, em sua maioria, realizadas aos familiares, durante as visitas, a defensores, em atendimento presencial ou mesmo durante assistência religiosa.
Embora alguns estados já divulguem o planejamento de reabertura e retomada do comércio, restaurantes, escolas etc., condicionando determinadas atividades a índice de contágio e óbitos, não há, em nenhum dos planos até agora publicizados, menção a uma estratégia de retomada das visitas por familiares em unidades prisionais. Seguindo a lógica da incomunicabilidade, especialmente grave é a posição adotada pelo DEPEN segundo resposta ao ofício enviado à Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro em 29 de abril, sobre a aplicação de fundos para sanitização das unidades. No documento, ao explicar sobre os possíveis usos do fundo emergencial para Covid-19, destaca-se que parte do repasse a ser realizado aos estados pode ser utilizado para aquisição de armas menos letais. O DEPEN prevê a possibilidade de que se utilize de violência institucional para romper com possíveis situações de tensionamento que advenham desse isolamento. Neste sentido, pune-se ainda mais os presos por uma política que a priori já se coloca frontalmente contrária aos padrões mínimos de direitos humanos.
Conclusão
O Estado brasileiro, diante da pandemia, vem baseando sua ação no negacionismo, com a subnotificação de casos, a vedação ao direito à saúde, a manutenção do encarceramento em massa e a incomunicabilidade das pessoas presas, fluxos que produzem o agravamento da tortura, de execuções e de desaparecimentos forçados. O Estado deve proteger vidas e a ele é proibido decretar, generalizada e sistematicamente, a morte cruel das pessoas privadas de liberdade, marcadas pelo desrespeito de seu direito à vida, à saúde, à integridade física, ao acesso à justiça e à memória e verdade.
Notas:
1 Esta é a versão resumida do Apelo Internacional enviado à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos por 213 entidades e movimentos, denunciando o estado brasileiro pelo agravamento do colapso nas prisões com o avanço da pandemia da Covid-19.
2 Monique Cruz, Justiça Global; Raissa Maia, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Carolina Diniz, Conectas Direitos Humanos; Raissa Belintani, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; Natália Damazio, Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro; Gustavo Magnata, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Thiago Cury, Núcleo Especializado de Situação Carcerária de São Paulo.
3 Relatório Conselho Nacional de Justiça, atualizado em 13/07/2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2020/07/Monitoramento-Semanal-Covid-19-Info-15.07.20.pdf.
4 Ministério da Justiça divulga números subnotificados e casos da Covid nos presídios. Disponível em: https://ponte.org/ministerio-da-justica-divulga-numeros-subnotificados-de-casos-de-covid-nos-presidios/.
5 Coronavírus: pior cenário, 10 mil presos podem precisar de UTI no Brasil. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/04/coronavirus-presos-infectados-subnotifcacao-si stema-prisional-do-brasil.htm.
6 Presídios têm 30 vezes mais casos de tuberculose: Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/presidios-tem-30vezes-mais-casos-de-tuberculose.
7 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/31-das-unidades-prisionais-do-pais-naooferecem-assis tencia-medica.shtml?origin=folha.
8 Letalidade do coronavírus entre presos brasileiros é o quíntuplo da registrada na população em geral. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/letalidade-do-coronavirus-entre-presos-brasileiros-e-o-quintup lo-da-registrada-na-populacao-geral.shtml.
9 Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=44626. Acesso em 10 ago. 2020.
10 Covid nas prisões: angústia, falta de informação e violação de direitos. Disponível em: https://midianinja.org/news/covid-nas-prisoes-angustia-falta-de-informacao-e-violacao-de-direitos/.
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O post “O agravamento das violações de direitos humanos no sistema prisional¹” foi publicado em 10th December 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC