Nossa última foto juntas, em fevereiro. Crédito: Ignacio Aronovich
Ontem às 20:30 minha mãe morreu. Morreu em casa, sem sofrer. Nelly tinha 85 anos. Se aguentasse mais dois meses, faria 86 em maio. Mas pra que esperar mais dois meses? Pra dor chegar?
Ela estava com câncer terminal de ovário. Não sabemos quando começou. Sabemos que 2020 foi lamentável pra ela, assim como foi pra tantos velhinhos. Minha mãe praticamente não saiu de casa de março a dezembro. Com o isolamento causado pela pandemia, veio a depressão, uma presença constante em sua vida.
Em algum momento, provavelmente no segundo semestre, ela passou a comer cada vez menos e a emagrecer a olhos vistos. Também foi perdendo a mobilidade, que já não era grande coisa desde a maldita chicungunha. Estava andando bem devagarzinho e, se ficasse mais de alguns minutos em pé, perdia o fôlego.
Em dezembro ela já estava muito mal. Como ela tinha cada vez mais dificuldades de se levantar sozinha da cama e de caminhar até o banheiro, a alguns metros da sua cama, passamos a adotar fraldas. No dia 6 de janeiro, ela caiu na cozinha. Eu e Silvio não conseguimos colocá-la de pé sozinhos, e chamamos o Samu, que foi muito prestativo e a levou ao hospital de emergência. Felizmente, a queda não foi séria. E foi importante pra gente acordar.
Pouco depois, pagamos uma consulta domiciliar (R$ 600!) para uma geriatra vir até a nossa casa atendê-la. Era o único jeito, porque minha mãe não estava em condições de ir a lugar algum. A geriatra foi bacana, apesar da mamãe quase não falar com ela. Pra mim, a médica disse que havia detectado uma massa um pouco abaixo do abdômen da minha mãe, e que podia ser câncer. Pediu um raio x, um ultrassom, e um monte de exames de sangue. Prescreveu um antidepressivo e um suplemento vitamínico. Em caso de dor, era pra dar dipirona (depois Tramal, depois Morfina — mas não precisou).
Conseguimos coleta domiciliar para os exames de sangue, ainda bem. Mas foi um desafio levar minha mãe — que já não andava mais — para fazer os exames de imagem. Foi bem dolorido pra ela.
Quando os resultados chegaram, poucos dias depois, pudemos ver a dimensão do estrago. Havia uma massa de 21 x 11 cm na região abdominal da minha mãe, onde ficam os ovários (a geriatra havia detectado a massa). A médica disse que havia 90% de chance que fosse câncer de ovário em estágio avançado, mas que, pra ter certeza, teríamos que fazer vários outros exames, como tomografia, contraste, biópsia, além de procurar um oncologista. Devido ao seu estado frágil e à provável metástase, nem operar, nem fazer tratamento com quimioterapia seriam opções. O jeito era cuidados paliativos, o primeiro de muitos novos termos que vim a aprender.
Decidimos, meus irmãos e eu, que não contaríamos pra minha mãe sobre o câncer, a menos que ela perguntasse. Ela nunca perguntou. E fomos cuidando dela, Silvio e eu, do melhor jeito que podíamos, aprendendo tudo aos trancos e barrancos. Compramos alguns equipamentos, como cadeira de banho (a gente dava banho nela no quintal, ao sol, até porque o box do banheiro é muito pequeno, e usamos uma cadeira com rodas do escritório como uma cadeira de rodas), encosto de espuma para ajudá-la a sentar na beira da cama, colchão pneumático para tentar prevenir as escaras (outra coisa que eu não sabia o que era!) etc. Silvio foi um anjo em tudo. Não sei o que eu faria sem ele.
Minha mãe foi muito guerreira. Em nenhum momento ela se desesperou, chorou, entrou em pânico. Não sei bem o que ela estava sentindo, porque ela foi ficando cada vez mais monossilábica. Lúcida e consciente, mas sem vontade de fazer nada além de dormir. No começo, antes da gente saber do câncer e de que câncer elimina o apetite, ficávamos bravos quando ela se negava a comer. Depois, aceitamos. Oferecíamos sopa, ovinhos de codorna, salaminho, uvas, bolachas, suco, e toda quinta à noite, pizza (que ela adorava). Ela não comia quase nada. Até a fatia de pizza ela passou a recusar.
No final de fevereiro ela teve um de seus piores dias, tadinha. Minha irmã, que mora na Califórnia, sonhou que todos os seus dentes caíam, o que significa a perda de um ente querido. Meu irmão, fotógrafo profissional que mora em São Paulo, pulou num avião e veio pra cá, apesar da pandemia. Veio se despedir. E tirou belas fotos. Minha mãe sorriu e ganhou alguns dias de vida com aquela rápida visita.
Mas não havia como parar um processo tão destrutivo. Ela foi definhando, parando de comer e até de beber, e nós havíamos decidido que não a alimentaríamos artificialmente. Ela estava só pele e osso, com exceção das pernas e dos pés, que inchavam e desinchavam. No final, eu até me assustei: surgiram duas novas massas grandes (do tamanho de uma bola de baseball), duras, em cada quadril. E outra embaixo do peito. Mas ela seguia sem dor.
Há uma semana, na última quinta, à tarde, finalmente enfermeiras vieram aplicar a primeira dose da vacina contra a covid. Mas ela já estava péssima desde a manhã. Na hora da vacina, não sei se dá pra ver pela foto, foi difícil transferi-la da cama pra cadeira. Ela não abria os olhos, mal estava consciente. A segunda dose ficou marcada para 9 de abril, mas a gente sabia que ela não iria sobreviver até lá.
Na segunda, quando ela já não parecia mais consciente, (mas talvez ouvisse, a gente nunca sabe) tive uma longa conversa com ela. Contei sobre o câncer, e senti uma mudança na sua respiração e na sua expressão quando usei essa palavra tão carregada. Aí vi que acertamos em não falar antes. Ela poderia sim ter entrado em pânico. Também falei com ela que, se existisse um céu, ela logo voltaria a rever o papai, as amigas dela, sua mãe, pai, e irmã, e todos os cães e gatos maravilhosos que passaram pelas nossas vidas, como Maria Antonia, Sol, Piteco, Freud, Blanche, Calvin, Izabel e Hamlet. Eu sei que você não gosta muito do Hamlet, eu disse pra ela, lembrando de um episódio em que aquele cãozinho minúsculo a mordeu, mas imagino que o céu seja um lugar bastante grande pra que você não tenha que vê-lo diariamente, se não quiser.
E ontem ela morreu, na cama, em casa, meio dormindo, o que me parece muito melhor que morrer num hospital. Minha irmã (através do celular) e eu tínhamos falado com ela um pouco antes, e ela estava serena, apesar da respiração.
Uma coincidência interessante é que uma amiga minha de infância, que também está cuidando da mãe acamada em SP, me mandou um email quase na mesma hora que minha mãe morreu, perguntando “Como está a Nelly?”, e explicando que ela e a mãe pensaram nela o dia inteiro.
Enfim. É tudo muito triste, e é sempre uma perda irreparável a morte dos nossos pais. A saudade fica pra sempre. No entanto, meu lado racional diz que ela viveu bastante e bem, e que é melhor ir embora antes das dores se instalarem.
Minha mãe foi uma mulher admirável. Claro que sou suspeita pra falar, mas todos que a conheceram gostavam muito dela.
Foi a maior leitora que já conheci. Lia de tudo e em várias línguas (espanhol, sua língua nativa, português, inglês, francês, até um pouco de alemão). E óbvio que seu amor pela literatura me influenciou pra toda a vida. Visitou inúmeros países. Teve vários problemas, lógico, como todo mundo, mas conseguiu derrotar o alcoolismo há 23 anos e nunca mais se embebedou, embora tomasse um pouquinho de vinho e champanhe em datas festivas.
Até os 81 anos, por aí, estava radiante. Aparentava ter uns quinze anos a menos, ia sozinha à praia, de ônibus, viajava com a minha irmã, ia a SP ver seu netinho, por quem era completamente apaixonada, fazia cursos de extensão e idiomas na UFC, preparava comidas formidáveis. Depois da chicungunha ela nunca foi a mesma. Nunca se recuperou totalmente.
Desde ontem, se existe um céu, ela está lá, cheia de amigos e bichinhos. Se não existe, não faz diferença pra ela. Ela não vai acabar jamais, porque vai permanecer na memória de todos que a conheceram. Fique em paz, mãe!
O post “NELLY, MINHA MÃE QUERIDA (1935 – 2021)” foi publicado em 18th March 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva