Era manhã de 11 de julho e fazia 14 graus em Balneário Camboriú (SC), mas, devido à chuva e ao vento, a sensação era de mais frio. Envolto em um cobertor, Leonardo*, 40 anos, tentava se aquecer no cantinho do passeio, na lateral de um hotel. Por duas vezes naquela quinta-feira, ele foi interpelado por funcionários do serviço da Abordagem Social, que lhe ofereceram encaminhamento a um abrigo da cidade.
“Na porta da sua casa pode?”, provocaram dois servidores da prefeitura, ao serem questionados pela Agência Pública sobre o motivo de uma pessoa em situação de vulnerabilidade não poder dormir na rua. Leonardo disse já ter passado por uma experiência de violência em uma abordagem do gênero e se recusou a ir ao abrigo. Por isso, teve que deixar o local.
De acordo com denúncias do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), a prefeitura de Balneário Camboriú, sob gestão do bolsonarista Fabrício Oliveira (PL), estaria tirando pessoas das ruas de forma violenta, por meio da Abordagem Social, para promover internações forçadas em comunidades terapêuticas fora do município, como detalhou a Pública.
Os relatos dizem respeito a abordagens realizadas durante os períodos de alta temporada, como no último verão e as férias escolares de julho. O governo municipal nega. “Reafirmamos o nosso compromisso com a proteção e o respeito a todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica”, defendeu.
Enquanto Leonardo contava à reportagem, com indignação, o período em que foi internado à força no início do ano, uma van do serviço de Abordagem Social se aproximou. “Não vou sair daqui. Está chovendo, não vou sair daqui. É um lugar que não é movimentado, estou quietinho na calçada. Não quero sair daqui”, disse ele aos dois servidores que se aproximaram.
Os funcionários explicaram que receberam “uma ocorrência” de que uma pessoa estaria deitada na calçada e, por isso, foram até o local. Eles informaram que estavam ali para convidar Leonardo a ir para a Casa de Passagem – um abrigo público. “Nós não levamos à força. Nós convidamos. Se quiser ir, vai”, ressaltou um dos servidores.
Perguntei qual o problema de ele estar naquele local. “Aqui na cidade tem uma lei que diz que não pode deitar na calçada. Não pode obstruir a calçada”, respondeu um dos servidores. Leonardo não estava obstruindo a passagem. Após serem questionados pela reportagem, os agentes foram embora.
O argumento dos servidores não tem embasamento legal, de acordo com o vereador de Balneário Camboriú Eduardo Zanatta (PT). Segundo ele, o Código de Normas e Posturas municipal é válido para edificações e uso do espaço público pelo comércio, “mas não fala sobre pessoas”.
“Por exemplo, uma loja não pode colocar na calçada um cavalete/placa fora da testada do próprio estabelecimento, bloquear a passagem ou colocar cadeiras no trilho para deficientes visuais”, explicou.
Leonardo passou a tarde dormindo, quando a van da Abordagem Social retornou, por volta das 20h. A reportagem acompanhou a chegada de outros dois servidores e recebeu a mesma resposta ao questionar a motivação da ação: “Você ia gostar se fosse na porta da sua casa?”.
“Nós estamos ofertando auxílio para ele, a gente perguntou se ele quer ir para a Casa de Passagem. Ofereci se ele quer ser internado, mas ele não quer, a gente está auxiliando”, explicou a funcionária. Questionei por que, nesse caso, Leonardo não poderia permanecer no local. “Porque aqui não é lugar de ficar”, resumiu.
“As pessoas ligam pra gente no 156 [e] geram uma ocorrência. A gente é obrigado a vir. Ele está do lado de dois hotéis. As pessoas se sensibilizam e vão ligar para a assistência social. Ele não pode ficar dormindo aqui numa situação de abandono, porque alguém vai ligar e vai se incomodar com ele aqui. Nós estamos oferecendo ajuda”, acrescentou o outro servidor, destacando ainda que “ele não pode ficar atravessado no passeio público”.
Enquanto a reportagem tentava entender o serviço oferecido pela Secretaria de Inclusão Social de Balneário Camboriú, Leonardo juntou suas coisas e foi embora. Seu olhar de pânico ao ver a van branca se aproximando tem motivo.
Ele contou que, em fevereiro, foi levado à força em um veículo semelhante, junto com a Guarda Municipal, para a Comunidade Terapêutica Nova Vida. Ele teria sido mantido no local por mais de 15 dias. “Eu fui obrigado a ir e a ficar lá, eu não queria”, disse com indignação.
Após ter sido liberado para sair, Leonardo retornou andando para Balneário Camboriú. Ele não se recorda para qual município foi levado, mas localizamos uma clínica com esse nome em Itajaí, a 18,7 km de Balneário.
A Pública procurou a comunidade Nova Vida para questionar sobre os protocolos de internação involuntária, mas não obteve resposta até o momento.
*Nome fictício para preservar a identidade das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Fonte
O post ““Na porta da sua casa pode?”: a higienização social de Balneário Camboriú na prática” foi publicado em 01/08/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública