A gente prometeu que não ia ficar repetindo o noticiário cada vez menos noticioso de eventos extremos quebrando recordes pelo mundo. Só que agora é pessoal: as imagens dos botos mortos no lago Tefé, no Amazonas, e das pessoas atravessando de moto o leito seco do rio mais caudaloso do mundo, dias depois dos mais de 50 mortos no vale do Taquari e da cena de filme-catástrofe dos cachorros latindo para lobos-marinhos numa rua alagada de Rio Grande, mostraram que 2023 não está para brincadeira. E que o Brasil já é uma das principais vítimas do ano que, salvo intervenção divina, será o mais quente da história desde o início das medições, no século 19.
Enquanto o terceiro recorde histórico de seca em apenas 18 anos isolava comunidades e fazia peixes e cetáceos literalmente cozinhar nas águas da Amazônia, o serviço de observação da Terra Copernicus, da União Europeia, dava conta de que o mês passado não apenas foi o setembro mais quente de todos os tempos, como superou de longe o recorde anterior, de 2016 (outro ano de El Niño). A média do mês foi 1,75ºC mais alta que a média pré-industrial, e a do ano de janeiro a setembro já é 1,4ºC maior – para a gente “jair” se acostumando com o gostinho de um planeta 1,5ºC mais quente, algo que deve acontecer a partir de 2034.
Acostumados a tudo e avisando há 30 anos do que nos aguardava, os cientistas do clima não conseguiram conter o próprio espanto diante da temperatura de setembro: “chocantemente maluco”, disseram aos jornais. É bom poupar os adjetivos, já que o El Niño ainda deve durar vários meses.
Rio Amazonas vira estrada em seca recorde
A maior bacia fluvial do planeta tem neste momento milhares de pessoas isoladas e sem acesso a água. A combinação do El Niño com o aquecimento global está causando a terceira seca recorde na Amazônia desde 2005, com o nível dos rios se aproximando dos recordes mínimos: o rio Negro em Caricuriari atingiu 3,37 metros, contra a mínima anterior de 7,11 metros, e o Solimões em Coari chegou a 2,9 metros, contra uma média de 8,4 metros para setembro.
O município de Tefé, no Amazonas, produziu as imagens pelas quais esta seca será lembrada: milhares de peixes literalmente cozinharam nas águas quentes e ácidas do lago Tefé, e mais de 130 botos vermelhos e tucuxi morreram. Um trecho do Amazonas no município que era atravessado de barco hoje virou uma estrada onde as pessoas passam de moto. “Quando há seca, os rios e lagos baixam. A radiação impacta mais a coluna d’água do que na cheia. A temperatura da água aumenta, a água perde oxigenação, o pH da água muda e os peixes começam a morrer. Foi isso que vimos. Isso está sendo investigado, mas tudo indica que esse foi o roteiro da catástrofe”, diz a geógrafa paraense Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Outras regiões, como Roraima, Rondônia e Acre também vêm sendo afetadas. Em Rondônia, o rio Madeira desceu tanto que a hidrelétrica de Santo Antônio precisou suspender sua operação. Em 2015, um estudo encomendado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República havia previsto, com base em modelos climáticos, que a usina seria a mais afetada do Brasil por reduções de vazão decorrentes do aquecimento global.
O Cemaden (Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais) alerta: a seca agravada pelo El Niño deve continuar nos próximos meses, e a estação chuvosa deste ano, o “inverno” amazônico, não deve bastar para recuperar o nível dos rios.
Senado aprova PL do genocídio indígena
No último dia 27, menos de uma semana após a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal que julgou institucional a tese do “marco temporal” para terras indígenas, o Senado desafiou a Suprema Corte e aprovou o Projeto de Lei 2903, o PL do genocídio indígena. Além de reafirmar o marco temporal, o projeto viola o próprio conceito de terra indígena, legalizando o crime e a violência contra os povos originários. A votação aconteceu em tempo recorde – um punhado de horas entre a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário –, o que é um forte indício de que a articulação política do governo fez acordo com os ruralistas e a direita.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou a campanha “Lula, veta tudo!” , exigindo que o presidente cumpra seu compromisso com os povos indígenas e vete integralmente o texto (a base do governo tem falado no veto de “trechos”). Lula tem até o dia 18 para decidir. Um apelo urgente foi enviado à Organização das Nações Unidas, para que o órgão atue pelo veto junto ao governo brasileiro. Leia mais sobre a campanha pelo veto aqui , e sobre a aprovação do PL no Senado aqui .
PL do mercado de carbono vai à Câmara, sem agro
Já se vão quase 15 anos desde que a implementação do mercado de carbono começou a ser discutida no Brasil. Na última quarta-feira (4/10), finalmente um projeto altamente sofisticado foi aprovado em caráter terminativo na Comissão de Meio Ambiente. Um avanço, mas não sem contradições. A versão final do texto, fruto de um acordo com a bancada ruralista, retirou nominalmente a produção primária do agronegócio da regulação, abrindo debate entre especialistas. Há quem defenda que o mercado regulado não é a melhor opção para reduzir emissões de uso da terra; há quem diga que a retirada beneficia 1% de latifundiários que desmatam e que o país abre mão de um controle sobre o setor que responde por 75% da poluição climática do Brasil. Leia mais aqui .
Papa pede pressa em transição energética
Em 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, o papa Francisco lançou a encíclica Laudate Deum (Deus Seja Louvado) para alertar que o mundo está entrando em colapso e precisa de ações eficazes e rápidas para conter a crise climática. É uma atualização da Laudato Si (Louvado Sejas), a carta revolucionária de 2015 na qual o argentino incorpora o cuidado com o clima à doutrina católica. A atual encíclica possui seis capítulos, nos quais Francisco defende que o mundo deixe os combustíveis fósseis para trás imediatamente. “O mundo está entrando em colapso “, disse Sua Santidade.
Não, Prates, a IEA não recuou sobre barrar os combustíveis fósseis
Não foi só o papa que defendeu a transição energética. No fim de setembro, a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) publicou um relatório no qual atualiza seu cenário de uso de energia para limitar o aquecimento global em 1,5°C acima da temperatura do período pré-industrial. A agência explica que políticas rigorosas e eficazes estimulam a implantação de energia limpa e poderão ter a capacidade de reduzir a demanda por combustíveis fósseis em mais de 25% até 2030 e 80% em 2050.
O presidente da Petrobras, Jean-Paul Prates, fez uma leitura “self-service” do relatório. O petroleiro disse em entrevista ao Roda Viva na segunda-feira (2) que a IEA voltou atrás no posicionamento sobre combustíveis fósseis. “Ela falou primeiro que não se furasse mais poços e, recentemente, nessa última manifestação, já foi no sentido de garantir que as áreas exploratórias que já estão concedidas ou que já estão em processo de outorga possam, sim, ser exploradas”, argumentou. É uma malandragem. A agência manteve a mesmíssima posição que havia adotado em 2021, quando disse que nenhum novo projeto fóssil podia ser licenciado em nenhum lugar do planeta se quiséssemos estabilizar o aquecimento – mas projetos já em curso poderiam continuar. O que Prates faz é considerar que a Margem Equatorial, a nova fronteira que a Petrobras quer abrir, é um projeto “já existente”, mesmo que ninguém saiba nem quanto petróleo existe lá. Leia mais sobre o relatório da IEA aqui .
Alertas de desmate crescem 149% no Cerrado
A tendência de redução das áreas sob alerta de desmatamento na Amazônia e aumento descontrolado no Cerrado, verificada nos últimos meses, se manteve – e agravou – em setembro. Dados do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostraram uma alta de 149% na área sob alertas no último mês, na comparação com setembro do ano passado. É o maior número para o mês já registrado. A derrubada no segundo maior bioma do país está fora de controle, e, pior, ela é em grande parte legal: no Cerrado, a reserva legal nas propriedades rurais é de 35% a 20%, diferentemente da Amazônia, onde ela é de 80% (e os alertas de desmatamento caíram 57% em setembro). As autorizações de desmatamento legal ficam a cargo dos estados e municípios, que têm passado a boiada, emitindo autorizações a rodo e sem fiscalização.
Na playlist
Todo filme-catástrofe começa com algum cientista sendo ignorado. O desligamento da hidrelétrica de Santo Antônio, nesta semana, faz lembrar um episódio em 2015 em que o governo brasileiro primeiro pagou cientistas para fazer um alerta, depois resolveu enterrar o alerta porque a conclusão não lhe convinha (a de que ia faltar água nas hidrelétricas da Amazônia). A jornalista Giovana Girardi contou essa história no podcast Tempo Quente , em 2022. Atualíssimo.
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