Na tarde de sexta-feira, enquanto esta newsletter era escrita, um de nossos colegas no secretariado do Observatório do Clima escreveu cancelando uma reunião. “Acabo de perder meu carro”. Ele visitava a mãe na Zona Norte de São Paulo no momento em que a cidade recebeu mais de 120 milímetros de chuva em um dia, na tempestade que estreou o alerta pelo celular da Defesa Civil para todos os moradores do município. A região mais afetada foi justamente onde estava nosso colega, com o desabamento de um pedaço do teto do shopping Center Norte e o alagamento do metrô Ayrton Senna, que correu as redes sociais.
Há uma crueldade poética no fato de pessoas que ganham a vida alertando contra a crise climática serem atingidas por ela. É um lembrete de que, para ser vítima de um evento extremo, basta residir no planeta Terra. Felizmente, nosso colega e sua família tiveram apenas prejuízos materiais; moradores de lugares menos favorecidos de São Paulo e outras cidades brasileiras sacudidas por eventos climáticos cada vez mais graves não têm a mesma sorte. Somente na primeira semana do ano foram 11 mortos em Minas Gerais pela chuva e milhares de desalojados e desabrigados em Santa Catarina.
Cada tempestade e cada falta d’água expõem a lacuna de adaptação ao novo clima que existe no Brasil, e a dissonância cognitiva de uma população que segue elegendo políticos que ou não priorizam essa agenda ou atuam contra ela. Estamos falando com você, Porto Alegre, que reelegeu Sebastião Melo mesmo após a catástrofe de maio.
Mas nenhuma dissonância cognitiva é maior que a dos cidadãos dos Estados Unidos da América, que acabam de empossar uma bomba de carbono como Presidente da República.
Tirar os EUA do Acordo de Paris, como fez na última segunda-feira, foi uma das coisas menos graves da primeira semana de mandato de Donald Trump. Suas outras investidas contra a energia renovável, o sistema multilateral e os direitos humanos, sua entourage de nazistas e supremacistas brancos em geral, seu abraço às petroleiras e o caráter internacionalista do movimento que o reconduziu ao poder são ameaças muito maiores ao clima: combater a crise requer, além de investimentos trilionários, cooperação internacional, solidariedade com os mais vulneráveis e níveis mínimos de empatia e decência. Nada disso está sobre a mesa num governo que estreia retomando o imperialismo, deportando imigrantes e cortando ajuda a países e populações “que não merecem”, que são pobres por “fraqueza” e não por terem passado séculos sendo explorados.
Nosso colega que perdeu o carro costuma dizer que a primeira eleição de um governante de extrema-direita é acidente, mas a segunda é escolha. A maioria dos americanos fez uma escolha por impor Trump ao mundo. Eles semearam o vento, e todos nós colheremos, cada vez mais, as tempestades.
São Paulo tem 122 mm de chuva em uma tarde
Tempestade derruba teto de shopping, causa alagamentos e deixa moradores sem luz
Faltavam poucos minutos para as 16h de sexta-feira (24) quando celulares receberam um alerta severo da Defesa Civil sobre a chuva em São Paulo. O céu escureceu, raios começaram a cair e a chuva chegou. Chuva não; dilúvio.
Sabidamente despreparada para eventos extremos, São Paulo registrou mais de 179 mil imóveis sem energia elétrica em poucos minutos. Parte do teto do shopping Center Norte, na Zona Norte, desabou, mas sem deixar feridos. Na mesma região, carros ficaram ilhados no Jardim São Paulo, e a estação de metrô São Paulo Ayrton Senna, da Linha Azul, virou uma cachoeira. Trechos das avenidas Pompeia e Sumaré, na Zona Oeste, também foram tomados pela água. Em apenas duas horas de chuva, o Mirante de Santana, na Zona Norte, registrou 122 mm — quase metade da média prevista para o mês, que é de 292 mm. Esse temporal veio após dias de calor intenso e abafado.
Outras regiões do país também enfrentam excessos de chuva. No Distrito Federal , por exemplo, os 23 primeiros dias de janeiro já superaram a média climatológica de 206 mm para o mês. Em Goiânia , a precipitação foi 67% superior à média durante a primavera. Em dezembro, o excesso de chuva também foi registrado em Belo Horizonte (+21%), João Pessoa (+28%), Natal (+4%), Curitiba (+57%), Porto Alegre (+87%) e Florianópolis (+17%).
Trumpocalipse
Criminoso toma posse nos EUA e enterra meta de 1,5ºC
O criminoso condenado que diz ter sido salvo por Deus para tornar a América grande de novo começou o segundo mandato como presidente dos Estados Unidos na segunda-feira (20) do jeitinho que prometera: cercado de oligarcas do Vale do Silício e atacando os direitos humanos, as instituições multilaterais, a estabilidade internacional, os livros de geografia e o clima. Ecoando o ditador do Azerbaijão, que chama o petróleo de “presente de Deus”, Donald Trump se referiu ao combustível fóssil como “ouro líquido” e prometeu “perfurar, baby, perfurar” para obter uma inédita recarbonização da economia de seu país.
A saída dos EUA do Acordo de Paris, assinada nas primeiras horas de mandato, tem um lado negativo: o risco de inspirar outros líderes de extrema-direita a fazerem o mesmo (o bufão Javier Milei já ameaçou nesta semana tirar a Argentina do tratado). Mas, como lembramos aqui , em 31 anos de negociações climáticas, apenas oito não tiveram os EUA atrapalhando o processo. O problema é menos a retirada do tratado do que o fim da ação climática americana, que ocorreria mesmo se Trump permanecesse formalmente no acordo (como Jair Bolsonaro permaneceu, aumentando as emissões do Brasil mesmo assim). Na matemática implacável que exige 43% de redução de emissões no mundo até 2030 para termos uma chance de estabilizar o aquecimento da Terra em 1,5oC, o mandato de Trump essencialmente enterra o objetivo mais ambicioso do Acordo de Paris, já que as quase 5 bilhões de toneladas de CO2 emitidas pelos EUA terão de sair de algum lugar.
Entre as primeiras medidas de Trump, estão a revogação de todo o financiamento climático vindo do Tesouro americano e o cancelamento da meta de Joe Biden de que 50% dos carros vendidos até 2030 fossem elétricos. Ele também cortou subsídios e financiamentos para veículos a bateria e assinou uma ordem executiva para retomar as aprovações de exportação de gás natural liquefeito (GNL). As políticas para eletrificação e as isenções estaduais que limitam a venda de carros a gasolina também estão na mira de Trump.
Os EUA são o maior produtor de petróleo do mundo desde 2018 e, mesmo sob Biden, a produção continuou quebrando recordes . Para 2024, estima-se que a produção média tenha sido de 13,2 milhões de barris por dia, superando o recorde de 2023 (12,9 milhões por dia). Em 2025, a previsão é de 13,5 milhões de barris por dia. Mas, pelo visto, nada disso é suficiente para o Donald.
Altas ambições
Lula anuncia André Corrêa do Lago como presidente da COP30
No dia 21 de janeiro, o governo brasileiro finalmente anunciou o embaixador André Corrêa do Lago como presidente da COP30, a conferência do clima que será realizada em novembro, em Belém. Depois de uma longa espera, agora temos um nome que precisará correr contra o tempo para montar uma agenda sólida. Além disso, a secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, foi nomeada como diretora-executiva do evento.
Corrêa do Lago, formado em economia, está na carreira diplomática desde 1982. Ele já foi diretor dos departamentos de Energia e Meio Ambiente do Itamaraty, negociador-chefe do Brasil na COP17, em 2011, na Rio+20 (conferência das Nações Unidas para desenvolvimento sustentável), em 2012, e atualmente ocupa o cargo de secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores. Chefiou a a delegação brasileira na COP28 (em Dubai, 2023) e na COP29 (em Baku, 2024).
Em entrevista à CNN , o embaixador afirmou que ainda é cedo para definir o tema principal da COP30, mas adiantou que tópicos como financiamento e adaptação às mudanças climáticas terão destaque. O embaixador, no entanto, não tem tarefa fácil. A conferência precisa, entre outras coisas, acelerar a implementação do Acordo de Paris, especialmente em relação ao primeiro Balanço Global, que deixou claro: precisamos começar nesta década a eliminar gradualmente os combustíveis fósseis. Leia mais aqui .
Chegou chegando
Temperaturas de janeiro estão acima da média
O ano de 2024 já entrou para a história como o primeiro a ultrapassar a marca 1,5°C acima dos níveis pré-industriais (1850-1900), atingindo 1,6°C. Isso representa um aumento de 0,12 em relação a 2023, o recordista anterior. E janeiro não dá trégua: o monitoramento da Universidade de Maine aponta que, até o dia 18, a anomalia em relação à média de 1991-2020 era de +0,87 °C. Para comparação, no mesmo período do ano passado, a anomalia foi de +0,71°C.
Nesse cenário de aquecimento, os eventos extremos não dão descanso. Nos Estados Unidos, a Califórnia sofre com incêndios florestais devastadores. Até celebridades perderam mansões para o fogo. Até sexta-feira (24), foram registrados 274 incêndios florestais , que consumiram cerca de 222,9 km² e mataram pelo menos 28 pessoas.
União e carbonização
Brasil queimou extensão de uma Itália em 2024
Dados do Mapbiomas mostram que a área queimada no Brasil em 2024 foi maior que todo o território da Itália, representando um aumento de 79% em relação a 2023. A Amazônia foi o bioma mais afetado, com 17,9 milhões de hectares queimados — o maior registro dos últimos seis anos. Cerca de 73% das queimadas ocorreram em vegetação nativa, principalmente em formações florestais.
No Cerrado, 9,7 milhões de hectares foram atingidos pelo fogo, enquanto o Pantanal queimou 1,9 milhão de hectares. Já na Mata Atlântica, a área queimada foi de 1 milhão de hectares, número que supera o total de queimadas entre 2019 e 2023. Mais de 80% da área foi queimada entre os meses de agosto e setembro, com destaque para os incêndios que atingiram plantios de cana-de-açúcar no estado de São Paulo.
O Pará liderou entre os estados, com 7,3 milhões de hectares queimados, seguido por Mato Grosso (6,8 milhões) e Tocantins (2,7 milhões). Na análise por município, as lideranças são de São Félix (PA) e Corumbá (MS), com 1,47 milhão de hectares e 841 mil hectares queimados, respectivamente. Leia mais aqui .
Desinformação raiz
Meta acaba com checagem e libera discurso de ódio
A Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, anunciou o fim do programa de checagem de desinformação nos Estados Unidos, abrindo espaço para o aumento de postagens enganosas e discursos de ódio. A decisão, embora não surpreendente, reflete como a desinformação impulsiona engajamento e gera lucros.
O OC, que já havia deixado o Twitter em 2023 e migrado para o Bluesky, mantém uma conta no Instagram, mas segue sem patrocinar postagens na plataforma. Defendemos a regulação das plataformas digitais, apoiando iniciativas do governo e do Judiciário para limitar os danos sociais e promover maior transparência e responsabilização. Leia a nota completa aqui .
Na playlist
Em tempos de eventos climáticos extremos e políticas que endurecem fronteiras, Lo que le Pasó a Hawaii dá voz a milhões de refugiados e exilados. Da gentrificação em Porto Rico à dor de imigrantes latino-americanos, Bad Bunny transforma a desigualdade e o colonialismo em uma poderosa denúncia.
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O post Na newsletter: Trump 2.0, ou o fim do mundo como o conhecemos apareceu primeiro em OC | Observatório do Clima .
O post “Na newsletter: Trump 2.0, ou o fim do mundo como o conhecemos” foi publicado em 14/02/2025 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima