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Há um ano, a Agência Pública antecipou que os familiares de mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar haviam solicitado ao ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que fora extinta pelo ex-presidente e fã de torturadores Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 2022.
Na ocasião , a entrada da Pública na reunião, realizada no auditório do ministério entre 150 representantes das famílias e Almeida, foi vetada pelo ministério, muito embora familiares tivessem convidado este jornalista. O ministério informou naquele dia que “tem trabalhado intensamente para a reinstalação da CEMDP, tomando todas as medidas cabíveis para que isso ocorra e tratando o caso com máxima prioridade”. Disse ainda que o “processo está, neste momento, na Presidência para decisão”.
Um ano se passou e, até a tarde de 4 de março, quando fechei esta coluna, a CEMDP não foi reinstalada.
Ao longo de um ano, Almeida não recebeu a Pública para falar sobre a CEMDP ou qualquer outro assunto, apesar dos insistentes pedidos – no mesmo período, o ministro concedeu inúmeras entrevistas aos mais diversos veículos de comunicação. Em um café da manhã promovido pelo ministério entre o ministro e jornalistas no dia 2 de fevereiro de 2024, a Pública, que há 13 anos realiza uma cobertura sistemática sobre o tema dos direitos humanos, não foi convidada.
Escolhas são escolhas, e o ministério aplica os seus próprios critérios de comunicação, incluindo a decisão sobre quais veículos e jornalistas têm a oportunidade de entrevistar o ministro. Mas é claro que esse silêncio retumbante me chamou muito a atenção desde o começo.
Sem acesso à reunião dos familiares de mortos e desaparecidos na ditadura, pedi, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a íntegra do áudio do encontro. O ministério se recusou a divulgar as falas dos familiares e só cedeu as declarações do próprio ministro e de um subordinado, o ex-deputado Nilmário Miranda (PT-MG). Só a palavra oficial. O ministério alegou que não tinha autorização dos familiares para divulgar suas declarações.
É um argumento estranho. O pedido via LAI não foi nem poderia, já que não se destinava aos familiares, submetido aos próprios participantes. Configura também um precedente perigoso. Se a moda pega, nunca mais saberemos o que banqueiros, empresários e políticos dizem às autoridades do Executivo em reuniões que ocupam servidores e prédios públicos durante audiências de interesse público. Basta que esses convidados decidam vetar a divulgação das suas próprias palavras.
Por que tanto esmero na hora de proteger as manifestações dos familiares durante a reunião? Esse comportamento do ministério só adicionou mais dúvidas.
Em abril de 2023, durante um café com jornalistas, a Pública indagou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o futuro da CEMDP. Ele respondeu que estava aguardando chegar em suas mãos uma minuta de decreto a ser enviada por Almeida. Observou, porém, que tal documento deveria ser “consistente” para que ele o assinasse.
Assim se criou um ruído, para dizer o mínimo: o ministério disse que o processo estava na Presidência e Lula afirmou que aguardava a minuta do decreto. O fato que importa a todos que se interessam pelo assunto é que a CEMDP não foi recriada.
Em junho passado, apontei nesta coluna a recriação da CEMDP como uma de três medidas que o governo federal já poderia ter adotado desde janeiro de 2023. Nenhuma saiu do papel até hoje.
As coisas estavam nesse pé – ou seja, pé nenhum – quando, na semana passada, Lula recebeu a Rede TV! para uma entrevista exclusiva . Indagado sobre como seu governo iria lidar com a efeméride dos 60 anos do golpe de 1964, no próximo dia 31, Lula explicou:
“Eu, sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente”.
A declaração levanta uma possível explicação política sobre a não recriação da CEMDP. Mas, infelizmente, Lula não foi abordado diretamente sobre esse tópico.
De qualquer forma, as peças, quando olhadas em conjunto, se encaixam. É óbvio que um presidente da República não precisa ficar esperando indefinidamente que lhe entreguem uma proposta de decreto. Basta exigir ao ministro a apresentação do documento em um determinado dia. Nesse assunto, o poder presidencial é tremendo porque há toda uma legislação bastante sólida que ampara uma recriação da CEMDP. Até ser extinta, em 2022, a CEMDP existiu por 27 anos, inclusive nos dois mandatos do próprio Lula (2003-2010). Resta esperar que a decisão tenha sido adiada para os próximos dias a fim de marcar os 60 anos da ditadura, mas não há nenhuma certeza.
A fala de Lula gerou a reação de uma coalizão formada por mais de 150 organizações não governamentais, incluindo o Instituto Vladimir Herzog e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Uma nota lembrou que tratar do golpe “não é remoer o passado, é discutir o futuro”.
Pelo menos uma pessoa gostou da declaração de Lula, vejam só, justamente o general da reserva e senador Hamilton Mourão, que tem como declarado herói o falecido Brilhante Ustra, o ex-comandante do DOI-Codi em São Paulo, no qual foram assassinadas pelo menos 45 pessoas. Mourão disse que Lula “está certo” e que 1964 “pertence à história ”. “Faz 60 anos. Morreu o assunto.”
Mourão é um poço de contradição. Nos últimos anos, ele e sua corrente política, a extrema direita, repetidamente mencionaram de forma positiva o golpe de 64 e a ditadura que se seguiu. Em 2018, Mourão também chamou Ustra de “herói”. Seu parceiro político Bolsonaro recebeu em audiência um dos militares mais acusados de violação de direitos humanos no regime militar, o major Curió.
Pelo que se conclui, até a posse de Lula o assunto estava bem vivo, mas agora Mourão quer vê-lo morto. Puro casuísmo.
A relação dos governos Lula com o tema dos mortos e desaparecidos pela ditadura é problemática há muitos anos, desde o primeiro, em 2003, e lá se vão 20 anos. Vale lembrar que a Comissão Nacional da Verdade só foi instalada pela sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2012. Em 2003, familiares dos mortos e desaparecidos disseram em nota que o governo Lula I trabalhava para “o acobertamento de crimes” da ditadura.
Dois anos depois, em 2005, Suzana Lisboa, uma das mais combativas e reconhecidas defensoras dos direitos dos familiares dos mortos e desaparecidos, decidiu deixar a CEMDP. Ao jornal O Globo, Lisboa explicou : “O pouco poder que tínhamos foi tirado. A comissão ficou capenga. Não havia condições de permanecer. O governo não abriu os arquivos da ditadura, não esclareceu as mortes e os desaparecimentos, quem matou, como morreram, onde foram enterrados e não puniu os responsáveis”.
Não é preciso refletir muito para encontrar as inúmeras razões pelas quais um presidente da República deve se preocupar com o passado, especialmente com o passado dramático como o de 1964, quando a direita varreu a democracia para debaixo do tapete. Em 2024, a principal razão é entender que a extrema direita tentou, em 8 de janeiro de 2023, um novo março de 1964.
A realidade demonstrou que falar sobre o golpe de 1964 é extremamente atual e necessário. E olhar para o passado não impede ninguém de tocar o país para a frente. Pelo contrário, antecipa as armadilhas da caminhada.
Fonte
O post “Nos 60 anos do golpe militar, “remoer o passado” é alerta sobre o presente” foi publicado em 06/03/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública