Uma das desgraças da crise climática é a maneira como ela modifica a própria linguagem. Além de termos novos incorporados ao léxico, como “microexplosão” e “ciclone-bomba”, expressões como “o estado inteiro está debaixo d’água” deixam de ser figura de linguagem. Nesta semana, todos os municípios do Rio Grande do Sul foram atingidos pela pior tempestade já registrada no estado, apenas oito meses depois da tragédia do Vale do Taquari, em setembro de 2023. Os gaúchos ainda contam seus mortos e tentam calcular os prejuízos enquanto Porto Alegre tem sua região central evacuada devido à cheia do rio Guaíba, que se aproxima do recorde histórico.
A causa próxima é a bolha de ar quente estacionada no Centro-Sul do Brasil, que levou a temperatura da cidade de São Paulo ao recorde histórico para o mês de maio. Ela impede que as frentes frias que atingem o Sul no outono avancem Brasil adentro, fazendo-as despejar toda a chuva no mesmo lugar. A causa última, claro, é o El Niño turbinado pela mudança do clima. Como você verá nesta edição da newsletter, os modelos climatológicos já previam há pelo menos uma década o aumento na precipitação da região Sul e do entorno da bacia do Prata. Mas ações de adaptação não foram adotadas. Ao contrário, como mostrou a Agência Pública, o governo gaúcho engavetou planos para lidar com a mudança do clima . E os parlamentares do estado têm se dedicado com afinco a desmontar a legislação ambiental do Brasil, o que retira ainda mais a resiliência do Rio Grande do Sul a choques climáticos que são, infelizmente, o novo normal.
#SOSRS.
TRAGÉDIA ANUNCIADA
A catástrofe que afoga o Rio Grande do Sul pela segunda vez em oito meses e que já é considerada a pior da história do estado poderia ser deduzida há uma década por quem prestasse atenção aos modelos climáticos. Em 2015, um estudo produzido pelo próprio governo federal já afirmava que o sul da América do Sul, em especial a bacia do Prata, poderia ter chuvas mais intensas e por mais tempo, conforme o aquecimento global piorasse.
O governo parece não ter dado muita bola para o alerta. O “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima” foi divulgado sem alarde, após o então ministro Roberto Mangabeira Unger assumir a Secretaria de Assuntos Estratégicos e demitir a equipe responsável pela pesquisa. Hoje é difícil encontrar o documento on-line. É preciso recorrer a mecanismos como o Web Archive .
Nathalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa e um das coordenadoras do estudo, conta que foram contratados três modelos climáticos globais, que o Inpe regionalizou para o Brasil, num esforço inédito. Todos os modelos mostram um aumento da temperatura no país até o meio do século, que poderia chegar a 8ºC no pior cenário. Todos eles também indicaram um aumento na precipitação, tanto em volume quanto em duração, na região Sul, além de uma redução na média da vazão de rios no Norte. “É muito seguro dizer que o governo federal não se preparou. A União tem uma responsabilidade”, diz Unterstell. A crítica tem relação com a lentidão para a implementação de um plano de adaptação climática no país. “Sistema de alerta e previsão meteorológica não são adaptação. Adaptação é quando você vê que os extremos vão ficar mais extremos e você se prepara para esse novo clima. Isso [adaptação] está acontecendo pouco”, completa.
O que está acontecendo no Rio Grande do Sul tem influência de vários fatores, mas a contribuição do aquecimento global está lá. “[Tem] os [fatores] meteorológicos, como bloqueio atmosférico, corredor de umidade vindo da Amazônia e o próprio El Niño. A questão é que provavelmente tudo foi potencializado pelo aquecimento global antropogênico. O oceano mais quente gera energia e combustível para eventos extremos de chuva”, explica Karina Bruno Lima, doutoranda em climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As temperaturas da superfície do oceano têm batido recordes desde o ano passado.
O boletim publicado nesta sexta-feira (3) pelo governo do Rio Grande do Sul mostra que 235 municípios já foram atingidos pelos temporais. Mais de 351 mil pessoas foram afetadas de alguma maneira. Até o fechamento desta newsletter, o número de moradores deslocados para abrigos era 7,9 mil, 23 mil estavam desalojadas, 74 feridas e outras 74 desaparecidas. 37 mortes foram confirmadas. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), as chuvas volumosas e as rajadas de vento devem continuar até domingo, 5 maio.
A atualização da Defesa Civil na manhã de segunda-feira (6) apontava 345 municípios atingidos, mais de 850,4 mil pessoas afetadas de alguma maneira, 19,3 mil pessoas em abrigos, 121,9 mil desalojadas, 276 feridas, 111 desaparecidas e 83 óbitos confirmados.
QUEIMADAS CRESCEM 1.000% NO PANTANAL
O mesmo El Niño turbinado pelo aquecimento global que está deixando o Rio Grande do Sul debaixo d’água também está fazendo o país bater recorde no número de queimadas. De 1º de janeiro a 3 de maio eram 17.791 focos registrados pelo Inpe, o maior número desde o início das medições, em 1999 e um aumento de 80% em relação ao ano passado. Na Amazônia, a alta é de 144%; no Pantanal, bioma que ainda não se recuperou da devastação de 2020, a elevação é de mais de 1.000%.
São dados extremamente preocupantes, uma vez que a estação seca na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal está apenas começando. Eles sugerem que os impactos da seca extraordinária de 2023 ainda perduram e que a estação chuvosa de 2023/2024 não foi suficiente para umedecer o solo e impedir o fogo. “As queimadas estão batendo recordes mesmo com os alertas de desmatamento em queda no Cerrado e em queda expressiva na Amazônia nos primeiros cinco meses do ano, o que sugere influência do clima. Se o governo não tomar medidas amplas de prevenção e controle, teremos uma catástrofe em agosto e setembro”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do OC. Cereja do bolo, o Ibama segue em greve, já que Lula preferiu dar aumento à Polícia Rodoviária Federal, aquela instituição que tentou impedir que ele fosse eleito.
NEGOCIAÇÕES DE TRATADO NÃO AVANÇAM E INDÚSTRIA FÓSSIL COMEMORA
Terminou sem avanços a 4ª rodada de negociações da ONU para o Tratado Global Contra a Poluição Plástica (INC-4, na sigla em inglês), realizada em em Ottawa, Canadá. A presença ostensiva de lobistas das indústrias de combustíveis fósseis e do plástico é apontada como uma das razões para o progresso tão lento. Análise do Centro de Direito Ambiental Internacional (Ciel) mostra que 196 lobistas se inscreveram para participar das sessões, cifra 37% maior do que a registrada no INC-3, realizada em Nairóbi, Quênia, em novembro do ano passado. Os países não confirmaram se o texto do tratado terá regras globais comuns ou se seguirá regras voluntárias baseadas em planos nacionais. A ausência de regras globais é uma vitória para a indústria fóssil, que pode se ver livre para postergar a poluição sem constrangimentos. Mais aqui , na cobertura do OC, e aqui , no comentário de Lara Iwanicki, gerente de advocacy da Oceana, que participou do evento em Ottawa.
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G7 FALA EM ELIMINAR CARVÃO, MAS DO JEITO DELES E SEM PRESSA
Reunidos em Turim, Itália, na última semana, ministros de Meio Ambiente e Energia do G7 não foram capazes de entregar resoluções efetivas e em compasso com a velocidade exigida pela crise do clima. O comunicado emitido pelos ministros do bloco dos países mais ricos só teve ambição no tamanho . Em suas 35 páginas, fala em urgência, mas anuncia metas vagas e escorrega em soluções falsas. A contradição se expressou quanto à principal novidade anunciada, a eliminação do carvão mineral “unabated” (não mitigado) nos sistemas energéticos, que ficou para meados da década de 2030, a despeito do que diz a ciência (que afirma que eliminação precisa acontecer até 2030 para que tenhamos a chance de controlar o aquecimento em 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais). O tom do documento foi dado pela linguagem sobre fósseis “não mitigados”, que o bloco tentou sem sucesso (ainda bem!) incluir na decisão da COP28, e pelo apego a “soluções” (como o uso de gás fóssil e as tecnologias de captura e armazenamento de carbono) que só resolvem o problema da indústria fóssil e seu desejo de continuar extraindo fósseis como se não houvesse amanhã. Ou melhor, como se houvesse.
70% DOS TRABALHADORES TÊM SAÚDE AMEAÇADA PELA CRISE DO CLIMA
Enquanto o G7 parece ter todo o tempo do mundo, cresce a fatia de trabalhadores que têm sua saúde colocada em risco pelas mudanças climáticas. Segundo relatório publicado pela Organização Internacional do Trabalho, 2,4 bilhões de trabalhadores, aproximadamente 70,5% da força de trabalho mundial , estão expostos aos impactos diretos e indiretos do clima desequilibrado. O levantamento considerou dados até 2020. No início dos anos 2000, o percentual era de 65,5%. A OIT explica que os trabalhadores, especialmente aqueles que desempenham atividades ao ar livre, são em geral os primeiros a serem expostos às consequências da crise do clima por períodos longos e com maior intensidade. Calor excessivo, radiação ultravioleta, eventos extremos, poluição do ar, doenças transmitidas por vetores e agrotóxicos estão entre as principais ameaças. Apenas o calor extremo provoca a cada ano 22,8 milhões de lesões em trabalhadores, entre casos de exaustão, cãibras, erupção cutânea, doença cardiovascular e doença renal crônica. Os países mais afetados são, adivinhe, aqueles com taxas elevadas de pobreza, emprego informal e agricultura de subsistência.
CÂMARA QUER FAVORECER DESMATADORES EM PL DO MERCADO DE CARBONO
O Senado precisa recuperar o projeto de lei do mercado de carbono, alertam em nota técnica as organizações do Observatório do Clima. O texto aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2023 abre brechas para a emissão de créditos em áreas de floresta com desmatamento ilegal e criará um mecanismo distorcido para o comércio de emissões de gases de efeito estufa no país. Os deputados incluíram no PL 182/2024, de autoria original do Executivo, artigos sem conexão com um mercado regulado de carbono, o que pode prejudicar o instrumento e sua credibilidade. O agronegócio, que havia exigido a própria exclusão do mercado, quer ganhar dinheiro vendendo créditos de carbono sem ter nenhuma obrigação de reportar ou reduzir emissões.
COM MAIS VEÍCULOS ELÉTRICOS, DEMANDA POR PETRÓLEO CAIRÁ
Quem anda apostando todas as fichas e espera enriquecer explorando petróleo “até a última gota” pode ter seus planos frustrados em breve. Quem alerta é a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), que projetou uma “profunda mudança” no setor de energia já na próxima década, impulsionada pelo robusto aumento da frota global de veículos elétricos. O levantamento projeta que 17 milhões de carros elétricos serão vendidos até o final deste ano, um crescimento de 21% na comparação com 2023. A agência estimou que, segundo essa tendência, um a cada dois carros vendidos no mundo será elétrico em 2035, considerando as políticas atuais de incentivo e de corte de emissões de gases-estufa pelos países. Em um cenário mais otimista, caso os países cumpram integralmente seus compromissos climáticos e com a transição energética, dois terços da venda global de carros será elétrica no mesmo ano. Nessas condições, a adoção acelerada de veículos elétricos – considerando não apenas o crescimento em carros, mas também em ônibus, caminhões, vans, motocicletas e outros – derrubará a demanda global por petróleo em até 12 milhões de barris por dia .
MINISTRO VAI A ROMA DIZER AO PAPA QUE BRASIL SEGUIRÁ EXPLORANDO PETRÓLEO
Enquanto 300 mil gaúchos sofriam com falta de luz sob sua gestão , o delegado Alexandre Silveira (PSD-MG), que Lula insiste em manter no Ministério de Minas e Energia, foi a Roma tentar comprar uma indulgência. O ministro se encontrou com o papa Francisco para falar, ó, Deus, de transição energética. Numa agenda que pareceu feita sob medida para gerar uma “photo-op” para o eleitorado católico de Minas (e que, claro, foi amplamente coberta pela imprensa do estado), o policial entregou ao Santo Padre uma carta de quatro páginas que parece falar sobre transição energética , mas que em letras não tão miúdas declara: “Trabalhamos com afinco para implementar um conjunto de políticas públicas, com visão de longo prazo, que buscam utilizar os nossos recursos hídricos, o nosso vento e o nosso sol (…) e tantos outros que agora são recursos energéticos importantes da nossa matriz energética”. Ou seja, o Brasil seguirá explorando petróleo, apesar da necessidade de cumprir o Acordo de Paris.
NA PLAYLIST
Falando em fósseis, o Pearl Jam está de álbum novo. Depois de cantar o aquecimento global e as dores do século 21 em Gigaton, lançado no ano da pandemia, os senhores de Seattle voltam com o raivoso Dark Matter. Ficamos com React, Respond , para estes tempos de guerras pelo mundo.
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O post “Na newsletter: Modelos previam mais chuvas no RS há 10 anos” foi publicado em 06/05/2024 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima