Há exatos 20 anos, cientistas do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) iniciaram numa fazenda em Mato Grosso um experimento ousado: atear fogo anualmente a uma área de floresta para entender se incêndios florestais sucessivos, efeito previsto da mudança do clima, alterariam a estrutura do ecossistema, causando sua savanização (spoiler: causaram).
Neste exato momento, a natureza está repetindo em escala de bioma e sem nenhum controle o que os cientistas fizeram em meio hectare. A segunda mega-seca consecutiva assola a maior parte da região amazônica, isolando comunidades, ameaçando deixar milhares de pessoas com fome e multiplicando queimadas em áreas agrícolas e incêndios florestais. O número de focos de calor até 23 de agosto era o maior desde 2010; e isso mesmo com o desmatamento em queda, o que indica que é o clima quente e seco o principal responsável pela catástrofe. Na ausência de um El Niño, tradicional gatilho das mega-estiagens amazônicas, a ciência ainda tenta explicar o que está acontecendo com a região (e o resto do planeta) em 2024. Faltam adjetivos para qualificar o que estamos testemunhando neste momento na maior floresta tropical do mundo. Mas, a julgar por tudo o que aprendemos nos últimos 30 anos sobre a interação entre a atmosfera e a floresta, o resultado não tem como não ser ruim.
A reação da sociedade e do governo é a mais pura dissonância cognitiva. A população parece anestesiada diante da catástrofe, como notou o jornalista Gustavo Faleiros . E o governo Lula vai à Justiça para tentar ganhar o direito de agravar ainda mais o problema e pavimentar, sem nenhuma salvaguarda ambiental, a estrada que liga Manaus a Porto Velho. Nesta edição da newsletter você saberá a quantas anda o esforço suicida da União.
Boa leitura, beba água e proteja-se da fumaça.
RIOS VOADORES EXPORTAM FUMAÇA PARA SUL DO PAÍS
Queimadas na Amazônia e no Pantanal têm alta antes do pico da estação seca; especialistas vêem tendência de agravamento
“A fumaça está pegando carona nos rios voadores”, sintetizou o meteorologista Marcelo Seluchi, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Na última semana, a dispersão da fumaça proveniente de incêndios na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal se intensificou e atingiu pelo menos dez estados , no Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país.
Porto Velho registrou a pior qualidade do ar entre todas as grandes cidades brasileiras na última terça-feira (20), segundo dados do IQAir. Nos estados do Amazonas, Roraima e Pará, a fumaça já persiste por semanas sem trégua. Na semana passada, um epidemiologista da Fiocruz Amazônia já havia orientado a população no entorno de Manaus a utilizar máscaras para se proteger da fumaça tóxica.
Em São Paulo, moradores também reclamaram do impacto da poluição e da fumaça intensa. Na tarde de ontem, sexta-feira (23), quando a fumaça oriunda das queimadas ao norte se concentrava principalmente sobre o estado, incêndios na região de Ribeirão Preto chegaram a provocar o bloqueio de estradas no interior. A fuligem se espalhou inclusive na capital, repetindo o cenário visto no início da semana em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul .
“Estava tudo laranja e pesado”
Kamila Craveira, analista de pesquisa do Greenpeace Brasil, passou recentemente 14 dias percorrendo parte da Amazônia e do Pantanal por terra e ar e contou o que (não) viu: “Em todo o percurso não se via a cor azul do céu. Estava tudo laranja e pesado. As máscaras protetoras e balaclavas apenas amenizavam a sensação de horror da fumaça tóxica tocando a pele e invadindo os pulmões”, disse.
Apesar de o sistema de monitoramento Servir, da Nasa indicar a predominância de fogo de pastagens, de desmatamento e de roçado na Amazônia, com menor incidência de incêndios florestais, a equipe encontrou focos na floresta em Rondônia. “As chamas se espalhavam depressa e a única certeza ali é que esta não seria a última vez, já que a vegetação apresentava traços de fogo reincidente”, contou Craveira.
Mas foi no Pantanal do Mato Grosso do Sul que a equipe do Greenpeace encontrou as cenas mais chocantes. As áreas devastadas pelo fogo se estendiam por quilômetros. Das estradas percorridas pelo grupo na visita por terra, muitas vezes não se via o final das áreas queimadas. “Numa delas, encontramos animais de diferentes portes carbonizados pelo fogo: cobras, jacarés, javaporcos, todos próximos à estrada, indicando que tentaram correr e se salvar”, relatou a pesquisadora que ao final da expedição, retornou para Manaus, onde mora. Encontrou a cidade “em meio ao caos”, sob fumaça e calor extremo.
Redução de chuvas e secas mais longas
O corredor de fumaça é um resultado direto da grande quantidade de queimadas. No Pantanal, os focos de calor bateram recorde em junho, arrefeceram por alguns dias em julho e depois voltaram a se intensificar. É possível que a área queimada no bioma neste ano supere o recorde, registrado em 2020. Na Amazônia, as regiões sul do Pará, do Amazonas e parte do Tocantins registram alta do fogo, apesar da queda recorde do desmatamento no bioma.
Como explica Marcelo Seluchi, do Cemaden, a alta de focos de incêndio na Amazônia, somada às altas temperaturas, à baixa umidade e aos ventos intensos, têm ajudado a propagar o fogo pelo bioma. “Quando esses incêndios se formam, a fumaça segue o corredor dos ventos. No verão, esse corredor leva a umidade da Amazônia até as regiões Sul e Sudeste do Brasil. Na época seca, leva calor e fumaça”, diz. “No norte do Brasil, os ventos são quase sempre [vindos] de leste levando essa fumaça para oeste. Ela segue contornando os Andes em direção ao sul, e nesses últimos dias se dirigiu à região Sul do Brasil. Tem um contorno muito claro nas imagens de satélite”, descreve.
O especialista acende o alerta para o cenário que se desenha para os próximos anos, com a tendência de períodos de seca cada vez mais longos. Para além da variabilidade anual do clima, a série histórica dos últimos 60 anos mostra uma queda persistente nos acumulados de chuva na Amazônia e em toda a região central do Brasil, com períodos de seca que começam mais cedo e se prolongam mais.
“Isso se expressou também neste ano. Primeiro, tivemos uma estação chuvosa muito deficiente no ano passado e no início deste ano (o que foi agravado pelo El Niño, que provavelmente contribuiu para que chovesse menos no Norte). A estação seca começou antecipadamente – abril, que costuma ser um mês de transição, já foi um mês de estação seca, e isso está acontecendo com certa frequência – e, agora, temos uma previsão de atraso no início da próxima estação chuvosa”, diz.
Você já sabia, mas…
NOVA ANÁLISE INDICA QUE CRISE DO CLIMA PIOROU INCÊNDIOS
Um artigo científico de revisão publicado na revista Earth System Science Data reforça que os incêndios florestais estão piorando por causa das mudanças climáticas. A análise considerou queimadas registradas entre março de 2023 e fevereiro de 2024. Segundo o artigo, as mudanças climáticas tornaram o clima extremo – mais quente e seco – favorável a incêndios, tornando-os pelo menos 20 vezes mais prováveis na Amazônia, três vezes mais no Canadá e duas vezes mais na Grécia. “Essas projeções destacam a necessidade urgente de reduzir rapidamente as emissões de gases de efeito estufa e gerenciar a vegetação, a fim de reduzir o risco e os impactos de incêndios florestais cada vez mais graves na sociedade e nos ecossistemas”, diz Douglas Kelley, coautor do relatório e cientista sênior de incêndios do Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido.
Campeão mundial de desmatamento
BRASIL JÁ PERDEU UM TERÇO DE SUAS ÁREAS NATURAIS
Dados divulgados pelo MapBiomas na quarta-feira (21) mostram que, em 39 anos – de 1985 a 2023 – o Brasil perdeu 13% (110 milhões de hectares) de suas áreas naturais, o que inclui vegetação nativa, superfície de água e áreas não vegetadas, como praias e dunas. Os números preocupam, pois indicam uma aceleração da destruição, considerando que, entre a chegada da colonização europeia e 1985, as perdas totalizaram 20%. Metade da perda desde 1985 foi na Amazônia, com 55,3 milhões de hectares destruídos. O Cerrado aparece na segunda posição, com 38,2 milhões de hectares suprimidos no mesmo período. A Caatinga, a Mata Atlântica, o Pampa e o Pantanal perderam, respectivamente, 8,6 milhões, 3,7 milhões, 3,3 milhões e 1,8 milhão de hectares. “A perda da vegetação nativa nos biomas brasileiros tende a impactar negativamente a dinâmica do clima regional e diminui o efeito protetor durante eventos climáticos extremos”, diz Tasso Azevedo, coordenador geral do MapBiomas. No Pantanal, a principal redução foi na superfície de água, que passou de 21% em 1985 para 4% em 2023.
Chupa, grileiro
JUSTIÇA MANTÉM SUSPENSÃO DA LICENÇA PRÉVIA DA BR-319
Na tarde de sexta-feira (23), uma decisão em segunda instância manteve a suspensão da Licença Prévia para a pavimentação do trecho do meio da BR-319, rodovia de Manaus (AM) a Porto Velho (RO). O Observatório do Clima havia ajuizado uma ação civil pública em defesa da anulação da licença, que havia desconsiderado dados técnicos, análises científicas e uma série de pareceres elaborados pelo Ibama durante o processo de licenciamento ambiental. Em julho, a 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas decidiu pela suspensão. No entanto, a União e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), ligado ao Ministério dos Transportes, apresentaram um pedido para derrubar essa decisão, o que foi negado nesta sexta pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). Leia mais aqui .
Fúria de Ernesto
ATLÂNTICO TEM QUINTA TEMPESTADE NOMEADA
A temporada de furacões do Atlântico apresentou mais um indício de anormalidade. O primeiro “aviso” foi quando o furacão Beryl atingiu a categoria 5 (alto potencial de destruição) precocemente, no início de julho. Ainda na primeira quinzena de agosto, a quinta tempestade da temporada foi nomeada como Ernesto. Segundo a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, a quinta tempestade nomeada normalmente não se forma até 22 de agosto. Ernesto atingiu Porto Rico e causou danos como uma tempestade tropical. No sábado (17), chegou às Bermudas como um furacão de categoria 1, perdeu força e voltou a ser uma tempestade. Em seguida, retomou a categoria de furacão.
Lançamento
OBSERVATÓRIO DO CLIMA LANÇA PROPOSTA DE NDC
A emergência climática exige dos países muito mais esforço no corte de emissões de carbono e na adaptação aos eventos extremos. Os governos, claro, dizem que é tudo muito difícil e não estão entregando. Cabe à sociedade civil subir a régua e dizer aos governantes o que eles podem e devem fazer. A nossa parte nós estamos cumprindo: nesta segunda-feira, 26, o OC apresentaou uma proposta de NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) para o Brasil, com um conjunto de medidas escaláveis, factíveis e urgentes para que em 2035 nossas emissões estejam alinhadas com a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C. Veja a apresentação no canal do OC no Youtube .
Salva-vidas
ADAPTAÇÃO REDUZIU MORTES CAUSADAS POR CALOR NA EUROPA EM 2023
Em 2023, o ano mais quente da história, mais de 47 mil mortes relacionadas ao calor excessivo foram registradas na Europa. Um estudo aponta que esse número poderia ter sido 80% maior, caso medidas de adaptação ao clima não tivessem sido adotadas. Algumas ações destacadas pelo artigo foram o aprimoramento dos serviços de saúde para lidar com as ondas de altas temperaturas, o incremento da proteção social, a atenção às condições de trabalho e à ventilação de edifícios, a ampliação do conhecimento sobre os riscos, o desenvolvimento de sistemas de alerta e a difusão de orientações mais precisas à população. Leia mais aqui .
Porra Brasil
PAÍS CONTINUA VENDENDO PETRÓLEO A NETANYAHU
Nova análise da organização Oil Change International – a primeira foi publicada em março – aponta que vários países continuam fornecendo petróleo para Israel, apesar da pressão de protestos para que as relações comerciais sejam paralisadas para forçar o interrompimento da guerra contra a Palestina. De acordo com a pesquisa, 65 remessas de petróleo bruto e produtos petrolíferos refinados chegaram a Israel entre 21 de outubro de 2023 e 12 de julho de 2024 – a guerra começou em 7 de outubro do ano passado. 35 das remessas (54%) partiram do porto de origem após 26 de janeiro, data em que o Tribunal Internacional de Justiça determinou que Israel garantisse que suas forças armadas não cometessem genocídio contra os palestinos. O Brasil é o fornecedor de 9% do petróleo bruto que chegou a Israel desde o início da guerra. Uma das cargas brasileiras chegou em abril. O Azerbaijão, país que sediará a conferência do clima em novembro, é o país que mais forneceu petróleo bruto, 28% do total. A lista de fornecedores segue com outros países.
Unidos pelo greenwash
TRÊS PODERES FAZEM PACTO ECOLÓGICO DE PHOTO-OP
A cena lembrou aquele meme “amiga, ele tá vindo aí, aja com naturalidade”: diante do climão instalado pela tentativa do STF de disciplinar a esbórnia das emendas parlamentares, os três Poderes se reuniram no Palácio do Planalto na última quinta-feira para fazer cara de paisagem e simular um “pacto pela transformação ecológica”. Não se sabe quem foi o assessor de imprensa que deu a ideia a Lula, mas a cerimônia foi tão constrangedora que lembrou as iniciativas “verdes” do finado Paulo Guedes: afinal, a única transformação ecológica que os três Poderes estão fazendo neste momento é a do Brasil num deserto. O Executivo tenta multiplicar a produção de petróleo, principal causador da crise do clima, e acaba de tomar um todo do TRF-1 na sua tentativa de abrir o oeste da Amazônia à grilagem de terras; o Legislativo de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco (com a omissão dos articuladores políticos do Executivo) toda semana tenta tirar do embornal uma das três dezenas de projetos do Pacote da Destruição, para arrasar as conquistas socioambientais do país; e o próprio Supremo sacrifica direitos indígenas no altar da bancada ruralista. Giovana Girardi relatou o encontro na Agência Pública .
NA PLAYLIST
Tem podcast novo no ar. Bom dia, Fim do Mundo , da Agência Pública, se propõe a ser uma mesa-redonda de debate de questões climáticas. O primeiro episódio discute três mortos ilustres da semana passada, sem nenhuma ligação entre eles, mas que marcaram a história da Amazônia: Antonio Delfim Netto, Tuíre Kayapó e Sílvio Santos.
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O post “Na newsletter: rios voadores viram corredores de fumaça” foi publicado em 26/08/2024 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima