Não se trata de um problema novo. Entretanto, diante de ameaças como incêndios, invasões, caça, coleta de espécies vegetais e outras, pode passar despercebido, especialmente para quem mora nos grandes centros urbanos e frequenta pouco as áreas naturais.
Foi acompanhando um grupo que fazia a tradicional travessia BH – Nova Lima, em Minas Gerais, que me surpreendi com a reação das pessoas diante da chegada de motocicletas ao cume do Pico Belo Horizonte, cartão postal e ponto culminante da cidade, com 1.390m. Em meio a uma bela paisagem formada por campo rupestre ferruginoso (canga), que abriga diversas espécies endêmicas e ameaçadas da flora, as motos rasgavam a trilha já bastante deteriorada e larga, chamando a atenção daqueles que estavam lá. Ao invés de críticas diante do barulho e da degradação causados, o que se ouviu foram manifestações de admiração em relação à habilidade dos motoqueiros.
Situação diferente eu encontrei em reuniões realizadas com moradores de povoados como Itatiaia, Chapada e Lavras Novas, localizados nas serras dos municípios mineiros de Ouro Branco e Ouro Preto, que tinham bastante clareza em relação aos impactos causados pelas motos. “São pessoas que não contribuem com nada: passam por aqui, estragam as trilhas e vão embora”, comentou um deles.
Quem se dedica à elaboração ou à consulta de planos de manejo de unidades de conservação certamente encontrou referências aos impactos causados por motocicletas. Lembro de um colega do ICMBio, lotado no Parque Nacional de Brasília, que comentava, com frequência, problemas com as motos que invadiam áreas de acesso restrito nesta unidade de conservação.
Em Minas Gerais, particularmente na região da Serra da Canastra , do Quadrilátero Ferrífero e na porção meridional da Cadeia do Espinhaço, o problema se agravou bastante nos últimos anos, principalmente em áreas de grande importância para a conservação da natureza. Ações de fiscalização vêm sendo realizadas, mas nem sempre surtem o resultado desejado, diante da permeabilidade e da extensão de algumas unidades de conservação, com a abertura de um número cada vez maior de acessos clandestinos.
O Parque Nacional da Serra do Gandarela, junto com o seu Conselho Consultivo, vem buscando uma forma de compatibilizar as atividades motorizadas fora de estrada no plano de manejo, em elaboração, a partir de um entendimento com as partes interessadas e da criação de roteiros adequados à prática. Enquanto isso, motoqueiros rasgam áreas preservadas e de alta sensibilidade ambiental no alto das serras que abrigam os poucos remanescentes de uma flora rupestre endêmica já bastante impactada pelo fogo e pela mineração. Assim como em outras áreas protegidas na região, aqui também o diálogo parece não surtir efeito.
Na esfera estadual, um grupo formado em 2019 por representantes do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e do Instituto Estadual de Florestas buscam disciplinar as atividades recreativas motorizadas fora de estrada realizadas em áreas de especial proteção ambiental, situadas na porção Sul da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, que abrange os municípios mineiros de Ouro Branco, Ouro Preto e a região da Serra da Moeda. Uma Avaliação Ambiental Estratégica foi elaborada por solicitação do Ministério Público, seguida de uma reunião pública para debater o tema, mas na prática, até agora nada mudou.
De acordo com o estudo realizado, a circulação de motos, jipes e outros veículos fora de estrada em áreas naturais provoca, entre outros danos, a alteração da estrutura e degradação de solo, com ocorrência de erosões profundas em razão da passagem das motocicletas; poluição por resíduos sólidos; poluição do solo e de cursos d’água, por combustíveis, óleos, graxas; afugentamento de fauna pelo ruído das motocicletas; intervenção em áreas de preservação permanente, com retirada de vegetação nativa; deslocamento de sedimentos, com possível assoreamento de córregos, além de incômodos à população local. O aprofundamento do leito da trilha, por meio da formação de canais por onde a água da chuva e o solo lixiviado escoam, são os sinais mais evidentes da degradação. Em pouco tempo o uso da trilha fica impraticável até para as motos, o que resulta na abertura de novos trajetos paralelos, perpetuando o dano causado.
Os impactos mais graves ocorrem em áreas de relevo acidentado, em campos rupestres quartzíticos e ferruginosos, com a presença de afloramentos rochosos, geralmente associados a solos jovens e de pequena profundidade (neosolos litólicos), mais suscetíveis ao desencadeamento de processos erosivos.
O impacto causado pelas motos não se restringe às áreas naturais, afetando também o patrimônio histórico e cultural. Um bom exemplo é o conjunto de serras denominadas Siqueira, Chafariz e Veloso, nos arredores da cidade de Ouro Preto, que ainda guardam alguns caminhos históricos. Um deles é a estrada de 1718, que segue ao longo da cumeeira da serra. O segundo, construído em 1782 por Dom Rodrigo José de Meneses, governador da capitania de Minas Gerais na época, é conhecido atualmente como Trilha do Chafariz e segue o trecho da Estrada Real que liga Ouro Preto ao distrito de São Bartolomeu. Os dois caminhos ainda apresentam remanescentes de muros de arrimo, drenagens de água e trechos calçados com pedras, apesar de já bastante descaracterizados pela passagem das motos que, além de destruir o que sobrou do antigo calçamento, deixam enormes sulcos e covas pelo caminho. Situação semelhante ocorre na “Calçada de Pedra São Caetano” localizada no Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda e em trechos de antigos caminhos no Parque Estadual da Serra do Ouro Branco.
Segundo alguns gestores de unidades de conservação, o principal entrave para a solução do problema é o perfil dos praticantes, a maioria gente abastada, capaz de arcar com os custos elevados das motocicletas, equipamentos e manutenção, e avessa aos preceitos de boas práticas em ambiente natural. Para piorar, muitas vezes quem deveria coibir a atividade é justamente quem a está praticando: representantes do poder público, pessoas influentes na política e na sociedade, seus familiares e parentes.
Os motoqueiros se defendem alegando que a atividade na região é realizada há mais de 30 anos, auxilia na identificação de focos de incêndio e, principalmente, que contribui com a economia local. O fato é que a alegada contrapartida é inexpressiva e não pode servir de justificativa para a degradação causada pelas motocicletas em áreas protegidas e ao patrimônio histórico. Evidências estão por toda parte, inquestionáveis, e aumentam a cada ano.
Bem diferente dos motoqueiros, a turma do mountain bike dá o exemplo e mostra o caminho correto a partir de iniciativas como a o Projeto Trilhas , voltado para a implantação e recuperação de acessos em áreas naturais, especialmente nos campos rupestres existentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na Serra da Calçada, situada próximo à capital mineira e bastante frequentada por ciclistas e por quem gosta de caminhar, o Projeto, junto com a associação Mountain Bike BH e outras organizações, recuperou diversas trilhas, nascentes e drenagens, algumas destruídas no passado por praticantes de atividades motorizadas fora de estrada.
Cabe lembrar que a presença e os estragos causados pelas motos em unidades de conservação são considerados crime ambiental, de acordo com a Lei 9.605 de 1998 (Lei de Crimes Ambientais):
Art. 40. Causar dano direto ou indireto as Unidades de conservação e as áreas de que trata o art. 27 do Decreto no 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização: Pena – reclusão, de um a cinco anos.
Em Minas Gerais, a decisão judicial de 26 de maio de 2003 (acórdão 1.0000.00.291065-1/000 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais), determina que o Estado de Minas Gerais exija “prévio Estudo de Impacto Ambiental para licenciamento de atividades esportivas que importem o trânsito de veículos automotores em áreas de especial proteção ambiental”. Embora não haja clareza em relação a como este licenciamento ambiental deva ser feito, a medida ajudou a diminuir o número de eventos motorizados que eram realizados sem qualquer preocupação em relação aos danos causados ao meio ambiente.
Embora ainda cercado de fragilidades e desafios a serem superados, o uso público em unidades de conservação vem se consolidando como uma importante ferramenta de conservação. Enquanto atividades como caminhadas e ciclismo despertam no praticante a admiração e o respeito pelo ambiente natural, o motociclismo segue no sentido contrário, ao se consagrar como mais uma prática extremamente danosa ao meio ambiente, que enaltece o que o ser humano tem de pior, como o egocentrismo, a falta de educação e de respeito com a natureza e o próximo.
O impasse continua diante da falta de consenso e de um ordenamento para a atividade, que segue de maneira clandestina, impune e criminosa sob o aspecto do dano ambiental em áreas legalmente protegidas. Diante das limitações e, em certos casos, do desinteresse por parte do poder público, o que nos resta é evidenciar os impactos causados, na esperança de que uma parcela maior da população tome conhecimento da situação e manifeste sua indignação.
Na próxima vez que encontrar motocicletas em uma unidade de conservação, informe educadamente que a prática é proibida no local, registre, divulgue e denuncie esta atividade incompatível com áreas naturais de grande importância para a conservação da natureza.
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O post “Motocicletas em unidades de conservação: egocentrismo, desrespeito e crime ambiental” foi publicado em 6th August 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco