“Pois aqui, como você vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. Se quiser ir a outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido.” A observação da Rainha Vermelha a Alice no livro de Lewis Carroll poderia ter sido feita nesta semana no Brasil, quando dois suados avanços no campo socioambiental nos colocaram exatamente no mesmo lugar.
O maior deles foi a derrota no STF, na quinta-feira (21), da excrescência jurídica do marco temporal para as terras indígenas. Desde o governo Temer, o entendimento de que os indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988 vinha atravancando demarcações e estimulando invasões. Sob Jair Bolsonaro, a bancada ruralista sentiu-se à vontade para tentar impor o marco temporal como lei – e de quebra destruir completamente a figura constitucional das terras indígenas como bens indisponíveis aos quais cumpre ao poder público apenas reconhecer.
O placar esmagador de 9×2 contra essa tese no STF, que julgava o tema desde 2021, foi uma vitória dos direitos humanos, mas ele não produz avanço algum; só elimina uma tentativa brutal de retrocesso e devolve o país ao lugar de onde jamais deveria ter saído em relação às demarcações.
Da mesma forma, o anúncio de Marina Silva na Cúpula da Ambição da ONU de que o Brasil corrigiria a NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) também pareceu um passo adiante – mas foi literalmente uma volta ao passado. Depois de “pedalar” na meta e dar a si mesmo um passe livre para poluir mais em 2030 do que na NDC original, o governo foi processado e pressionado pela sociedade civil para não retroceder nos compromissos do Acordo de Paris. O Ministério do Meio Ambiente, sob Lula, se dispôs a eliminar a distorção e retornar os níveis de ambição do Brasil aos da NDC de 2015. Travou para isso uma batalha nos bastidores com outras áreas do governo, que acham o compromisso “ambicioso demais” e temem que o país fique “amarrado” a uma meta difícil de cumprir (spoiler: não é difícil, basta retornar o desmatamento a níveis pré-Bolsonaro).
O país precisa celebrar essas duas grandes notícias, mas com um grão de sal. Nem a NDC nem a derrota do marco temporal nos põem onde precisamos estar na resposta à emergência climática e no compromisso constitucional de demarcação de todas as terras indígenas. Para avançar, Lula terá de correr duas vezes mais rápido.
Boa leitura.
9 X 2
Depois de dois anos de julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu na última quinta-feira (21) que o marco temporal das terras indígenas é inconstitucional. Entre os 11 ministros, somente Kássio “Conká” Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados por Jair Bolsonaro (PL), destoaram dos colegas.
A tese do marco temporal, defendida por ruralistas, limitava o direito à demarcação dos territórios indígenas a áreas ocupadas ou comprovadamente reivindicadas pelos povos originários no momento da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Na prática, legitimava o esbulho, violando as garantias constitucionais e inviabilizando novas demarcações.
Na próxima semana, os ministros voltarão a se reunir para discutir a indenização a proprietários de boa fé que estejam ocupando terras indígenas e a exploração econômica dessas áreas, fixando a tese final da corte. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib), a defesa de indenizações proposta pelo ministro Alexandre de Moraes (seguida por Zanin e Toffoli) funciona como uma “premiação” a invasores ilegais, que representam a maioria das propriedades com sobreposição em terras indígenas. Reportagem da Agência Pública mostrou que o custo das indenizações para das dez TIs mais disputadas do país seria de, no mínimo, R$ 1 bilhão.
Apesar da comemoração, os indígenas seguem alertas. Afinal, ainda tramita no Senado um Projeto de Lei que favorece o marco temporal, o PL 2.903/2023. O senador bolsonarista Marcos Rogério (PL-RO), que é relator do projeto (e defensor de criminosos ambientais na Amazônia), tentou acelerar a discussão para antes da conclusão do julgamento no STF, mas a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) pediu vista do texto. A votação está prevista para o dia 27 de setembro, mas a avaliação de especialistas é que a decisão do Supremo barra a ganância ruralista. Leia mais aqui .
Brasil enfim corrige “pedalada climática”
O Brasil finalmente anunciou , durante a Cúpula da Ambição Climática realizada na última quarta-feira (20) em Nova York, a correção da NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), a meta nacional de corte de emissões no Acordo de Paris. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, falou pelo Brasil e leu o discurso do presidente Lula, que adoeceu e não pôde participar do encontro (após uma fala pra lá de correta na abertura da Assembleia-Geral da ONU, na véspera), anunciando à comunidade internacional a retomada da ambição climática apresentada em 2015.
A correção é resultado de anos de intensa mobilização da sociedade civil, incluindo o processo movido por seis jovens ativistas na Justiça contra a chamada “pedalada climática” de Bolsonaro – um aumento nominal na ambição da NDC com uma mudança na linha de base que na verdade elevava as emissões do país em 2025 e 2030, violando o acordo do clima.
Não se trata de avanço, portanto, mas de um “desretrocesso”.
Petro faz (mais um) discurso contundente contra fósseis
A Cúpula da Ambição Climática foi organizada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, na Semana do Clima de Nova York, para que países, empresas e governos subnacionais apresentassem soluções para a crise do clima. Foram convidados países que tivessem algo a anunciar quanto à implementação de iniciativas e aumento de ambição. Entre os maiores dez emissores de gases-estufa do mundo, apenas Brasil, Canadá e União Europeia estiveram presentes.
Mais uma vez, Gustavo Petro, presidente da Colômbia, brilhou na defesa do fim da economia fóssil. Reforçando o papel que desempenhara na Cúpula da Amazônia , lembrou que seu país é o quinto maior exportador de carvão do mundo, e um grande exportador de petróleo – e que nada disso justifica a insistência nesse modelo econômico. Petro afirmou ainda que “as grandes chaminés” que precisam se apagar estão nos Estados Unidos, na Europa, na China e na Índia, jogando luz também sobre a necessidade de responsabilização de grandes emissores de países em desenvolvimento e lembrou que a transição demanda dinheiro e redirecionamento de investimentos para a energia limpa, que devem vir principalmente de fundos públicos. Guterres e Gabriel Boric, presidente do Chile, também foram vozes contrárias aos fósseis. Leia mais aqui .
Senador negacionista passeia em NY na Semana do Clima
Quem não foi visto fazendo anúncios em Nova York na Semana do Clima foi o senador Márcio Bittar (União-AC). O maior negacionista climático do Parlamento foi autorizado por Rodrigo Pacheco a viajar para os EUA (O Globo), às custas do contribuinte, alegadamente para ver de perto como se organizam os climatistas globalistas que ameaçam a soberania da Pátria.
Onda de calor se agrava e já atinge 14 estados
Na segunda-feira (18), publicamos que nove estados brasileiros foram atingidos por uma onda de calor que representava perigo para a saúde. Poucos dias se passaram e a situação piorou, mostra o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura e Pecuária. O grupo formado por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná passaram para a categoria grande perigo, acompanhado pelo Distrito Federal, Bahia e Maranhão. Na zona de perigo entraram Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que foi vítima de grandes temporais recentemente. Os dois estados do sul também estão com previsão de tempestades e rajadas de vento.
Uma onda de calor de grande risco é caracterizada quando a temperatura fica pelo menos 5°C acima da média por no mínimo cinco dias consecutivos. A categoria anterior de perigo é classificada a partir de três dias acima da média. Na quinta-feira (21), as maiores temperaturas foram registradas em Mato Grosso do Sul, quase 41ºC. Já a cidade de São Paul o teve neste ano o inverno mais quente desde 1963. A previsão para o primeiro fim de semana da primavera que chega sábado (23) é de mais calor. Cuiabá deve chegar a 41 °C e pular para 42 °C no começo da semana.
Rio de Janeiro e Alagoas adotam SEEG para reportar emissões
Rio de Janeiro e de Alagoas passarão a usar os dados do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa) para reportar suas emissões e orientar suas políticas de enfrentamento às mudanças do clima. No último dia 14/9, uma cerimônia no Rio marcou a assinatura de um acordo de cooperação técnica entre a Secretaria de Ambiente e Sustentabilidade (Seas) do estado e o Observatório do Clima para permitir o intercâmbio de dados e ferramentas para a produção de inventários. O acordo prevê a utilização “no todo ou em parte” dos dados e documentos analíticos do SEEG sobre a evolução das emissões do Rio e de seus municípios. Instrumento semelhante foi assinado com o governo de Alagoas no final de agosto. Leia aqui .
Estados e municípios passam a boiada no Cerrado
A legalização de diversas irregularidades tem empurrado o Cerrado, a “caixa d’água do Brasil”, a um cenário de descontrole no desmatamento. As autorizações de derrubada da vegetação nativa conduzidas por estados e municípios no segundo maior bioma do país têm sido feitas a toque de caixa, em volume e velocidades que impossibilitam o monitoramento pelos órgãos ambientais, sem transparência nem controle social. Soma-se a isso a validade inaudita das autorizações de supressão de vegetação (que pode ser de até quatro anos), que tem sido utilizada como meio de especulação, com proprietários fazendo “poupança” de permissões de desmate para utilização em momentos economicamente mais propícios. O OC dissecou as razões para o descontrole do desmate no bioma .
Morre Alberto Setzer, pai do monitoramento de queimadas
O engenheiro paulistano Alberto Setzer, criador do programa de monitoramento de queimadas do Inpe, morreu no último dia 8 em Ubatuba, em decorrência de um infarto. Setzer foi o principal responsável por apresentar ao mundo, em 1988, as queimadas fora de controle na Amazônia, publicando um relatório que correu o mundo e forçou o governo Sarney a agir em defesa da floresta criando o Ibama. A piauí publicou a história do pesquisador.
Na playlist
Para sofrer na onda de calor:
– Calor do carai, de Lil Whind – Na semana em que as desventuras amorosas de Luísa Sonza ganharam as redes, vai aqui um rap (trap?) aflitivo de um ex mais famoso (não necessariamente mais bonito) da cantora, o piauiense Whindersson Nunes. Não faltou nem a menção ao BRO-Bró, como é conhecido no Nordeste o período mais quente do ano.
– Too Darn Hot, de Mel Tormé – Essa versão acelerada do clássico de Cole Porter é simplesmente uma delícia de ouvir.
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