Entre declarações de vergonha, repúdios e perguntas técnicas que não foram respondidas, a audiência pública virtual sobre o novo autódromo do Rio, que deverá ser construído em cima da Floresta do Camboatá, em Deodoro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, varou a noite de quarta-feira (13) para quinta-feira (14) em clima de revolta… do público.
Ambientalistas, biólogos, professores universitários e jornalistas seguraram o sono para participar da audiência pública virtual, adiada diversas vezes na Justiça por conta de inconsistências apontadas no processo, tanto da audiência em si , quanto na fragilidade do Estudo de Impacto Ambiental. Comandada pelo presidente da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca), Maurício Couto, que mediou a mesa, a reunião demorou 5 horas e 40 min para começar a ouvir a população civil.
A audiência é uma das etapas obrigatórias para a obtenção da licença prévia do empreendimento, que irá desmatar entre 114 mil a 200 mil árvores de um dos últimos redutos de Mata Atlântica em terrenos planos na capital fluminense para a construção de um novo autódromo no Rio. O número de árvores no terreno foi objeto de disputa na reunião, com o representante da consultoria Terra Nova – responsável pelo Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) – Diego Rafael dos Santos Peixoto, batendo na tecla que a estimativa era bem mais baixa, de cerca de 114 mil árvores no local.
“Um outro mito que vem sendo divulgado é que a área é o único remanescente de vegetação de terras baixas na cidade do Rio de Janeiro. Em alguns momentos vem sendo divulgados até no estado do Rio de Janeiro. Aqui a gente trouxe três áreas para comprovar claramente que isso não é verdade. A gente tem aqui uma área, lá em Santa Cruz, de floresta ombrófila densa de terras baixas com um total de mais ou menos 250 hectares. Mais do que o dobro na vegetação presente na área do Camboatá. A gente tem dentro da Vila Militar (…) uma área de vegetação de mais de 70 hectares, também de floresta ombrófila densa de terras baixas. A gente tem na Ilha do Governador, próximo ao aeroporto, uma área de mais de 100 hectares de vegetação ombrófila densa de terras baixas. Então esse argumento que é o último remanescente de área florestal de terras baixas, ele não existe”, argumentou o biólogo da Terra Nova.
Três horas após essa fala, o pesquisador do Jardim Botânico, Haroldo Cavalcante, conseguiu a palavra e rebateu a afirmação sobre as outras áreas de terras baixas.
“A floresta do Camboatá é uma área residual de alta diversidade. Isso foi constatado no relatório do Jardim Botânico [do Rio de Janeiro] e foi reforçada pelo diagnóstico do EIA/RIMA. Por isso, Diego, ela foi incluída na relação de espécies pela portaria MMA 463, como área de extrema importância para a conservação da biodiversidade e também para a restauração de fragmentos de floresta de terras baixas do município do Rio de Janeiro. Porque não existem mais outros fragmentos da relevância dele. Esses áreas que você falou, na realidade, são formadas por áreas degradadas secundárias, ricas em frutíferas, cultivadas, e a Floresta do Camboatá é uma área de floresta primária degradada. É diferente. Por isso ela foi incluída como área MA 122, anota aí Diego, foi incluída na portaria do MMA 463, de 2018, como área de extrema importância de conservação. E ela tem 19 espécies ameaçadas, que são profundamente impactadas pela extinção in situ, não é na natureza, é a extinção local, in situ, e os fragmentos remanescentes após a supressão eles vão ficar completamente deteriorados pelos efeitos de borda. E esse EIA/RIMA é completamente omisso em relação à relevância da área. Pelo contrário, muitas vezes ele tenta desqualificar essa área, usando de forma tendenciosa, como já disse Rogério Rocco, os dados do diagnóstico ambiental. Isso é deprimente. Também é inadmissível que uma área com essa relevância passe na análise da Consema e da CECA sem receber uma crítica negativa. Esses conselheiros são representantes da sociedade”, diz Haroldo, antes de ter a fala interrompida.
A audiência virtual estará disponível no YouTube até o próximo sábado, dia 22 de agosto .
Reunião demorada
Até meia noite, a reunião se limitou as falas dos representantes que estavam na mesa formada por Breno Pantoja, representando o INEA; Douglas Moraes, coordenador da CEAM, Antonio Luiz Barboza Correia, representando a Prefeitura do Rio; José Antonio Soares Pereira Júnior, presidente da Rio Motorpark, a única empresa que concorreu na licitação do autódromo; Diego Rafael dos Santos Peixoto, da consultoria Terra Nova, empresa que fez o EIA/RIMA e de Maurício Couto, presidente da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) e mediador da mesa.
Um vídeo publicitário realizado pela empresa, com moradores de Guadalupe em favor do autódromo, bairro próximo de Deodoro, foi apresentado durante a audiência pública. Apesar do aparente apoio popular, apenas duas pessoas se dispuseram a defender a construção do autódromo na audiência pública. Por 4 horas, mais de 60 pessoas aguardavam para criticar o formato da audiência, realizada pela internet, e repudiar a construção do empreendimento em uma área com floresta. Cada uma teve 3 minutos e nada mais para fazer perguntas ou deixar um recado. Em inúmeras vezes a pergunta feita não foi repassada ao empreendedor ou ao representante da empresa que fez o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Por pelo menos duas vezes questionamentos sobre o financiamento do empreendimento não foram respondidas, uma feita pelo procurador Daniel Prazeres, e outra feita pelo jornalista Roberto Kaz, da revista Piauí.
“Achei um pouco estranho o laconismo do empreendedor em relação aos valores de financiamento. De onde vem o dinheiro, mas principalmente pontuando que existem economistas, que a gente vem acompanhando, que depois da pandemia tem risco de quebra sistêmica, estrutural, na economia. Se o empreendedor tem alguma coisa a dizer em relação aos recursos após a pandemia. Só para finalizar isso e bom dia a todos”, perguntou o procurador Daniel Prazeres. “A empresa se reserva o direito de não informar informações estratégicas nesse momento”, respondeu o presidente da Rio Motorpark.
Perguntado sobre o porquê o empreendimento insistia com a construção em Camboatá, o empresário José Antonio Soares Pereira Júnior afirmou que o terreno foi escolhido em acordos feitos entre a Prefeitura, o estado e a União.
Já o representante da Prefeitura na audiência, Antonio Luiz Barboza Correia, alegou que a floresta só estava protegida porque o Exército cuidava da área. Como houve a cessão para o município, caso o autódromo não seja construído, a floresta será invadida, portanto, que o autódromo seja construído, defendeu. O representante do Ministério Público Federal, procurador Daniel Prazeres, rebateu a afirmação e afirmou que a cessão está condicionada à construção do autódromo, ou seja, sem construir, o terreno volta para o Exército, ou poderá ser anexada ao Parque Estadual do Mendanha, pois já há projeto de lei tramitando nesse sentido na Assembleia Legislativa.
“Primeiramente queria sinalizar o quão claro esse empreendimento é um exemplo de injustiça ambiental, onde aqueles que vão arcar com as consequências dos impactos ambientais é um grupo populacional de grande vulnerabilidade, como sinalizado pelo representante aí da Prefeitura, senhor Antônio [Luiz Barboza Correia], que tem o índice de IDH baixo, um índice de analfabetismo muito grande, inclusive é facilmente ludibriado por essas pessoas que aí estão. Além disso, e inclusive esses impactos já foram citados por vários, inundações, aumento de temperatura, a questão dos ruídos, a destruição da fauna e da flora, entre outras coisas, alega-se uma falsa promessa de geração de emprego num esporte que é completamente elitista, que precisa de um corpo técnico que saiba trabalhar que não é esse corpo que está ai presente nessa população local. O que vocês estarão gerando são subempregos. Na verdade esmola, na verdade migalha para essas pessoas, em troca da piora da qualidade de vida delas. Vale ainda lembrar o artigo 225 da Constituição Federal, que garante o direito ao meio ambiente sadio à população, direito ambiental é difuso inclusive porque não se restringe a uma pessoa e sim ao direito de toda uma sociedade. Ainda por cima, falando de direito ambiental, o próprio princípio de precaução e de prevenção está sendo descartado muito fácil pelas pessoas que só querem o lucro. Sejam as pessoas que são representantes, que soam antiéticas inclusive, da própria ciência, ou até mesmo o empresário. Por fim gostaria de registrar inclusive a má-fé, tanto da empresa quanto do biólogo Diego, pela fala propositalmente equivocada, desde subverter o que está escrito na Lei da Mata Atlântica, falando da questão das espécies em extinção, até mesmo falar de uma frase que foi, desculpa, ridícula, de apenas 42% [de floresta primária no terreno]. Se você for reduzido a 42% do seu salário quero ver se o senhor vai gostar. Ou mesmo o Jacaré do Papo Amarelo vivendo no esgoto, enfim. Inacreditável, fica aqui o meu repúdio”. João, professor e educador ambiental.
Criança não aguentou esperar
Uma das pessoas que aguardavam na sala remota para se pronunciar foi o pequeno Felipe Smith, que ficou acordado até às 1h30 da manhã porque queria ser ouvido, mas acabou dormindo. A sua mãe, Letícia, aguentou acordada até às 3h para falar em nome dele. Com a voz arrastada, com aparência cansada, disse sentir vergonha da mesa. “Estou representando meu filho porque ele está querendo defender essa floresta. Ele é a favor de defender todas as florestas. Ele, com seis anos, sabe que todas as florestas do mundo são mais importantes do que qualquer papinho de biólogo de empresa (..). Todas as pessoas sentadas aí era para estar representando nós como população, e vocês estão só fazendo a gente passar vergonha”, afirmou.
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O post “Manifestação do público em audiência pública do autódromo do Rio começou meia noite” foi publicado em 13th August 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco