Por Fábio Bispo (dados, gráficos e texto) e Lúcio Lambranho (apuração, entrevistas e texto)
Edição: Maurício Angelo
A produção de alimentos, a redução do êxodo rural e a proteção ambiental, especialmente nos estados da Amazônia e do Nordeste, estão ameaçadas pela cobiça de mineradoras atraídas pela busca de minerais críticos no país.
É o que releva o levantamento exclusivo realizado a pedido do Observatório da Mineração pelo Catarina LAB (Laboratório de Inovação em Jornalismo) sobre a interferência de requerimentos de mineração relacionados a substâncias estratégicas para a transição energética em assentamentos criados pela reforma agrária no Brasil.
A análise identificou 3.391 processos minerários com sobreposições em 1.432 áreas demarcadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A distribuição destes interesses de exploração abrange 25 estados brasileiros.
Quase metade dos projetos de mineração em busca dos minerais estratégicos com interferência em assentamentos rurais estão na Amazônia Legal, que concentra 52% das áreas de mineração em assentamentos. Nos nove estados da Amazônia são 1.765 projetos minerários sobrepostos a 729 assentamentos. O Pará lidera o ranking em todo o país, com 1.207 processos minerários em 460 assentamentos.
O Nordeste é a segunda região com maior número de processos minerários com sobreposições em assentamentos rurais, reunindo 40% das ocorrências. A Bahia (426 processos minerários em 188 assentamentos) e o Ceará (358 processos em 177 assentamentos), concentram grande número de áreas em conflitos. No Sudeste, Minas Gerais se destaca com 82 processos sobrepostos a 37 assentamentos.

Dos 3.391 processos de mineração com interferência em assentamentos rurais, 1.938 estão em fase de autorização de pesquisa e 694 em fase de requerimento de pesquisa. Pelo menos 108 processos estão em fase de requerimento de lavra e 70 em fase de concessão de lavra. Destaca-se o grande número de processos nas fases de disponibilidade (322) e apto para disponibilidade (231), que apesar de ativos no sistema da ANM indicam que serão devolvidos para a agência e podem ser requeridos por outras mineradoras.
Neste tipo de procedimento , a agência seleciona interessados em continuar a exploração que já tinha sido concedida, mas por algum motivo (caducidade de título, abandono da jazida ou mina, desistência e renúncia ao direito minerário) perderam o direito de tocar os projetos.
A pesquisa considerou substâncias chave para a transição energética de acordo com o padrão da Agência Internacional de Energia, como cobre, manganês, níquel, alumínio e bauxita, lítio, cobalto, vanádio, terras raras e nióbio.
A lista de empresas com o maior número de requerimentos sobre assentamentos rurais inclui gigantes multinacionais como a Nexa, sediada em Luxemburgo, a chilena Codelco, as australianas Fortscue e Rio Tinto, a brasileira Vale, a britânica Anglo American e a suíça Glencore, entre outras.
O Observatório da Mineração irá abordar, nas matérias seguintes desta série, como esses interesses têm afetado os assentamentos em diferentes regiões do Brasil.
Foto de destaque: Assentamento rural Tuerê no Pará / INCRA / Divulgação
Norma do INCRA ampliou interesse minerário em assentamentos rurais
Depois que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) editou em 22 de dezembro de 2021, a Instrução Normativa 112, que estabeleceu regras para uso de áreas de assentamentos por empreendimentos para atividades de mineração, além de projetos de energia e infraestrutura, foram abertos desde o começo de 2022 até agora 982 processos com 1.337 sobreposições em assentamentos.
A maioria deles está ainda na fase de requerimentos de pesquisa e de autorização de pesquisa, mas 14 estão aptos para disponibilidade, seis em disponibilidade e três têm requerimentos para lavra garimpeira, todos requeridos por cooperativas de garimpeiros.
Desde que a norma do Incra foi editada ainda no governo Bolsonaro, movimentos sociais ligados à luta pela terra e reforma agrária tentam revogar a medida que, na prática, abre a possibilidade para que o direito a terra e o uso social dela em assentamentos já regulamentados pelo governo federal seja menor que o das mineradores para explorar estes minerais.
Mas as tentativas de barrar a cobiça das mineradoras que tem gerado ainda mais conflito no campo em regiões já conflagradas por disputas fundiárias, especialmente na Amazônia, ainda não ganharam a adesão mesmo no governo Lula, que segue a lógica do governo anterior de dar prioridade para os negócios que podem ser gerados.
Isso inclui promover acordos internacionais com pouca transparência e nenhuma garantia para as comunidades tradicionais e o meio ambiente, com os grandes interessados pelo potencial brasileiro como nas aproximações com Estados Unidos , China e ditaduras árabes .
O direito dos assentados ainda parece ser menos importante do que os definidos na política Pró-Minerais Estratégicos (PME) do Brasil, criada durante o governo Jair Bolsonaro para incentivar projetos de produção de minerais estratégicos “para o desenvolvimento do país”.
A PME ainda em vigor decidiu não usar o termo “minerais críticos”, mas sim “minerais estratégicos”, considerando um conceito mais amplo, o que permitiu a inclusão de substâncias que não têm nenhuma relação com a transição energética, como ouro, ferro e potássio, por exemplo.
Mesmo sem foco na adaptação climática, a PME no Brasil tem sido a base para investimentos que visam a questão climática na área de mineração. Em maio de 2024, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a mineradora Vale anunciaram a criação de um fundo de investimento focado em projetos para transição energética, com aportes de até R$ 250 milhões do banco público. O fundo elencou praticamente as mesmas substâncias do PME, com exceção de ouro.
O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2023, também prevê investimentos públicos da ordem de R$ 281 milhões até 2026 em pesquisa mineral para a transição energética.

Movimentos sociais do campo querem revogação da Instrução Normativa
Em junho de 2024, dentre série “Direito à Terra e ao Território” a Fase (Solidariedade e Educação) editou a nota técnica contra a norma do Incra: “Pode a mineração se sobrepor à reforma agrária? , com o apoio de outras 12 entidades para pedir a revogação do texto para o atual governo.
Em resumo, a análise jurídica e política da nota afirma que o procedimento do Incra “enfraquece a política de reforma agrária na medida em que cria dispositivos que facilitam a disponibilização das áreas de assentamentos à mineração e grandes empreendimentos econômicos, contornando os procedimentos já existentes para análise da (in)compatibilidade entre a natureza desses empreendimentos e a destinação dada à área para fins de reforma agrária”.
Antes da assinatura desta nota técnica e da formação de uma coalizão de entidades contrárias à abertura da mineração em assentamentos, e da qual o Observatório da Mineração faz parte, outros dois documentos já pediam a revogação da instrução normativa.
Um deles da Defensoria Pública da União no “Apontamentos para uma justiça de transição a partir das eleições de 2022: Uma análise normativa e de políticas públicas” de novembro de 2022. No texto é sugerida a revogação da IN 112/2021. Segundo o documento, a citada norma gera o “esvaziamento da política de reforma agrária, transformação de assentamentos em ativos financeiros e o “fomento de conflitos no campo”. Em documento expedido em 19 de junho de 2023 por Cláudia Maria Dadico, diretora de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Incra, é recomendada a revogação do da IN 112.
A indefinição no governo Lula III aliada a baixa nas ações de reforma agrária tem sido criticada pelos movimentos sociais, especialmente os ligados à luta dos assentados por acesso à terra.
“A permissão de avanço de mineração em áreas de assentamento foi um ato covarde, porque todo mundo sabe, e o Incra é o maior sabedor disso, que os assentamentos são criados para produção de alimentos. Defendemos que a terra deve ser entendida como espaço de proteção ambiental e de espaço onde possa ter uma vida saudável, respeitando, claro, a natureza”, avalia Alair Luiz dos Santos, Secretário de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag).
O governo atual, segundo o dirigente da entidade, tem muita dificuldade de fazer aquilo “que é o desejo do próprio governo”. Sobre a revogação da norma do Incra, Alair afirma que, na atual conjuntura, o governo está “com pés e mãos atadas”.
“Sabemos que tem ministérios que fazem parte do governo que não estão nem aí para a questão da vida no campo. O Ministério da Agricultura, que eu posso citar, defende o agronegócio, defende a expansão econômica pensando no avanço para ganhar dinheiro, seja na produção de commodities do agronegócio, seja na exploração minerária também”, diz.
Para o representante da Contag, a reforma agrária no Brasil não conseguiu avançar ainda, principalmente depois da queda da presidente Dilma em 2016. E no atual governo, apesar do anúncio de contratação de 700 servidores para o Incra, esse contingente será insuficiente ao ser dividido em 30 superintendências do órgão federal.
“As respostas que o governo vem dando não atende às necessidades. Tanto é que o anúncio feito semana passada em Minas Gerais de assentar um pouco mais de 12 mil famílias em novos projetos de assentamento não faz frente porque temos praticamente 150 mil famílias cadastradas, só entre famílias de acampados. O governo até tem uma certa vontade de fazer a reforma agrária, mas o restante, o congresso nacional, é contra. O grande desafio para os movimentos sociais é tentar fazer com que um próximo congresso tenha um olhar diferente em relação à reforma agrária”, avalia.
Vanderly Scarabeli, um dos coordenadores do MST no Mato Grosso, avalia que o governo atua em duas dimensões da sociedade brasileira, a do capital, que é a que tem mais força e que manda no Congresso e no Judiciário e manda também, segundo ele “de certa forma, no governo”.
“Então há uma situação de correlação de forças, até de projeto político que não enfrenta essa situação. E lá na normativa está dizendo que um dos ganhadores são os trabalhadores, mas com sua normativa só perdem. O capital ganha, o Incra”, critica.
Para Scarabeli, ficou claro que os setores do Incra, principalmente no período do governo Bolsonaro e mesmo agora, são levados a estimular a mineração nas áreas camponesas e quilombolas. “Que tipo de ganho será que o Incra pensou com essa normativa? Se fosse algo justificado para desapropriação não justificaria, porque aí você ia desassentar, tornar a pessoa sem terra para se assentar de novo. Seria uma medida equivocada”, diz.
“Quem ganharia com isso é o capital das empresas mineradoras e funcionários corruptos do Incra. Obviamente, não estou generalizando, longe disso. Mas nós também não temos dúvida que há setores dentro do próprio Incra que se corromperiam ao estimular os assentados a aceitar a mineração”, completa ao citar que em um assentamento do Mato Grosso, os funcionários do órgão federal foram até o assentados para estimular acordo com empresas de mineração.

Luiz Cláudio Teixeira, historiador e integrante do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), também defende a revogação da instrução normativa, mas acredita que este ato não bastaria para resolver os problemas nos assentamentos relacionados com a falta de apoio para produção e sustentabilidade das famílias.
“É preciso criar e estabelecer normas que possam ser seguidas dentro dos parâmetros legais para a futura exploração ou não de um assentamento. Direcionada nos interesses do assentamento e dos assentados para que eles possam ter condições de produzir. Não dá para colocar uma coisa na balança e dizer que o ouro pesa mais do que um quilo de feijão”, avalia
Para Teixeira, esta instrução normativa vem dentro de um processo sem debate na sociedade sobre o que se quer sobre o futuro do país e sem uma consulta aos assentados.
“Nós entendemos que não se trata de uma consulta prévia, mas que é necessário que se ouça os assentados. Sabemos que muitos assentamentos estão deficitários, não possuem estruturas para sua produção e muitos assentados são abandonados nesse processo, por conta da dificuldade do Incra em cumprir com aquilo que é a sua missão e também com a dificuldade logística mesmo de pessoal, de falta de pessoal, de falta de estrutura”, acredita.
Segundo Teixeira, a instrução normativa atropela todo esse processo e entrega o que é o patrimônio da União e o que seria a missão fundamental do Incra, que é de promover reforma agrária, nas mãos de interesses minerários, que não são interesses do Estado. “Nós entendemos que fundamentalmente o Estado e o governo deveriam garantir a reforma agrária, garantir estrutura e condições aos assentados e àqueles que demandam terra para produzir alimentos”, diz.
ANM diz que tentativa de barrar mineração em assentamentos em 2009 não foi confirmada e que não há legislação que impeça a outorga em áreas tituladas pelo Incra
A ANM confirmou, após ser questionada pela reportagem, que realiza outorgas sobre áreas de assentamento e que “a princípio” não há vedação legal para indeferimento de requerimento de título que esteja em sobreposição com áreas destinadas a projetos de assentamento, assim como não “há motivação para anular atos de autorização ou outorga de processos inseridos sobre projetos de assentamento”.
A agência reguladora também informa que “não possui um rito de procedimento especial para áreas inseridas em projetos de assentamento”. E que a instrução normativa nº 112/2021 tem aplicabilidade somente nos processos de tramitação no Incra.
A última tentativa de barrar a exploração mineral em assentamentos aconteceu em 2009, no segundo mandato do atual presidente Lula. Por meio da portaria Conjunta DNPM/INCRA N° 01/2009, segundo o parecer da Defensoria Pública da União de novembro de 2022 que pede a revogação da instrução normativa, o Incra considerava incompatível a atividade minerária quando o empreendimento afetava diretamente o desenvolvimento do projeto de assentamento, total ou parcialmente, ou quando exigia a realocação de famílias ou causava dano ambiental significativo, bem como quando há qualquer conflito de interesse.
Segundo a ANM, a portaria gerou na época um ofício do Incra ao então Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para que a esta autarquia extinta com a criação da atual agência em reguladora em 2017, “não mais outorgasse títulos minerários em áreas onde se realizaria o assentamento de famílias para fins de reforma agrária, requerendo o bloqueio da área objeto de desapropriação para fins sociais”. E que para a “solução desse conflito”, foi criado um grupo de trabalho formado por integrantes das áreas técnicas e jurídicas de ambas as autarquias – por meio da Portaria Conjunta DNPM-INCRA nº 104, de 25 de março de 2009.
Mas nada foi resolvido, de acordo com a resposta da ANM enviada ao Observatório da Mineração. “Uma vez que ambas as atividades – mineração e reforma agrária – gozam de proteção constitucional, o conflito entre elas há de ser solucionado pelo Estado por meio de entendimento construído por ambas as autarquias com fundamento nas características de cada caso concreto. Todavia, as tratativas não avançaram e não culminaram com a edição de qualquer normativo”, diz a agência reguladora.
O Observatório da Mineração tenta desde o dia 11 de março ouvir o Incra sobre as sobreposições de processos minerários nos assentamentos e os pedidos de revogação da instrução normativa. Ainda não conseguimos retorno aos questionamentos apesar de trocas de mensagens e telefonemas com a assessoria de comunicação. O espaço continua aberto para manifestação do órgão federal que cuida da reforma agrária.
Fonte
O post “Levantamento exclusivo revela que cobiça por minerais críticos invade assentamentos da reforma agrária” foi publicado em 25/03/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração