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Quando uma pessoa tem uma trajetória de vida interessante e cheia de reviravoltas, costuma-se dizer que “ela daria um filme”. É certo que a história passada e presente do Vale do Javari, um colosso socioambiental localizado no extremo oeste do Amazonas, rende filmes e livros. E, pela primeira vez, é agora um podcast.
Morte e Vida Javari, que a Agência Pública começa a transmitir hoje, pretende ser uma espécie de biografia. Não de uma pessoa, mas de uma região inteira, o surpreendente e pouco conhecido território na tríplice fronteira de Brasil, Peru e Colômbia. Ele guarda a segunda maior terra indígena do país, com 8,5 milhões de hectares, o equivalente a um país como Portugal, e é considerada a região do planeta que abriga o maior número de povos indígenas vivendo em isolamento voluntário.
EP 1
O primeiro massacre
A escolha dessa região para um podcast se justifica de muitas maneiras. A mais determinante, poderosa e dolorida foi o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips em 5 de junho de 2022, que ainda marcará esse pedaço da Amazônia por muito tempo. Eles foram perseguidos no rio Itaquaí e baleados de surpresa, Bruno pelas costas, por pescadores acusados de depredar ilegalmente a terra indígena.
Nesta quarta-feira, quando esse crime covarde que chocou o país completa dois anos, a Pública divulga o primeiro de uma série de cinco episódios semanais, com cerca de uma hora de duração cada um. Por uma trágica coincidência, o dia em que esses dois defensores dos povos indígenas e da biodiversidade foram assassinados é também, desde 1972, o Dia Mundial do Meio Ambiente.
Morte e Vida Javari é resultado de cerca de 60 dias de trabalho de campo passados em duas temporadas nos anos de 2022 e 2023, quando entrevistei pela Pública, ao lado do documentarista José Medeiros, de Cuiabá, cerca de 40 pessoas. Além dos depoimentos de indígenas, indigenistas, moradores e pesquisadores da região, consultei arquivos, bibliotecas em Manaus e Benjamin Constant (AM) e estudos no decorrer de uma ampla investigação sobre o passado e o presente da região.
O podcast utiliza também material acumulado desde 2013, quando estive na região pela primeira vez, justamente a convite de Bruno Pereira, que na época chefiava o escritório local da Funai. Fomos acompanhar uma assembleia de indígenas Mayoruna numa aldeia localizada lá na distante fronteira com o Peru. Desde então mantivemos muitas conversas. Acompanhei a perseguição que Bruno sofreu, como funcionário da Funai, durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Poucos meses antes de sua morte, Bruno havia me procurado para dizer que estava organizando, ao lado do indigenista da Funai Vítor Txai, uma pesquisa sobre a relação entre a ditadura civil-militar (1964-1985) e os indígenas do Vale do Javari, em especial sobre os impactos causados por atividades realizadas naquela época pela Petrobras.
Como eu havia escrito, em 2017, um livro sobre a ditadura e os povos indígenas, procurei ajudar Bruno a localizar documentos e arquivos – não sei se ajudei muito, pois a Petrobras repetidamente alegou não manter em seu poder documentos sobre os povos indígenas, uma afirmação que causa enorme estranheza vinda da maior empresa do país, na qual se supõe existir uma memória detalhada das suas atividades em todo o país.
O meu trabalho, com esse podcast, de certa forma tenta cumprir o desejo de Bruno, certamente não com a sua capacidade e seus conhecimentos sobre a região, interrompidos de forma traumática e absurda no dia 5 de junho de 2022.
Ao contar a trajetória do Vale do Javari, procurei ir além da ditadura, para a frente e para trás. No episódio desta quarta-feira, o nosso podcast recua 150 anos para recuperar uma violenta expedição liderada, em 1874, por um herói das Forças Armadas e da Guerra do Paraguai. Essa nefasta viagem que o podcast traz à tona, desconhecida pela absoluta maioria dos brasileiros, é apenas um dos momentos que impactaram o Javari e seus povos indígenas.
Ao contar a história desse pedaço da Amazônia, pretendemos jogar luz sobre o processo de ocupação registrado também em várias outras partes da floresta amazônica. Focar no particular para melhor compreender o todo. Como vocês verão, foi um processo extremamente violento, com chacinas e conflitos muitas vezes já apagados pelo tempo e pelo notório desprezo que o Brasil em geral nutre pela história da Amazônia e dos povos indígenas. Os reflexos desse processo se estendem por décadas e de certa forma estão presentes também no assassinato de Bruno e Dom.
Mas muito melhor do que antecipar o conteúdo dos episódios é convidar, como aqui eu faço, as leitoras e os leitores a ouvir e acompanhar, compartilhar e comentar Morte e Vida Javari, disponível em todos os tocadores de podcast e no site da Agência Pública. Os novos episódios serão sempre enviados nesta newsletter, que nas próximas semanas chegará à sua caixa de entrada às quartas-feiras. Acredito que essa viagem muitas vezes difícil é também, sob diversos aspectos, a partir dos erros e problemas que concentra, indissociável para a ideia de Amazônia e de país que se pretende construir para o futuro.
Fonte
O post “Morte e Vida Javari: podcast conta violento processo de ocupação de um pedaço da Amazônia” foi publicado em 05/06/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública