O ministro da Justiça, Anderson Torres, informou em seu twitter nesta quarta-feira, 15 de junho, que “remanescentes humanos” foram encontrados nas buscas pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari.
Segundo Torres, os remanescentes humanos “serão submetidos à perícia”. A informação foi confirmada na noite desta quarta-feira, 15, na coletiva de imprensa da Polícia Federal em Manaus.
Eduardo Alexandre Fontes, Superintendente da PF/AM, afirmou que o material será encaminhado amanhã para o Instituto de Criminalística para que outras perguntas possam ser respondidas, como a causa da morte, circunstância do crime. “Houve embate e teria sido com arma de fogo”, disse Fontes que reafirma que a investigação segue em caráter sigiloso e que só a perícia confirmará. “Novas prisões podem ocorrer ainda”, disse.
Ainda durante a manhã desta quarta-feira, Amarildo da Costa de Oliveira , vulgo “Pelado”, embarcou com uma equipe da Polícia Federal e o promotor do MP de Atalaia do Norte, Helanderson Lima Duarte, rumo à comunidade São Gabriel.
A comunidade São Gabriel é onde reside Amarildo e seu irmão Oseney da Costa de Oliveira, vulgo “Dos Santos”, preso na noite de ontem por suspeita de participação junto com seu irmão no caso do desaparecimento de Dom Phillips e Bruno Pereira.
Segundo o Superintendente da PF, “Pelado” confessou a prática criminosa na noite de ontem “voluntariamente”. “Ele narra com detalhes o crime realizado e apontou o local onde teria enterrado os corpos”. Fontes afirmou ainda que Amarildo teria dito que afundou a embarcação de Bruno e Dom e que os corpos estariam a 3,1 km mata adentro a partir do local do crime. “Demorou bastante pra equipe chegar. Escavações foram feitas e ainda estão sendo realizadas. Mas já há remanescentes humanos encontrados”. Sobre a embarcação de Dom e Bruno, o comitê de crise informou que o local da embarcação afundada foi localizado e será investigado amanhã, 16 de junho.
A Polícia Civil investiga a suspeita de homicídio qualificado. A investigação aponta, até agora, a pesca e a caça ilegal na região —e os conflitos decorrentes das atividades ilegais— como pano de fundo do suposto crime.
A última viagem
A Agência Pública refez os últimos movimentos conhecidos de Bruno e do jornalista britânico Dom Phillips, que o acompanhava, antes de desaparecerem no domingo, dia 5 de junho. O trajeto foi feito pelo rio Itaquaí a partir do principal centro urbano da região, a pequena cidade de Atalaia do Norte (AM), com cerca de 25 mil moradores.
Uma viagem pelo Itaquaí nesse trecho largo e desimpedido nem remotamente lembra uma “aventura”, ao contrário do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro na semana passada a fim de desqualificar o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. É um trajeto simples, cumprido por dezenas de amazônidas todos os dias, incluindo idosos e crianças.
Não há nenhum perigo iminente, a menos que o viajante seja um agente da fiscalização ambiental e de proteção aos indígenas. Bruno Pereira, que há mais de nove anos lutava pela preservação do Vale do Javari, era um alvo comentado em toda a região.
O traçado sinuoso do rio Itaquaí leva à “boca” da Terra Indígena Vale do Javari, um santuário ecológico de 8,5 milhões de hectares do tamanho de Portugal, demarcado nos anos 90 e ameaçado cada vez mais por invasores, missionários religiosos, caçadores e pescadores ilegais. Ali vivem seis etnias indígenas diferentes e pelo menos 16 grupos isolados, no que é considerada a maior concentração de indígenas isolados do mundo.
Bruno e Dom deixaram o porto de Atalaia na quinta-feira (2) no barco pequeno com motor de 40 HP. O jornalista, que há anos cobre o Brasil para diversos veículos estrangeiros, fazia pesquisas para escrever um livro sobre preservação e desenvolvimento sustentável na Amazônia.
A primeira parada da dupla foi numa localidade conhecida como “Ladário”. São apenas duas casas de madeira na margem direita do Itaquaí. Bruno havia contratado a compra de 20 remos que seriam distribuídos às equipes de fiscalização indígena que ele estava ajudando a organizar com a Univaja, entidade representativa dos indígenas no Vale do Javari.
“Ele parou aqui e [disse] ‘meu amigo, cadê meus remos?’ Eu disse: ‘Rapaz, vou fazer agora’”, respondeu o carpinteiro Floriano Francisco da Costa, o “Gato”. Ele falou à Agência Pública enquanto seguia aplainando com uma ferramenta um grande pedaço de madeira para construir um barco. A produção dos remos parou.
Bruno e Dom entraram na casa de madeira para tomar um café com os donos. “Ele demorou mais de meia hora, ele e o repórter conversando, daí falou ‘rapaz, vamo embora’. Só deu com a mão. Depois [no domingo] eu não vi ele ‘baixando’ [voltando a Atalaia], eu tava na cama, passou aqui umas seis horas da manhã, só ouvi o motor”, contou “Gato”.
Quem sai do porto de Atalaia do Norte num barco a motor pequeno leva cerca de 1 hora e 40 minutos para chegar à base da Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, um conjunto de sete construções de madeira instalado na confluência do Itaquaí com o rio Ituí. Da comunidade de Ladário até a base da Funai são cerca de 15 minutos.
É o ponto máximo a partir do qual estranhos sem autorização da Funai não podem seguir em frente. Na viagem em que desapareceram, Bruno e Dom não passaram desse limite, de acordo com várias testemunhas, apesar das alegações do delegado da PF Marcelo Xavier, de que os dois teriam entrado na terra indígena sem autorização do órgão que ele preside.
Cerca de 500 metros antes da base da Funai, uma placa adverte o limite do território que deveria estar sob uma proteção permanente do governo federal. Foi contra a base que caçadores dispararam tiros pelo menos cinco vezes nos últimos quatro anos, um sinal inequívoco do recrudescimento do assédio às riquezas cobiçadas do território indígena, como pirarucus, pacus e tartarugas.
Na curva de rio antes do limite da terra indígena, há uma pequena casa de madeira de dois cômodos e uma varanda construída por um ribeirinho conhecido na região como Raimundinho, que tem outra casa em Atalaia. Ao lado da casinha, a Univaja costuma atracar uma balsa com a permissão do morador. É a entrada principal do chamado Lago do Jaburu, onde funciona um projeto de manejo de peixes. Raimundinho funciona como um “fiscal” do projeto.
A transferência da chamada “base da Univaja” de dentro para fora da terra indígena foi uma decisão tomada pelos indígenas para tentar frear o avanço sobre o território. Foi na casa de Raimundinho a última noite de sono conhecida de Bruno e Dom.
O caseiro de Raimundinho é o peruano João Guerrero, 77. Ele disse à Agência Pública que Bruno e Dom dormiram em redes por duas noites antes de retornarem a Atalaia na manhã do domingo. Na manhã de sábado, dia 4, indígenas declararam à imprensa, sob a condição de anonimato, e teriam repetido à polícia, que presenciaram quando um grupo de pescadores, do qual participava “Pelado” ameaçou uma equipe de fiscalização indígena que averiguava denúncia de pesca ilegal num lago na região.
“Pelado” teria chegado até a placa que delimita a terra indígena e exibido armas de fogo aos indígenas – a família do preso argumenta que ele mostrou um remo. De acordo com um indigenista que trabalha com a Univaja, que falou sob a condição de anonimato, o instante em que os pescadores exibiram as armas foi fotografado com dois telefones celulares pelos indígenas da equipe de vigilância. Esses aparelhos simples, distribuídos pelo projeto da Univaja justamente para flagrar irregularidades dentro do território, na sequência teriam sido entregues a Bruno para que ele formalizasse uma denúncia em Atalaia. Os aparelhos estão igualmente desaparecidos. Os indígenas também foram à base da Funai no Ituí e comunicaram a ameaça. Quando “Pelado” passou em frente à casa de Raimundinho, seu barco também teria sido fotografado por Bruno e Dom.
Na casa de Raimundinho, onde a dupla passou a noite em redes de dormir na varanda, o caseiro Guerrero disse que não ficou sabendo das ameaças. Naquela noite jantaram peixe com macarrão. No raiar do dia seguinte, Bruno e Dom partiram para Atalaia. “Eles saíram daqui cedo, eu escutei ele falar com Raimundinho, ‘já vou embora, falar com a comunidade’. Domingo pela manhã, cinco horas”, disse o caseiro.
Bruno e Dom retomaram a viagem de volta a Atalaia, com a previsão de aportar na cidade por volta das 8 horas ou 9 horas da manhã. O indigenista tinha compromissos agendados ao longo da semana. A próxima parada conhecida da dupla foi a comunidade de São Rafael, onde vivem cerca de 20 famílias de ribeirinhos.
Comunidade São Rafael: conflito de versões
Nesse ponto há um conflito de versões. Um funcionário do governo e amigo de Bruno contou à Agência Pública, sob condição de não ter o nome publicado, que dias antes um vereador de Atalaia havia dito a Bruno que a comunidade de São Rafael gostaria de manter uma reunião com o indigenista sobre problemas que estavam enfrentando em um projeto de manejo de peixes na região. Bruno sabia dos problemas, pretendia oferecer ajuda e, ao mesmo tempo, estabelecer algum tipo de apoio à fiscalização contra a invasão da terra indígena. Antes do início da viagem, porém, veio a informação de que a reunião não poderia ser mais realizada por motivos que ainda não estão claros.
O amigo de Bruno disse que o indigenista ficou frustrado com a notícia, pois também queria falar com os pescadores com o intuito de tentar diminuir as tensões cada vez mais sérias entre pescadores que insistem em invadir a terra indígena e os agentes da fiscalização e os indígenas que protegem o território. O cancelamento da reunião, porém, não mudou o plano da viagem.
Em São Rafael, Bruno deveria conversar com o líder comunitário Manoel Sabino da Costa, o ‘Churrasco”, de 60 anos. Sua filha Ana Carla Ramos da Costa, a “Moça”, 31, que mora na comunidade há 18 anos, contou uma história diferente sobre o encontro não realizado. Ela disse que seu pai recebeu um recado de seu irmão – o mesmo Raimundinho que empresta sua casa como ponto de apoio para a Univaja – para uma reunião com Bruno no sábado, dia 4.
“Moça” disse que seu pai ficou esperando por Bruno, ou seja, disse que não partiu dele a iniciativa de desmarcar o encontro. Como o indigenista não apareceu, disse “Moça”, seu pai usou o domingo para pescar e recolher açaí num lago próximo da comunidade.
Na manhã do domingo, por volta das 6h00, de acordo com a Univaja, Bruno chegou à comunidade de São Rafael e encontrou na casa de “Churrasco” apenas sua mulher, a “Nira”, mãe de “Moça”.
“Ele foi, subiu, perguntou onde estava o papai. Perguntou se a mamãe sabia escrever. Ela disse que não. Ele pediu um caderno da mamãe, escreveu o número dele [de telefone]. Ele queria conversar com o papai quando ele ‘baixasse’ para Atalaia. A gente não sabe [o motivo], ele mandou dizer que queria fazer uma reunião com a comunidade”, afirmou “Moça”. Segundo ela, seu pai mora há 49 anos na mesma localidade.
Outra moradora da comunidade, Sebastiana Capistrana Marques, a “Pequena”, confirmou que Bruno “estava na ‘Nira’, que é a mulher do ‘Churrasco’. Tomou café com ela […]. Ele passou por aqui, foi na ‘Nira’, atrás do ‘Churrasco’, ele estava no lago”.
A filha de “Churrasco” disse que “a gente não tinha raiva do Bruno aqui na comunidade, essas coisas, não tinha, não”.
“A gente ficou pensando ‘quem tem coragem de fazer isso com o cara?’. É uma coisa tão estranha, porque a gente viu ele ‘baixar’ daí ele sumiu. A gente imagina tanta coisa, até a gente mesmo que não é nada dele, fica abalada.”
A filha de “Churrasco” disse que esteve com Bruno apenas uma vez, no início deste ano, quando ele passou pela mesma comunidade e chegou a falar com “Churrasco”. “Ele veio conversando com o papai e deu bom dia para nós ali. Ele disse para o papai que em abril ou maio ele ia fazer outra reunião, queria conversar com todo mundo.”
“Moça” disse que conhece o pescador Amarildo, o “Pelado”, preso desde a semana passada, porque ele costumava aparecer em dia de festa na comunidade. “Pelado” e familiares moram na comunidade de São Gabriel, distante cerca de 10 minutos rio abaixo.
Outro morador de São Rafael, Ednei Pereira Campos, 25, disse que não sabe direito o conteúdo da reunião que seria mantida com Bruno, mas que se tratava de “uma ajuda” para a comunidade.
“A gente sabia que ele tinha um interesse de dar uma ajuda para a gente aqui no manejo. Certamente ele parou aqui para marcar uma reunião com a comunidade. Mas só que ele queria falar com o presidente, que seria o ‘Churrasco’. Justamente por causa dos invasores, ele já queria dar um apoio para a gente para a gente totalmente ajudar ele lá, que o pescador não passasse para lá, alguma coisa assim.”
Ednei disse que “aqui na nossa comunidade não tinha nada contra ele, não. As outras comunidades não pode falar, que a gente não sabe”.
Uma terceira moradora, Tatiana Capistrana Marques, irmã de “Pequena”, disse sobre Bruno: “Aqui ninguém tinha nada contra ele. Nunca tinha feito mal para nós. Graças a Deus mesmo. Cansou de passar, nunca parou com a gente…”
A Agência Pública parou na comunidade de São Gabriel para ouvir os familiares de “Pelado”. Um dos irmãos, Eliclei Costa de Oliveira, 31, conhecido como “Cirinha”, disse que seus advogados haviam orientado a família “a não falar com ninguém”. Mas acabou fazendo a defesa do irmão. Até aquela conversa, ocorrida no domingo, apenas “Pelado” estava preso. Na terça-feira, seria a vez de outro irmão, Oseney, conhecido como “Dos Santos”.
“Cirinha” negou que “Pelado” tenha deixado a casa no dia do retorno de Bruno e Dom. “O ‘Pelado’ não saiu. Ele estava aqui. Ele saiu na segunda-feira quando a polícia levou ele. Ele passou o domingo em casa. No domingo ninguém trabalha”, disse “Cirinha”.
O último ponto conhecido da viagem de Bruno e Dom é o depoimento de uma testemunha que teria visto o barco de “Pelado” passar logo após a comunidade de São Gabriel. Seis dias depois do desaparecimento, os indígenas localizaram, em um igapó localizado cerca de dez minutos após São Gabriel, pertences da dupla, como uma mochila e um cartão de um plano de saúde em nome de Bruno.
Hoje, quando o desaparecimento completa 10 dias, a Polícia Federal anunciou em coletiva às 20h30 de Brasília ter encontrado os restos mortais de Bruno e Dom na mata, a cerca de 1 hora de lancha de onde foram recolhidos os pertences. O barco teria sido afundado por seus assassinos. As investigações da polícia continuam.
Os indígenas que participaram ativamente de todas as buscas e foram imprescindíveis para a localização dos corpos não foram sequer citados na coletiva que reuniu Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, Exército e Marinha. A Univaja – União do Vale do Javari – publicou uma nota em que lembra que o caso não acabou: “Manifestamos nossa preocupação com a continuidade das investigações. Pelado e Dos Santos fazem parte de um grupo maior, nós sabemos. Manifestamos nossa preocupação com nossas vidas, a vida das pessoas ameaçadas (pois não era somente o Bruno Pereira), componentes do movimento indígena, quando as forças armadas e a imprensa se deslocarem de Atalaia do Norte. O que acontecerá conosco? Continuaremos vivendo sob ameaças?”
Fonte
O post “Na última viagem de Bruno e Dom, nada de “aventura”” foi publicado em 15th June 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública