Na mesma semana em que o facínora convocou embaixadores estrangeiros para repetir ameaças de golpe, um ex-funcionário da Funai em autoexílio na Europa fez o que todo brasileiro com um pingo de alma gostaria de ter feito após quatro anos de destruição: Ricardo Rao questionou a presença do presidente antiindígena da Funai, Marcelo Xavier, em uma assembleia do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), em Madri, na Espanha: “O Itamaraty é uma vergonha, está sendo babá de miliciano. Marcelo Xavier é um miliciano. Esse homem é responsável pela morte de Bruno Pereira, é responsável pela morte de Dom Phillips. Você é um miliciano, bandido. Vai embora mesmo, vai para fora”, gritou o indigenista. O delegado Xavier saiu calado.
Rao fez curso preparatório na Funai com Bruno Pereira e vive na Noruega desde 2019, porque tem medo de regressar ao Brasil e ser assassinado . Nos últimos dias, a conta do desmonte promovido pela atual gestão ganhou novos capítulos macabros. A Agência Pública revelou que o governo Bolsonaro certificou 239 mil hectares de fazendas dentro de terras indígenas – o equivalente a duas vezes a cidade do Rio de Janeiro. Nos últimos dois anos, garimpeiros movimentaram R$ 16 bilhões, beneficiados por atos do governo. Sob Bolsonaro, registros de armas na Amazônia aumentaram 219%.
Foi também uma semana de mais mentiras do governo sobre a Amazônia e de calor infernal com incêndios em série na Europa, cortesia da crise do clima (enquanto países como a Alemanha retomam investimentos em carvão).
LONDON’S BURNING
“Sem precedentes, assustadora e apocalíptica”. Foi assim que Hans Kluge, diretor regional da OMS para a Europa, descreveu na sexta-feira (22) a onda de calor que assola o continente há mais de dez dias. Só em Portugal e na Espanha, mais de 1.700 pessoas já morreram neste ano. Na França, incêndios florestais levaram 37 mil a deixar suas casas. Em Londres, que registrou o dia mais quente da história – 40,3°C na quarta-feira (20) –, a pista do aeroporto de Luton chegou a derreter. O prefeito pediu aos londrinos que evitassem churrascos ao ar livre . Mas os incêndios provocados pelo calor não deram trégua, e os bombeiros da capital inglesa tiveram o dia com mais chamados desde a Segunda Guerra Mundial. Um calor assim até estava previsto, só que para daqui a 28 anos. Em 2020, meteorologistas do Met Office – a agência oficial britânica – haviam simulado uma previsão hipotética das temperaturas para julho de 2050. Elas eram assustadoramente semelhantes às registradas nesta semana.
Já é consenso na comunidade científica que eventos extremos estão cada vez mais frequentes e intensos por causa da crise climática. Recentemente, um estudo de atribuição publicado na revista Environmental Research, em que foram analisados dezenas desses eventos ao longo da última década, concluiu que ondas de calor estão se tornando até dez vezes mais prováveis por causa das mudanças climáticas.
Se a última semana foi devastadora em algumas regiões do continente, a previsão para os próximos dias é igualmente preocupante. José Marengo, climatologista e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), diz que a área de alta pressão atualmente sobre o Reino Unido deve se mover para o centro-norte da Europa e alcançar o norte dos Bálcãs até meados da próxima semana, elevando as temperaturas para o oeste e o centro da Europa. Enquanto isso, o modus operandi negacionista de apresentadores de TV que tentam dourar a pílula da tragédia, descrito no filme “Não Olhe para Cima“, continua livre, leve e solto .
“Metade da humanidade está na zona de perigo de inundações, secas, tempestades extremas e incêndios florestais. Nenhuma nação está imune. No entanto, continuamos alimentando nosso vício em combustíveis fósseis”, afirmou na segunda (18), em Berlim , o secretário-geral da ONU, António Guterres. “Nós temos uma escolha: ação coletiva ou suicídio coletivo.”
On fire
ONDA DE CALOR DERRUBA RECORDES TAMBÉM NOS EUA
Enquanto as atenções da imprensa estavam voltadas às temperaturas recorde registradas na Europa, os americanos também passaram sufoco. Nos Estados Unidos, cerca de 100 milhões de pessoas, da Califórnia à Nova Inglaterra, estiveram sob alertas de calor nos últimos dias. Em Oklahoma City , os termômetros ultrapassaram 43°C na terça-feira (19), quebrando o recorde de 1936, de 42°C. Já Austin, no Texas, está há mais de 40 dias com temperaturas acima dos 37°C. Há pouco mais de um ano, uma onda semelhante de calor também deixou um rastro de mortes e devastação nos Estados Unidos e Canadá. Na sexta (22) foi publicado estudo na revista Advances in Atmospheric Sciences com analise de uma série de eventos climáticos ocorridos nos últimos anos, incluindo o de 2021. De acordo com os pesquisadores, a frequência de ondas de calor extremo vai aumentar em mais de 30% na América do Norte neste século, e tendências semelhantes são esperadas para Ásia e Europa. “Se medidas apropriadas não forem tomadas, a probabilidade de ocorrência de ondas de calor extremo aumentará e impactará ainda mais o equilíbrio ecológico, bem como o desenvolvimento social e econômico”, alertou Chunzai Wang, pesquisador do Southern Marine Science and Engineering Guangdong Laboratory, na China, e principal autor do estudo.
Europa é aqui!
CALOR NO HEMISFÉRIO NORTE É ALERTA PARA O BRASIL
O aquecimento global não está aumentando só a intensidade e frequência de ondas de calor no hemisfério norte, mas de outros eventos extremos em diferentes regiões do Brasil e do mundo. A convite do Observatório do Clima, cinco especialistas analisaram a recente crise europeia. Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destacou que as recentes chuvas intensas que causaram mortes em Petrópolis e Paraty, além da seca que trouxe enormes prejuízos para a agricultura neste ano, são consequência de um país ainda não adaptado ao clima. “A mudança climática não é mais coisa do futuro. Prejuízos em vidas e na economia já estão ocorrendo hoje. O Brasil tem um plano nacional de adaptação climática que nunca saiu do papel.” Leia mais aqui .
Fóssil amargo
ALEMANHA VOLTA “TEMPORARIAMENTE” AO CARVÃO
Dias antes do London’s Burning, o chanceler alemão, Olaf Scholz, confirmou que a principal economia da Europa vai acionar 16 usinas de combustível fóssil inativas e estender a permissão de operação para outras 11. “O fato de agora termos que usar temporariamente algumas usinas que já deixamos de operar por causa do ataque brutal da Rússia à Ucrânia é amargo. Mas é apenas por um período muito curto”, disse Scholz, acrescentando que faria “tudo o que puder para combater a crise climática” e que haverá medidas para garantir a expansão de energias renováveis e o cumprimento da meta do país de neutralidade até 2045. Parece até o ministro Joaquim Leite dizendo na ONU que o Brasil vai cumprir a meta de zerar o desmatamento até 2028, enquanto o desmatamento aumenta 73% na sua gestão.
Até a Agência Internacional de Energia (AIE) já afirmou que nenhum projeto fóssil pode sair do papel ou ser retomado para que haja alguma chance de cumprir o Acordo de Paris. Por mais que a onda de calor europeia faça todo mundo lembrar que o inferno atual é só o começo, a invasão da Ucrânia parece ter abortado de vez a possibilidade de avanço nas negociações climáticas que vão ocorrer no Egito, em novembro.
O agro desmata
QUASE 80% DO DESMATAMENTO NO BRASIL OCORRE EM TERRAS PRIVADAS
Pelo menos 76% de todo o desmatamento verificado no país em 2021 ocorreu em terras privadas, aponta relatório divulgado nesta semana pelo MapBiomas . Nesses locais houve sobreposição total de alertas de desmatamento com áreas registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Quando se considera alertas que cruzam também parcialmente com o CAR, esse número sobe para 87% da área desmatada no Brasil.
Pela primeira vez, o Mapbiomas identificou vetores de pressão do desmatamento, como agropecuária, garimpo, mineração e expansão urbana, entre outros. Os números mostram que 97% de todos os
desmatamentos ocorridos em 2021 tiveram como vetor de pressão a
agropecuária.
Lançado na última segunda-feira (18), o documento conclui que a perda de vegetação nativa no país aumentou 20% em 2021, e que só 5% da área desmatada teve embargo ou autuação do Ibama. Mais de 98% da área desmatada no país tem indícios de ilegalidade.
Nenhuma surpresa
“GUARDIÕES DO BIOMA” REPETE FRACASSO DAS FORÇAS ARMADAS NA AMAZÔNIA
Mostramos nesta quinta (21), no Fakebook.eco , que a operação “Guardiões do Bioma”, lançada em março, repete o fracasso das Forças Armadas na Amazônia. Nos três meses de atuação conjunta dos ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, com apoio da Força Nacional, houve recorde de alertas de desmatamento para o período e foi registrado o maior número de queimadas em 14 anos, segundo dados do Inpe. Já os autos aplicados pelo Ibama por crimes contra a flora nos cinco estados em que há bases da operação caíram 26% no trimestre em relação a 2018. Apesar da desgraça, o ministro do Meio Ambiente disse no Twitter nesta sexta (22) que a operação “tem obtido ótimos resultados” e que o desmatamento caiu. Tudo mentira, como sempre.
Nenhuma surpresa (2)
A MENTIRAS DO GOVERNO SOBRE O FUNDO AMAZÔNIA, SEGUNDO O PRÓPRIO GOVERNO
A Controladoria-Geral União (CGU) confirmou oficialmente o que todo mundo já sabia: o governo Bolsonaro mentiu ao apontar supostas irregularidades como justificativa para congelar R$ 3,2 bilhões do Fundo Amazônia. O dinheiro, doado por Noruega e Alemanha, está parado em uma conta do BNDES desde 2019. Em relatório de avaliação, a CGU destrinchou o método usado pela atual gestão para enterrar o fundo criado em 2008, que se tornou a principal iniciativa mundial de Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+). O Fakebook.eco detalhou as principais conclusões – e mentiras do governo – apontadas pelo trabalho da CGU. Aqui.
Jornalismo Ambiental
LIVRO GRATUITO REÚNE CRÔNICAS DE MARCOS SÁ CORRÊA
O site ((o)) eco, parceiro do Observatório do Clima e do Fakebook.eco, lançou nesta semana o e-book Olhar Perto, Enxergar Longe: Crônicas Ambientais Atemporais, com 98 textos do jornalista Marcos Sá Corrêa. Autor de vários livros, como 1964, Visto e Comentado pela Casa Branca (1977), O Burocrossauro (1983) e Água mole em pedra dura – dez histórias da luta pelo meio ambiente (2006), Sá Corrêa é um dos fundadores de ((o)) eco, que completou 18 anos nesta semana. “As reportagens e crônicas de Sá Corrêa demonstram como ele colocou todo seu talento de jornalista e crítico a serviço da questão ambiental, mas tratada ‘numa abordagem cotidiana, e não catastrófica ou acidental’”, apontou a piauí . Baixe o e-book aqui .
Gostou? Assine!
O post “Na newsletter: London’s Burning, novo fracasso na Amazônia e mais…” foi publicado em 26th julho 2022 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima