Nesta época de tantas notícias ruins para a conservação e para tudo o mais, com a pandemia e o desastroso anti-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, passou quase despercebido no Brasil o fim da vida de uma das pessoas mais importantes para a conservação da biodiversidade do planeta: Michael Soulé.
Sim, prefiro pensar nisso como o fim da vida, e mais do que chorar sua morte, celebrar a vida rica e maravilhosa que ele teve. Soulé, que foi um jovem nerd apaixonado por bichos e plantas, o diretor de um centro Zen Budista em Los Angeles, e um brilhante cientista, era um homem simples, que não gostava de aparecer muito. Mas ele, mais que qualquer outra pessoa, foi quem criou a Biologia da Conservação, que hoje fornece muitas das bases científicas mais valiosas para nossa luta pela biodiversidade do planeta.
Michael Soulé nasceu em San Diego, na Califórnia. Quando garoto passeava pelos canyons bem conservados que ainda rodeavam a cidade, encontrava invertebrados marinhos e lagostas na linha entre marés no litoral, e até criava cobras em casa, sob o olhar tolerante dos pais. Compartilhava esses interesses com amigos da mesma idade: “era um grupo de garotos meio doidos pela natureza que, eu acho, hoje em dia seriam chamados nerds”, como diria ele depois. Foi então um caminho natural que o jovem Michel fosse cursar biologia, ali mesmo no San Diego State College. Logo mostrou um talento muito acima da média, e seguiu para fazer seu PhD na Stanford University, um pouco mais ao norte na Califórnia e uma das melhores Universidades do mundo. Seu orientador foi Paul Ehrlich, um dos maiores ecólogos de sua geração.
Ao terminar o PhD, Michael foi professor por alguns anos numa Universidade em Malawi, na África – uma experiência de vida valiosa e que alargou suas perspectivas da conservação. A seguir, voltou para casa ao conseguir uma tenure – uma posição estável de professor – na prestigiosa University of California at San Diego. No sistema universitário norte-americano, tenures são raras e só são oferecidas a professores consagrados ou de excepcional brilhantismo. Naquela época, pelo final dos anos 70, ao se interessar tanto pela genética como pela ecologia dos processos que levavam espécies à extinção, Soulé já estava tecendo a síntese de ideias que levaria à Biologia da Conservação. Uma carreira brilhante parecia estar se abrindo diante dele – mas, no seu íntimo, algo não estava bem.
Por um lado, a competitividade e o estresse do ambiente acadêmico, a pressão por produzir artigos, estavam começando a pesar insuportavelmente nos ombros do jovem prodígio; era um caso típico de “burning out”, como se diz na ciência. Por outro lado, ele estava assistindo, dia após dia, à destruição daqueles maravilhosos ambientes naturais à volta de San Diego que o tinham atraído à Ecologia. “Eles estavam pavimentando o paraíso e transformando-o num estacionamento (…) Isso provavelmente cria uma angústia – em mim criou – uma angústia e uma preocupação mais profundas que qualquer outra coisa”. Então, para surpresa geral, Michael Soulé renunciou à sua tenure e se demitiu da UC San Diego.
Soulé foi então para o Zen Center, um centro de estudos budistas em Los Angeles. Quando ouvi falar pela primeira vez dessa fase, imaginei que ele tinha feito uma mudança radical em sua vida, trocando o ritmo intenso da ciência por uma vida tranquila de meditação e mantras. Isso certamente foi parte da história – Soulé nunca escondeu de ninguém que era adepto do Zen Budismo – mas na verdade a quebra não foi tão absoluta assim. No Zen Center, Soulé não só dirigiu um centro de estudos sobre o Budismo, mas também manteve uma ótima produtividade científica, entre outras coisas editando dois dos primeiros livros sobre Biologia da Conservação (em colaboração com outros autores). A meditação e os mantras não parecem ter atrapalhado muito, talvez até pelo contrário.
Alguns anos depois, uma nova reviravolta. Sentindo falta da vida acadêmica e um papel mais ativo na conservação, Soulé largou o Zen Center e tentou voltar à Universidade. A esta altura, porém, depois de largar uma tenure em San Diego, ele já não era mais visto simplesmente como um jovem prodígio, mas também como uma figura um pouco estranha e no mínimo pouco confiável. Assim sendo, teve que recomeçar bem mais de baixo. De início, a única coisa que conseguiu foi uma posição não paga (!) de pesquisador assistente no laboratório de outro talentoso ecólogo, seu xará Michael Gilpin, ali mesmo na UC San Diego. Era por volta de meados dos anos 80. Foi lá que o destino bateu em sua porta – ou melhor, tocou em seu telefone, com uma chamada da distante Austrália.
Alguns anos antes, Ian Franklin e o próprio Soulé tinham convergido, por raciocínios diferentes, para a mesma “regra” simples de que o número mínimo para que uma população fosse “viável” – isso é, pudesse continuar existindo – seria de 50 indivíduos. Isso seria o mínimo absoluto para que a população não sucumbisse ao endocruzamento, ou seja, aos problemas genéticos causados por cruzar com parentes demasiadamente próximos. Então, alguém telefona para Soulé no laboratório de Gilpin, e se identifica como um pesquisador australiano. Ele (Soulé) certamente tinha ouvido falar do grande furacão por lá, e devia saber daquele papagaio endêmico e ameaçado de lá. Pois bem, o dr. Franklin e o próprio Soulé tinham dito que 50 era o mínimo necessário para uma população ser viável, e só tinham restado 48 papagaios. Havia alguma esperança, ou eles deviam voltar seus limitados recursos para outra coisa?
Esta história foi depois contada por Gilpin no saboroso artigo “Quarenta e oito papagaios e as origens da Análise de Viabilidade de Populações”, na revista Conservation Biology. Gilpin conta que ouviu Soulé dizer ao telefone uma frase que depois ficaria célebre – “Não há casos sem esperança, apenas pessoas sem esperança” – e desligar o telefone com uma óbvia frustração por não ter conseguido dar uma resposta melhor. Dessa conversa frustrante é que teria então nascido a Análise de Viabilidade de Populações (AVP). Essa é uma técnica de modelagem (ou uma família de técnicas) que visa estimar a probabilidade de extinção de uma população num prazo determinado no futuro, com base nos parâmetros demográficos e genéticos daquela própria população, estimados no campo. Isso permitiria, por exemplo – os valores são hipotéticos – estimar que aquela população com 48 papagaios hoje teria uma probabilidade de 70% de sobreviver (e aumentar) nos próximos 100 anos (para imenso alívio do colega australiano).
O resto é história. Pouco depois, Soulé voltou a conseguir uma posição acadêmica sólida, na University of Michigan. A AVP foi desenvolvida por ele, Gilpin, Mark Shaffer e outros pioneiros nos anos seguintes, e hoje milhares dessas análises são realizadas todo ano ao redor do mundo. Mas o impacto de AVP para o desenvolvimento da ciência talvez tenha sido maior ainda que sua importância prática: ao reunir a ecologia e a genética para entender a extinção, a AVP foi um dos marcos iniciais da Biologia da Conservação. Afinal de contas, a própria essência dessa nova ciência era a interdisciplinaridade: ela fazia uma admirável síntese de diversos conhecimentos da ecologia, da genética, do manejo da vida silvestre, da biologia evolutiva, da biogeografia de ilhas, da biologia molecular e de outras disciplinas, todas unidas pelo objetivo comum de fornecer uma base científica para a conservação da biodiversidade.
Nos anos seguintes, além de escrever ou editar vários dos livros seminais da Biologia da Conservação, Soulé foi fundador da Society for Conservation Biology em 1985, e da revista Conservation Biology, a primeira dedicada especificamente ao tema, em 1987. Muito dessa história é maravilhosamente bem contada no livro “A Canção do Dodô”, de David Quammen, que foi fonte de várias informações apresentadas aqui. Embora a criação da nova disciplina tenha sido – como costuma acontecer em ciência – um processo complexo no qual muitas pessoas contribuíram, Soulé costuma ser reconhecido, com toda justiça, como o pai da Biologia da Conservação. Essa disciplina (ou multidisciplina), base científica de muito da conservação que hoje se faz no mundo, deve sua concepção mais a ele do que a qualquer outra pessoa.
Conheci Michael Soulé no Segundo Congresso Brasileiro de Biologia da Conservação, em Campo Grande (MS), em 2000. Na programação me caiu apresentar uma palestra logo antes da dele, no início de congresso. Mal tínhamos sido apresentados, eu era jovem e estava nervoso e inseguro por ter que falar logo antes do “monstro”. Quando chegou a vez dele, Soulé começou fazendo um sumário do que ia tratar em sua palestra, e então disse: “Eu ia falar de extinção também, mas como Fernando Fernandez acaba de falar desse assunto muito bem, não vou mais falar sobre isso”. Meu queixo caiu, e me senti meio que andando nas nuvens, mais ou menos como um jogador de futebol iniciante cuja jogada tivesse recebido um elogio do Pelé. Só o que ele nunca soube foi o quanto aquele simples comentário me incentivou a fazer muitas outras palestras de divulgação da conservação nos anos seguintes. A gente nunca sabe onde nossa influência termina.
Nos dias seguintes, conversamos várias vezes. Michael era um apaixonado por natureza e fortemente focado em sua defesa. Falava pouco, mas seu pensamento era límpido e claro, e sempre valia a pena prestar atenção a cada coisa que ele tinha a dizer. Era também uma pessoa simples, tranquila, com um sorriso tímido mas espontâneo. Seria esse jeito de ser um reflexo do equilíbrio e da maturidade que ele tinha adquirido ao longo de uma vida tão rica?
Soulé eventualmente voltou para a Califórnia, para a University of California at Santa Barbara; depois de se aposentar por lá, se radicou no Colorado, vivendo em meio à natureza exuberante que amava. Até o fim da vida, permaneceu ativo na conservação. Sempre defendeu vigorosamente que a biodiversidade fosse o objetivo verdadeiro da conservação, e não pretexto para outras agendas, como na chamada “New Conservation”. Além disso, em 1998, foi um dos criadores (com Reed Noss) do conceito de rewilding, ou resselvajamento – a restauração de processos ecológicos em grande escala, de modo a devolver áreas a um estado mais próximo do seu estado natural. Esse é um conceito complexo e que hoje tem diversas interpretações, mas tem crescido explosivamente nas últimas décadas e, como tanta coisa em Biologia da Conservação, tem suas raízes no pensamento de Soulé. Como sempre ativo para concretizar suas ideias, ele foi também o fundador da Wildlands Network, importante ONG dedicada à restauração de paisagens naturais na América do Norte.
Michael Soulé faleceu no último dia 17 de junho, aos 84 anos. Deixou sua segunda esposa, June, dois filhos e uma filha. Não, não foi de COVID-19; foi um derrame cerebral que nos tirou uma das mentes mais brilhantes que a ecologia já produziu. Fiquei muito triste ao receber a notícia, lembrando dele daqueles breves dias em Campo Grande. Se você também ama bichos, plantas e conservação, então pode estar sentindo, como eu, que perdemos não só um grande cientista, mas também um irmão de alma.
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O post “Nerd, budista, pai da Biologia da Conservação: a vida maravilhosa de Michael Soulé” foi publicado em 30th junho 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco