Quanto vale uma conferência do clima? Para o governo do Brasil, vale o custo de um aditivo a um contrato de aluguel de navio-sonda. Para não perder o contrato com a embarcação ODN-2, pela qual a Petrobras paga R$ 4 milhões por dia, e que venceria no dia 21, o governo pressionou para que o Ibama expedisse na véspera, dia 20, a licença para a empresa perfurar o poço Morpho, no célebre Bloco 59, na bacia da Foz do Amazonas. O trabalho, que segundo a Petrobras começou no mesmo dia da autorização, abre as águas profundas amazônicas à exploração de hidrocarbonetos: há mais oito blocos em licenciamento na região e outros 19 foram arrematados no leilão de junho da ANP. O Bloco 59 abre a porteira para a boiada passar.
Isso sete dias depois de um discurso de Marina Silva na pré-COP, em Brasília, defendendo um mapa do caminho para o fim dos combustíveis fósseis. E a menos de 20 dias da COP30, a conferência da ONU que um Lula de distante memória se ofereceu para sediar em 2022 sob a promessa de exercer nela a liderança climática de que o Sul Global tanto precisa. Com a licença, a chance de que o presidente brasileiro lidere a discussão mais importante e difícil de Belém – como implementar a decisão de 2023 de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis dos sistemas energéticos – cai para algo muito perto de zero. Na sexta-feira, na Malásia, Lula voltou a louvar o petróleo e repetiu a empulhação de que o dinheiro de sua extração é necessário para a transição energética.
Morpho é o nome de uma grande borboleta azul típica da Amazônia, que encantou naturalistas como Alfred Russel Wallace, pai da teoria da evolução, e Henry Walter Bates. O habitat da morpho está sendo arrasado por incêndios florestais recorrentes causados pela mudança do clima, causada por sua vez pela queima de petróleo. A Petrobras tem o hábito macabro de nomear seus poços e campos offshore em homenagem à fauna impactada por sua atividade: albacora, marlim, lula, jubarte. Se fosse sincera, passaria a rebatizá-los com o nome de tragédias climáticas: “Enchente gaúcha”, “Seca na Amazônia”, “Furacão Maria”, “Vila Sahy”.
Boa leitura.
Governo sabota COP30 e ONGS vão à Justiça contra petróleo na Foz
Organizações ambientais, indígenas, quilombolas e de pescadores apontam vícios no licenciamento e pedem suspensão da perfuração
Na contramão do papel de liderança climática que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz querer assumir, o governo brasileiro aprovou , a pouco mais de duas semanas da COP30, a licença de perfuração de petróleo no bloco FZA-M-59, na bacia sedimentar da Foz do Amazonas. Além de minar a liderança de Lula, a aprovação foi um revés para o presidente da conferência, André Corrêa do Lago, que chegará a Belém com muito a explicar aos parceiros internacionais do Brasil – e mais dificuldade para cobrá-los.
Após quatro anos de pressão da Petrobras e do Ministério de Minas e Energia, o Ibama concedeu a licença na última segunda-feira (20), contrariando pareceres técnicos do próprio instituto e recomendações do Ministério Público Federal. A Petrobras informou que a perfuração começou imediatamente após a emissão da licença.
Na quarta-feira (22), oito organizações e redes dos movimentos ambientalista, indígena, quilombola e de pescadores artesanais entraram com uma ação na Justiça Federal do Pará contra o Ibama, a Petrobras e a União, pedindo a anulação do licenciamento. A ação foi protocolada na 9ª Vara da cidade de Belém e pede, ainda, a suspensão imediata das atividades de perfuração, apontando risco de danos irreversíveis ao meio ambiente.
Segundo as organizações, o licenciamento atropelou povos indígenas e comunidades tradicionais, tem falhas graves de modelagem que põem em risco a biodiversidade e ignorou os impactos climáticos do projeto. Os três vícios fundamentais da licença foram destacados por Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), Confrem (Comissão Nacional para o Fortalecimento das Reservas Extrativistas e dos Povos Extrativistas Costeiros e Marinhos), Greenpeace Brasil, Instituto Arayara, Observatório do Clima e WWF-Brasil, autores da ação.
Quanto ao primeiro item, as ONGs destacam que o licenciamento ocorreu sem a realização dos estudos de componentes indígena e quilombola e ignorou a consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que já são afetados pelo empreendimento desde a oferta do Bloco FZA-M-59.
Em relação à modelagem, identificam falhas técnicas na projeção dos impactos de um acidente com vazamento de óleo, apontando erros no modelo adotado – que não considera as características da região – e nos dados utilizados. A ação demonstra que 20% do óleo derramado num “blowout” afundaria, potencialmente atingindo o Grande Sistema Recifal Amazônico, um ecossistema único e rico em biodiversidade.
Além disso, a Petrobras deliberadamente usou no licenciamento dados de 2013 sobre a hidrodinâmica da região, embora já existam dados de 2024. O próprio Ibama exigiu como condicionante da licença de operação a apresentação de nova modelagem – mas, mesmo assim, deu a licença com base num modelo frágil e desatualizado.
Quanto ao impacto climático, as organizações lembram que desde 2021 a Agência Internacional de Energia alerta que nenhum projeto novo de combustíveis fósseis poderia ser licenciado no planeta caso a humanidade quisesse ter a chance de limitar o aquecimento global a 1,5ºC. Ignorando os alertas da ciência, o Brasil abriu a Amazônia, sede da COP, para uma expansão maciça da produção de petróleo, o principal causador da crise do clima.
(Foto: Sonda de perfuração NS-42, responsável pela perfuração do poço Morpho, no Bloco 59, na Bacia da Foz do Amazonas. Agência Petrobras)
“Subfinanciada e subestimada”
Oitava carta da presidência da COP aponta adaptação como prioridade
Em nova carta apresentada à comunidade internacional, o presidente da COP30, André Corrêa do Lago, defendeu a adaptação como agenda prioritária de Belém. Destacando que, sem adaptação, a mudança do clima se torna um multiplicador da pobreza, destruindo meios de subsistência, deslocando trabalhadores e aprofundando a fome, Corrêa do Lago fez um chamado à ação coletiva. “À medida que os impactos se intensificam, a inação não representa uma falha técnica, mas sim uma escolha política sobre quem vive e quem morre”, escreveu.
O presidente da COP30 reforçou o “ apelo por urgência e por resultados concretos em adaptação” e ressaltou a necessidade de romper o “ciclo vicioso” no qual as conquistas do desenvolvimento são corroídas pelos impactos da crise do clima. “A adaptação não é uma alternativa ao desenvolvimento – é a própria essência do desenvolvimento sustentável em um mundo em mudança climática”, defendeu, lembrando que decisões concretas sobre adaptação em Belém são essenciais para aproximar os debates da comunidade internacional à vida real das pessoas.
Gargalo
Planos nacionais de adaptação avançam, mas falta dinheiro
A carta de Corrêa do Lago citou o relatório publicado pela UNFCCC, a Convenção do Clima da ONU, na última terça-feira (21), que analisou o progresso dos planos nacionais de adaptação. O órgão destaca que há uma mudança significativa de cenário, com os planos nacionais passando da fase de conceituação e planejamento para a de consolidação e implementação. Em 30 de setembro de 2025, 144 países já haviam iniciado a elaboração de seus planos e 67 países em desenvolvimento haviam apresentado suas estratégias à UNFCCC.
Segundo o órgão, houve avanços mensuráveis na implementação de projetos, programas e políticas de adaptação nos países em desenvolvimento. Os desafios, no entanto, permanecem os de sempre: em um cenário em que a maioria dos países dependem de suporte externo, faltam dinheiro e apoio técnico. Como indica a última carta da presidência, o tema será central na COP30, que tem a tarefa de adotar os indicadores da Meta Global de Adaptação. Na conferência de Bonn, em junho, as decisões sobre os indicadores esbarraram justamente no tópico do financiamento.
Ainda há (pouco) tempo
Sociedade civil define seis eixos para sucesso da COP30
Representantes de organizações e movimentos da sociedade civil entregaram à presidência da COP30 um documento com seis eixos norteadores para as negociações da conferência do clima. Para a sociedade civil, a COP30 precisa entregar um pacote político e de negociação que contemple uma resposta política à insuficiência das metas climáticas dos países; criar um mapa para a transição energética; estabelecer um mecanismo global para transições justas; consolidar um pacote de decisões de adaptação ; coordenar o trabalho para acabar com o desmatamento e a degradação florestal até 2030; assegurar um roteiro Baku-Belém para preencher a lacuna de financiamento para a ação climática. O documento é resultado do evento O Caminho para Belém: contribuições da sociedade civil, ocorrido nos dias 14 e 15/10 em Brasília, organizado por Greenpeace, Instituto Clima e Sociedade, Instituto Talanoa, LACLIMA, Observatório do Clima, Plataforma CIPÓ, TNC Brasil, Transforma e WWF-Brasil. Mais aqui .
Ainda há (pouco) tempo 2
Ação climática global falha em todos os indicadores, mostra relatório
Desde a adoção do Acordo de Paris, dez anos atrás, a ação climática avançou em diversos aspectos – mas, em todos eles, de maneira muito mais lenta do que o necessário para atingir o objetivo do tratado e controlar o aquecimento do planeta em 1,5ºC. O relatório The state of Climate Action , lançado na última quarta-feira (22/10), analisou 45 indicadores e concluiu que a ação climática global em todos eles é insuficiente para atingir as metas traçadas para o final desta década. Embora haja crescimento – mais tímido do que o necessário – nas energias renováveis e aumento de financiamento climático, a redução de geração de energia a carvão e do desmatamento permanecem muito distantes das metas traçadas. “Uma enorme aceleração dos esforços é necessária em todos os setores”, dizem os autores, um grupo de especialistas liderado por Sophie Boehm e Clea Schumer, do World Resources Institute.
Novo anormal
Islândia tem primeiro registro de mosquitos em ambiente natural
Três exemplares de mosquitos da espécie Culiseta annulata, duas fêmeas e um macho, foram capturados em um experimento para coletar e estudar mariposas na Islândia. O episódio despertou um novo alerta global para as consequências do aquecimento do planeta para o mundo tal como o conhecemos. Isso porque o país era, juntamente com a Antártida, um dos poucos lugares do planeta sem o registro da ocorrência de populações desses insetos, que se desenvolvem melhor em temperaturas mais altas. A descoberta foi feita pelo naturalista amador Björn Hjaltason, que havia preparado armadilhas para a captura de mariposas em uma localidade a cerca de 30 km da capital, Reykjavík. Leia mais .
Novo anormal 2
CO2 na atmosfera tem maior salto já medido
A concentração de dióxido de carbono na atmosfera global teve em 2024 o maior salto anual já registrado desde o início das medições em 1957. Os dados constam de relatório divulgado em 15/10 pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), órgão das Nações Unidas. De acordo com o documento, a média global de CO2 na superfície aumentou em 3,5 partes por milhão (ppm) no ano passado em relação a 2023 e chegou a 424 ppm, superando o recorde de 2015 a 2016, quando foi verificada uma elevação de 3,3 ppm. O resultado é atribuído no estudo a uma combinação da queima de combustíveis fósseis em níveis elevados, aumento das emissões por incêndios florestais e a queda na eficácia dos sumidouros naturais de carbono terrestres e oceânicos. Mais aqui .
Central da COP
Vitória do meio ambiente em Brasília
Ibama indefere licença para termelétrica
Na última semana, o Ibama indeferiu a licença para a construção da Usina Termelétrica a Gás Natural Fóssil (UTE) em Brasília. A decisão foi tomada com base na inviabilidade ambiental e locacional do projeto e também no que a reportagem de Nívia Cerqueira , da Arayara, aponta como “a maior mobilização comunitária do Distrito Federal contra um empreendimento fóssil”. Em 2024, o Distrito Federal enfrentou a pior crise hídrica dos últimos 50 anos – crise essa que poderia ser agravada com a construção da usina.
Altos e baixos de um atleta jovem
Os problemas com o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre
Apresentado pelo Brasil, o TFFF (Fundo de Florestas Tropicais para Sempre) pretende beneficiar pelo menos 70 países de florestas tropicais e subtropicais úmidas a partir de um aporte total de 125 bilhões de dólares. O projeto é ambicioso, como aponta Carolina Alves , do Inesc, mas ainda requer ajustes como o maior detalhamento sobre o repasse dos recursos e a inclusão de povos indígenas e comunidades locais. O tema será debatido na COP.
Correu pra galera
A Estação Central da COP em versão online
Ao longo de dois meses, 1.300 exemplares da caixa da Estação Central da COP foram distribuídos gratuitamente para escolas, organizações não governamentais e coletivos de mais de 200 cidades. Agora, os materiais passam a estar disponíveis também em versão online. A caixa inclui quatro publicações feitas pelo Observatório do Clima, todas com farta bibliografia científica e amplamente ilustradas. São elas: “Acordo de Paris – um guia para os perplexos”, “Eunice – um guia ilustrado sobre a crise climática”, “Almanaque do clima para não entrar em pânico” e “Álbum de Figurinhas da Central da COP”.
Na playlist
O episódio da semana do podcast “Bom dia, fim do mundo”, que discutiu os fósseis no armário de Lula e Trump – da liberação do petróleo na Foz do Amazonas às investidas militares dos Estados Unidos na América Latina.
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O post Na newsletter: Bloco 59 abre a porteira para a boiada passar e mais apareceu primeiro em Observatório do Clima .
O post “Na newsletter: Bloco 59 abre a porteira para a boiada passar e mais” foi publicado em 01/11/2025 e pode ser visto originalmente na fonte Observatório do Clima
