Digamos que você tenha um problema com bebida. Digamos que você prometa se emendar e até entre para os alcoólicos anônimos. Mais ainda: marque uma grande reunião dos alcoólicos anônimos na sua casa. E, ato contínuo, vire sócio de um bar e compre uma adega.
Oito meses antes de sediar no Brasil a COP30, o maior evento mundial sobre o combate à mudança climática, e em meio à terceira onda de calor do ano, que derreteu até trilho de trem no Rio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou o Brasil sócio da organização que mais atrapalha a luta contra o aquecimento global, a Opep. Na última terça-feira (18), o Conselho Nacional de Política Energética aprovou a entrada do Brasil no Fórum de Discussão da Opep+, uma espécie de only fans do cartel dos países petroleiros.
Lula vem argumentando desde a COP28, em Dubai, que somente fazendo parte do clubinho será possível pautar a transição energética nos países da Opep. O argumento é tão crível quanto o do bebum hipotético acima de que somente bebendo atrás do balcão será possível convencer os frequentadores do estabelecimento a moderar na cerveja.
Na verdade, todas as atitudes do governo dentro de casa vão no sentido oposto. Que o diga o assédio de Lula sobre o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, para forçar a liberação da licença para perfurar o Bloco 59, na bacia da Foz do Amazonas (cujo nome vem sendo suprimido da comunicação do governo para dar lugar ao tucanismo “Margem Equatorial”). A administração petista está determinada a tornar o Brasil o quarto maior produtor de petróleo do mundo, e a Foz do Amazonas é a primeira estação desse trajeto. Como você verá nesta newsletter, o 59 é o boi de piranha de uma expansão petroleira maciça, que inclui 47 blocos apenas naquela bacia e que garantem o estouro de qualquer orçamento de carbono global compatível com a estabilização do aquecimento global em 1,5ºC, como prevê o Acordo de Paris. A COP? Que durma sob as estrelas .
A imprensa estrangeira, claro, já começou a perceber a contradição entre o Lula líder climático fictício dos fóruns internacionais e o Lula petroleiro real dentro de casa. Sinal de turbulências no caminho da presidência da COP30.
Boa leitura.
A FOZ DO AMAZONAS É NOSSA (NÃO DA PETROBRAS)
Pressão política por licença para perfuração na costa do Amapá vai além do bloco 59; fundação do PT retoma slogan nacionalista da Era Vargas por nova fronteira de exploração
É inaceitável a pressão que Petrobras, Agência Nacional do Petróleo (ANP), Ministério de Minas e Energia (MME) e outras autoridades estão fazendo pela reversão da negativa do Ibama no processo de licenciamento do bloco FZA-M-59 na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, com um empurrão do presidente Lula após a posse do amapaense Davi Alcolumbre na presidência do Senado, no início deste mês.
O presidente do Ibama é a única pessoa que legalmente pode dizer sim ou não para essa perfuração, como faz em todos os processos de licenciamento ambiental de empreendimentos offshore. Toda exploração de petróleo e outras atividades econômicas passíveis de licenciamento ambiental no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva são previamente licenciadas pelo Ibama.
No caso do bloco FZA-M-59, o processo revela que a Petrobras não foi capaz de comprovar até agora capacidade de resposta adequada em caso de eventuais acidentes na perfuração, entre outros problemas. Esse mesmo tipo de deficiência fundamentou a negativa do Ibama em 2018 à perfuração pela empresa Total nos blocos FZA-M-57, 86, 88, 125 e 127, também na bacia da Foz. Considerando toda a costa do país, o Ibama já concedeu mais de 2 mil licenças de perfuração offshore. Nega pouquíssimas, nas situações em que os riscos envolvidos, considerada a sensibilidade socioambiental de cada região, não permitem a concessão da licença.
Por que esse barulho todo em relação ao bloco FZA-M-59, na costa do Amapá, se a Petrobras nem sequer tem certeza de que vai encontrar petróleo lá? A pressão com rompantes de assédio vem do fato de que a licença de perfuração desse bloco funcionará como uma espécie de porteira em alto mar (alô, boiada!) para facilitar o futuro licenciamento de outros blocos na mesma região, que é ambientalmente sensível e com correntes fortíssimas, o que potencializa acidentes na perfuração ou na eventual produção. Essas condições levam a uma atenção mais cuidadosa do órgão ambiental na análise de pedidos de licença. Se a licença for concedida no grito após essa campanha ruidosa de deslegitimação do Ibama, que incluiu a retomada pelo PT do slogan nacionalista da era Vargas “O Petróleo é Nosso” , 72 anos após a criação da Petrobras, a futura rejeição de licenças em condições similares será pouquíssimo provável.
Depende da licença para o bloco FZA-M-59 a motivação de interesse de futuros concessionários pelos 47 novos blocos na bacia da Foz do Amazonas que estão ofertados no leilão da ANP marcado para 17 de junho deste ano. A proposta governamental é que essa bacia sedimentar esteja dominada pela exploração de petróleo nos próximos anos. É a nova fronteira defendida por Lula, Alcolumbre, Randolfe Rodrigues, Alexandre Silveira, Magda Chambriard e vários outros.
Outras áreas de nossa costa também. Como exemplo, no outro extremo da chamada Margem Equatorial, estão sendo ofertados no próximo leilão da ANP blocos na bacia Potiguar em local de extrema sensibilidade ambiental e conectividade ecológica, nos montes submarinos da Cadeia Fernando de Noronha, interligados com o arquipélago e o Atol das Rocas. O leilão também inclui vários blocos na bacia de Pelotas, grande aposta no setor para expansão da exploração offshore de petróleo, região que é berçário de diversas espécies de peixe e habitat de vários tipos de cetáceo.
Serão 332 blocos no leilão deste ano, após os 602 do Leilão do Fim do Mundo de 2023, o maior da história do país. Tudo isso desenha um quadro que vai muito além do licenciamento da perfuração do bloco FZA-M-59, que, tenham certeza, não coloca em risco o futuro do país em caso de negativa do Ibama. O que está em jogo é um projeto de imensa expansão da produção de petróleo, em plena crise climática. O Brasil é o oitavo maior produtor de petróleo do mundo e quer caminhar para a quarta posição. A prioridade é para o dinheiro que o petróleo gera, mas as perguntas são: Quem realmente ganha com isso? Quais os custos associados à expansão da produção de petróleo, considerando tanto os gigantescos subsídios governamentais envolvidos quanto, principalmente, os efeitos da queima de combustíveis fósseis para a piora do aquecimento global?
Nessa história toda é importante desmontar, também, a narrativa de que a expansão da produção de petróleo será relevante para financiar a transição energética, discurso preferido de 9 a cada 10 autoridades do governo federal. O dinheiro do petróleo atualmente explorado, das plataformas em operação, pode e deve ser direcionado para a transição energética, apesar de não haver um plano consistente para isso. No entanto, justificar a expansão da produção para que a transição finalmente ocorra é como provocar uma nova guerra com a justificativa de alcançar a paz. É piorar o problema que a transição pretende resolver. Na prática, negacionismo climático.
Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima
Rio, 44 graus
Brasil já enfrentou três ondas de calor em 2025
Ainda é fevereiro, mas o país já passou por três ondas de calor neste ano. A terceira fez com que o Rio de Janeiro registrasse, na segunda-feira (17), a marca de 44°C , em Guaratiba, na zona oeste. Essa foi a temperatura mais alta já registrada desde o início do monitoramento do Sistema Alerta Rio, em 2014. O recorde anterior era de 18 de novembro de 2023, quando os termômetros marcaram 43,8°C.
Na quinta-feira (20), um trem descarrilou em Magé, na Baixada Fluminense. O motivo? Segundo a SuperVia, os trilhos dilataram após atingirem 71°C .
Além do Rio de Janeiro, as classificações de onda de calor e calor intenso foram aplicadas a diversas regiões do país, incluindo São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Bahia, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Pernambuco, Ceará, Piauí e Tocantins.
Os efeitos têm impactado o dia-a-dia da população. Em São Paulo, crianças passaram mal na escola por falta de infraestrutura adequada para enfrentar o calor. No Rio de Janeiro, pais de alunos da rede pública protestaram por causa da ausência de ar-condicionado nas salas de aula. Em algumas cidades, o turno escolar foi reduzido. No início de fevereiro, a Justiça do Rio Grande do Sul adiou o início das aulas na rede estadual devido às altas temperaturas.
A classificação de onda de calor ocorre quando as temperaturas máximas diárias ultrapassam pelo menos 5°C a média mensal, por um período mínimo de cinco dias consecutivos. A primeira onda ocorreu de 17 a 23 de janeiro, no Rio Grande do Sul. A segunda foi de 2 a 12 de fevereiro e atingiu Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Belém 2025
Brasil começa a delinear sua estratégia para COP30
A presidência da COP30 deve divulgar nos próximos dias uma carta aos outros países integrantes da Convenção do Clima (as “partes”, no jargão horrendo da diplomacia) com a visão do Brasil para a cúpula de Belém. Sem surpresa, o encontro deverá se organizar em torno de quatro eixos: a agenda de negociação, a chamada agenda de ação (compromissos voluntários dos países em torno de assuntos que o anfitrião ache mais relevantes), a cúpula de líderes e a mobilização da sociedade civil. Uma ideia emprestada do G20 é trazer um painel de economistas para propor como integrar clima às decisões econômicas. Outra é criar um grupo de 12 “enviados especiais”, brasileiros e estrangeiros, que aconselharão a COP em vários temas. Um desses enviados já foi ventilado pela imprensa: o brasileiro Frederico Assis, que trabalhará com o presidente da COP, André Corrêa do Lago, em assuntos relacionados a negacionismo e desinformação climática . Na agenda de negociações, o Brasil mapeou até agora 16 temas que deverão ter resultados em Belém, que incluem adaptação, mitigação, transparência e tecnologia.
Belém 2025 II
Presidência brasileira quer COP “sem surpresas”
Na tarefa de reconquistar a confiança entre os países, rompida após o desastre de Baku no ano passado, o Brasil quer evitar, na COP30, segredos, surpresas e algo que poderíamos chamar de “síndrome de Arthur Lira” – textos costurados na miúda e empurrados para decisão coletiva em cima da hora sem terem sido examinados por ninguém. A presidência planeja propor mudanças nas regras de procedimento da Convenção do Clima para que as discussões aconteçam “à luz do dia e sem madrugadas”, como é psicopatologicamente comum em conferências do clima. As boas intenções nesse quesito costumam durar pouco numa COP, já que a dinâmica tensa da negociação frequentemente empurra a presidência para as costuras secretas. Mas levantar o assunto já é um começo.
Preço da qualidade?
93% dos países perdem prazo de NDCs
Apenas 13 países dos 195 signatários do Acordo de Paris cumpriram o prazo de 10 de fevereiro de entrega das suas novas Contribuições Nacionalmente Determinadas, as NDCs. O combinado era que as novas metas nacionais, válidas até 2035, estivessem sobre a mesa no começo do ano para que pudessem ser comparadas às dos amiguinhos e, quem sabe, ajustadas em sua ambição. Mas faltou combinar com a humanidade: somente Emirados Árabes, Brasil, Uruguai, Suíça, Reino Unido, Nova Zelândia, Andorra, Santa Lúcia, Equador, Zimbábue, Cingapura e Ilhas Marshall entregaram no prazo. Os EUA entregaram uma NDC no fim do ano passado, mas Donald Trump deve fazer com o documento o mesmo que Nabhan Garcia sugeriu que se fizesse com o Acordo de Paris . O Canadá perdeu o limite por pouco, e Japão e Montenegro (quem?) entregaram nesta semana. Entregar fora da data não seria problema se isso fosse para garantir que as NDCs estivessem todinhas alinhadas com a meta do acordo do clima de limitar o aquecimento global em 1,5oC. Mas elas não estão, nem estarão. O secretário-geral da ONU, António Guterres, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, anfitrião da COP30, discutem como convencer os retardatários a aumentar sua ambição. O prazo final para as NDCs agora é setembro, Assembleia Geral da ONU, quando Guterres quer organizar um evento sobre o tema.
Central da COP
Chuva de gols contra na cidade-sede
Apesar do apoio da torcida, o estado do Pará, sede da COP30, tem decepcionado na área socioambiental, marcando três gols contra nos últimos meses. O primeiro gol contra foi o aumento na taxa de degradação ambiental, que subiu 421% entre 2023 e 2024. O segundo, a remuneração extremamente baixa dos servidores ambientais, que motivou uma greve da classe. E o terceiro foi a tentativa do governo de extinguir o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), modelo que garante o exercício de aulas presenciais nas aldeias do estado (pelo menos, neste caso, a decisão foi revertida após um importante ato de ocupação, por parte dos indígenas, da Secretaria de Educação do Estado). É o que conta o Imazon, em sua coluna Diário da COP .
Siga o dinheiro (ou a falta dele)
Cortes no orçamento afetam 25 ações ambientais
O Observatório do Clima e outras 11 organizações enviaram a integrantes do Legislativo e do Executivo uma nota técnica sobre o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2025, alertando para os cortes em ações estratégicas da gestão ambiental em relação ao ano interior. Ao todo, 25 áreas foram afetadas, incluindo fiscalização ambiental, enfrentamento de secas, gestão de florestas e o programa Bolsa Verde. Leia a nota técnica aqui .
Cardume
Encontro anual do OC reúne mais de 100 organizações em SP
O Observatório do Clima realizou seu encontro anual na última semana, em São Paulo. Em plena onda de calor, quase 200 pessoas, representantes de 103 organizações, participaram do evento, o maior desde a fundação da rede em 2002. A assembleia elegeu Deroní Mendes, do Instituto Centro de Vida (ICV), e Valéria Paye, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), para o comitê de coordenação, que ganha a participação inédita de uma mulher quilombola e uma mulher indígena. Além disso, a assembleia referendou a recondução de Márcio Astrini para mais um mandato de cinco anos como secretário-executivo da rede, além de recepcionar 14 novos membros. A rede do OC tem, agora, 133 organizações. Mais aqui .
Na playlist
Em homenagem a Lula e Alexandre Silveira, ficamos com os peruanos do Los Mirlos e sua cumbia clássica La Danza del Petrolero . Em tempos de Donald Trump o apelo do Rage Against the Machine: Take The Power Back.
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O post Na newsletter: em meio a onda de calor e a 8 meses da COP, Lula dobra a aposta em petróleo apareceu primeiro em OC | Observatório do Clima .
O post “Na newsletter: em meio a onda de calor e a 8 meses da COP, Lula dobra a aposta em petróleo” foi publicado em 25/02/2025 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima