Fabiano José de Souza até tentou negar , mas não colou. O novo chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe não apenas apoia o rebaixamento da Unidade de Conservação (UC) para a categoria de Área de Proteção Ambiental (APA), como fez um abaixo-assinado com esta finalidade. O documento, disponível na internet, foi criado em 23 de setembro de 2017 e conta com 273 assinaturas. No texto, em que tenta convencer possíveis signatários, Souza defende a liberação das atividades de pesca artesanal, pecuária e silvicultura dentro da UC, assim como a instalação de projetos de energia eólica. “No Rio Grande do Sul, as medições de ventos indicam que as melhores áreas encontram-se justamente na região de influência do Parque Nacional da Lagoa do Peixe”, afirma. A reportagem solicitou ao ICMBio uma entrevista com Souza, mas não obteve resposta.
A Lagoa do Peixe está entre o mar e a Lagoa dos Patos, no litoral sul do Rio Grande do Sul, abrangendo os municípios de Tavares, Mostardas e São José do Norte. Por ser um Parque Nacional, em tese não poderia ter moradores, propriedades privadas nem exploração econômica. Bem diferente da APA – o tipo menos protegido de UC – que permite todos esses usos. A pressão pelo rebaixamento do Parque Nacional da Lagoa do Peixe sempre foi grande, mas aumentou em 2019 com o governo Bolsonaro e uma dança das cadeiras na chefia da unidade. Souza é a terceira pessoa a assumir o cargo em oito meses. O primeiro a cair foi Fernando Weber, exonerado no final de abril após uma saia justa com o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em visita ao Parque, Salles criticou os servidores do ICMBio e foi aplaudido por pescadores e pecuaristas. A substituta foi Maira Santos de Souza, agrônoma de 25 anos que trabalha nas lavouras de arroz e soja da família. Ela foi indicada pelo deputado deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, que apoia a transformação em APA. Maira de Souza ficou no cargo por três meses, até ser demitida a pedido do Ministério Público Federal (MPF), que entendeu que ela não tinha capacitação para o cargo. O novo chefe, o biólogo Fabiano José de Souza, também foi indicado por Moreira. Ele trabalhou no parque entre 2002 e 2016, mas nunca em atividades de coordenação, até ser demitido. O conturbado ano de 2019 terminou com um projeto de lei pelo rebaixamento do parque sendo protocolado pelo senador gaúcho Luís Carlos Heinze (PP).
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe foi criado em 1986, com o objetivo principal de proteger as aves migratórias. Por misturar ecossistemas de água doce, salobra e salgada, a área abriga uma grande variedade de microorganismos. Um verdadeiro banquete para as aves que chegam exaustas, vindas do Ártico. “Algumas espécies, como o maçarico de papo vermelho, param na lagoa para se alimentar após uma jornada de 6 mil km, sem parar”, explica Juliana Bosi de Almeida, doutora em ecologia e gerente de projetos da SAVE Brasil. Alguns animais ainda seguem viagem até a Patagônia, enquanto outros ficam por ali mesmo, juntando energia para a viagem de volta. Além das 35 aves migratórias, há cerca de 230 espécies que vivem o ano todo na Lagoa do Peixe.
Sérgio Brant, servidor aposentado do ICMBio, participou da delimitação do parque no anos 1980, e conta que sempre houve resistência de políticos e moradores. “Sempre houve uma aversão à primeira vista, nunca havia muita disposição para conversa”, lembra. Os mais inconformados eram os pecuaristas, que teriam suas terras desapropriadas, e os pescadores artesanais, cujo principal sustento é a venda do camarão rosa. 34 anos depois, nenhum desses impasses está resolvido. A desapropriação avança a passos de tartaruga, de modo que muitos proprietários continuam criando gado no parque, o que é proibido em áreas de proteção integral. Luiz Agnelo é presidente da Associação dos Proprietários das Terras do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, e afirma que há cerca de 500 fazendas dentro da UC. Ele argumenta que a presença de agricultores e pescadores na Lagoa do Peixe é muito anterior ao Parque, e faz parte da história da colonização açoriana no Rio Grande do Sul. Agnelo não acha que a transformação em APA iria gerar degradação ambiental: “Se fosse transformada em APA, com fiscalização e monitoramento, bonitinho, ficaria só o pescador artesanal, […] e a pecuária sustentável. Porque a carne do gado daqui desta região tem um sabor diferenciado”, explica.
Assim como os pecuaristas, os pescadores também seguem no Parque. Para evitar uma retirada traumática, nos anos 1980, a administração decidiu permitir a permanência de pescadores antigos, e proibir a entrada de novos. A ideia era que aos poucos estas pessoas fossem morrendo ou abandonando a atividade, e ao final de algumas décadas não houvesse mais pesca na Lagoa do Peixe. Por algum tempo, a estratégia funcionou. O número de pescadores, que girava em torno de 230 no ano 2000, havia caído para 150 em 2017. Mas em 2018 a pressão aumentou, e o ICMBio acabou cedendo. Novas autorizações foram concedidas, e hoje há 202 pessoas autorizadas a pescar dentro do Parque Nacional. Os termos de compromisso firmados com o ICMBio têm validade de seis anos, o que preocupa Jair Joaquim Lucrécio, presidente da Colônia de Pescadores Z11, da Lagoa do Peixe. “Com a transformação em APA a gente teria a garantia de que daqui a alguns anos não vão tentar nos tirar daqui”, afirma. Ao mesmo tempo, ele não quer que a pesca seja aberta para pessoas de fora: “Eu acho quem deveria poder pescar ali é o pessoal da região. É uma lagoa muito pequena, se colocar todo pessoal não tem condições”.
Muita gente se solidariza com as famílias que tiram o sustento da Lagoa do Peixe. Mas, segundo Brant, a atividade destas duas centenas de pessoas prejudica quem depende da pesca no resto do litoral gaúcho. “A Lagoa do Peixe funciona como um berçário. O camarão entra como larva na lagoa, se alimenta e cresce ali. Depois, em tese, ele iria sair para repovoar o litoral e outras grandes lagoas, como a própria Lagoa dos Patos”, explica. Justamente por ser tão rica em camarão, a Lagoa do Peixe desperta o interesse de vários grupos de pescadores. Alguns vêm de Santa Catarina para pescar irregularmente no local. “Enquanto isso, os pescadores locais querem manter uma reserva de mercado. Na verdade nenhum desses grupos deveria estar ocupando a área. E nada foi feito nos últimos anos para se chegar a uma solução e fechar a pesca no parque, como a lei determina”, explica Brant.
Complexo Eólico quer se instalar em área de aproximação das aves
Ao defender o rebaixamento do Parque, políticos gaúchos como Alceu Moreira e o Luis Carlos Heinze costumam usar como justificativa a sobrevivência dos pescadores e o direito à terra dos pecuaristas. Mas há outros interesses por trás da recategorização do parque. Como o próprio Souza destacou em seu abaixo assinado, os ventos tornam a região propícia para a instalação de usinas eólicas. O Mapa Eólico do Rio Grande do Sul, produzido pelo governo do estado, afirma que a costa ao longo da Lagoa dos Patos – onde fica o Parque Nacional – tem ventos médios anuais de 7.0 a 8.0m/s, o que torna a região “promissora para implantação de usinas eólicas de grande porte”.
A 40 quilômetros da Lagoa do Peixe, o Complexo Eólico Ventos da Vista Bela obteve em janeiro a licença prévia da Fepam, órgão de licenciamento ambiental do estado. O projeto é do presidente do Sindicato Rural de Mostardas, Domingos Antônio Velho Lopes, que pretende instalar em sua propriedade 16 aerogeradores capazes de produzir 98,7 megawatts ao custo de R$ 400 milhões. O projeto foi considerado de baixa complexidade pela Fepam, e por isso não houve exigência de Estudo de Impacto Ambiental nem de Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA). Mesmo assim, por sete anos os técnicos do Parque Nacional vinham vetando a instalação do empreendimento. Apesar de estarem fora do parque, as turbinas ficam em uma área de aproximação e alimentação das aves migratórias. “É uma área onde elas ficam levantando voo e pousando com muita frequência, e esse é o momento em que há maior probabilidade de impacto com as pás dos aerogeradores. A gente pode comparar com o entorno de um aeroporto, onde há todo um controle na altura dos prédios, na iluminação, etc”, explica Almeida.
Mas em novembro o ICMBio mudou de ideia, e decidiu que não iria mais interferir no processo de licitação. O Ministério Público Federal (MPF) questionou a mudança de postura do órgão, que se manifestou através de um ofício. No documento, Marledo Egídio Costa, coordenador da regional sul do Instituto Chico Mendes, afirma que o projeto “não é passível de autorização para o licenciamento ambiental do Instituto Chico Mendes, uma vez que o mesmo não foi considerado de significativo impacto ambiental pelo órgão licenciador”. Mas Costa também lembra a resolução 462 do Conama, segundo a qual empreendimentos eólicos que estejam localizados em áreas regulares de rota, pousio, descanso, alimentação e reprodução de aves migratórias não podem ser considerados de baixo impacto. “Tal alerta se faz necessário devido ao fato de que a localização do empreendimento coincide com tais rotas segundo o documento supramencionado”, conclui.
A Fepam reforça que a determinação da forma de licenciamento cabe órgão estadual, mas que após a manifestação do ICMBio decidiu exigir estudos específicos sobre aves migratórias como condicionantes à emissão da Licença de Instalação. Procurado pelo ((o))eco, Domingos Antonio Velho Lopes preferiu não se manifestar. Já o Procurador da República, Cláudio Terre do Amaral, afirma que o MPF deve cobrar da Fepam a paralisação do processo de licenciamento e a realização do EIA-RIMA.
Para Almeida, um dos maiores riscos do rebaixamento para APA é que este tipo de empreendimento se instale com mais facilidade não só no entorno, como dentro da área do Parque. “A aves migratórias não têm barreiras. A gente pode proteger todas a áreas importantes para o maçarico do papo vermelho, mas se a gente perder a Lagoa do Peixe, a gente vai ter uma queda muito grande na população. E uma população que já é pequena”.
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