Nos últimos anos, o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) proporcionou formações a equipes sobre Racismo Estrutural e suas nuances. Com a intenção de realizar o aprofundamento das discussões, se sucederam duas formações sobre Antinegritude e Cárcere. Entendemos que no Brasil, discutir o termo “racismo” é muito importante, porém seu uso tem se tornado cada vez mais genérico para descrever as violações que ocorrem todos os dias contra a população negra.
A professora assistente da African American Studies, Kihana Miraya Ross * estuda a Antinegritude e a descreve como uma incapacidade de reconhecer a humanidade negra, de negar a realidade de que o tipo de violência que satura a vida negra não se baseia em nenhuma coisa específica que uma pessoa dessa cor fez. E a verdade, diz Kihana, é que essa violência é gratuita e implacável.
No Brasil, a política de extermínio utilizada contra a população de pele preta não é genérica. Balas perdidas com endereço certo e 100 tiros contra um único carro não são levados com a seriedade devida, sendo, por muitas vezes, tratados com leviandade e considerados uma fatalidade.
A doutora em antropologia Dina Alves, na entrevista “We die because of our color “, afirma que a existência de uma pessoa negra já é um crime: “as práticas rotineiras de policiamento de comunidades predominantemente negras, o crescimento nas estatísticas prisionais de mulheres negras e as chacinas podem ser lidos como um diagnóstico da insidiosa persistência do racismo, e dessa colonialidade abrasileirada da justiça branca e rica, e de réus e rés pobres e negras.”
A Antinegritude é radicalmente distinta do racismo. Enquanto o racismo presume uma semelhança entre as opressões de grupos não brancos, a Antinegritude – que é um aprofundamento dos estudos raciais – pressupõe que não existe nenhuma analogia possível, uma vez que os negros estão excluídos de qualquer noção de humanidade.
De acordo com o antropólogo João Costa Vargas, no artigo “Terror sexual é genocídio: o estupro da mulher negra como elemento estrutural e estruturante da diáspora – por uma análise quilombista da Antinegritude “, o estupro torna a mulher negra “não mulher”, sem ser considerada sequer uma pessoa.
A Antinegritude traz à tona uma desumanização radical, subtraindo dessa mulher o gênero normativo e a sexualidade.
O texto também aborda uma temática interessante acerca dos estudos críticos do racismo, pois até mesmo eles tendem a tratar a experiência negra de homens cis. As mulheres negras, que também sofrem violências diretas das mais variadas formas, são esquecidas em diversas estatísticas. Fato é que elas são maioria nas unidades prisionais, tanto como encarceradas, quanto como visitantes.
- MULHERES MIGRANTES
Em um caso recente atendido pelo Projeto Mulheres Migrantes (PMM), do ITTC, uma senhora preta de 62 anos teve a volta ao seu país negada. Ela já havia cumprido sua pena no Brasil e estava com a saúde extremamente debilitada. Mesmo tendo um processo parado, sem sentença e nos seus últimos momentos de vida, foi impedida de ver a família e morreu no Brasil, sozinha.
Heloísa Freitas, pesquisadora do projeto, a visitou no hospital e contou que ela já estava morta socialmente no primeiro encontro, sozinha em um país que não lhe pertencia. O efeito da Antinegritude atingiu até a família dessa mulher, mesmo depois de cumprir sua pena e já estar morta. Todos sofreram as consequências, pois não tiveram o direito de participar dos últimos momentos de vida e enterrá-la.
Ao contrário dessa senhora, muitas outras mulheres atendidas pelo ITTC passam pelo processo de expulsão do país após cumprirem suas sentenças. No Brasil, os requisitos para que a mulher migrante permaneça no país são casamento ou maternidade, o que configura mais uma profundidade da Antinegritude: o controle que o Estado exerce sobre os corpos femininos, sobretudo negros, já que a maioria nesse contexto tem essa cor. Assim, elas são posses da sociedade e não de si mesmas. Não existem, portanto, violências válidas contra as mulheres negras, apenas as feitas por elas.
As consequências da Antinegritude são extremamente violentas, podendo aparecer já no nascimento: nas taxas de mortalidade infantil e materna , na insegurança alimentar e na educação de menor qualidade , associadas à negação de moradia digna nos grandes centros**. Pessoas negras nascem predestinadas a uma morte social antes mesmo da física. Sem falar nos óbitos evitáveis causados ou facilitados por agentes do Estado.
Portanto, o estudo do termo Antinegritude é parte da criação de um novo mundo, onde os crimes contra a população negra não sejam justificáveis politicamente. E que todas as pessoas pretas possam ter suas vivências e corpos respeitados, sem se preocuparem com toda a violência gratuita que sofrem diariamente.
Autor deste artigo: Aline Novakoski – Estudante de Jornalismo – Estagiária de comunicação do ITTC
(com edição de Joana Suarez, gerente de jornalismo d’AzMina)
O ITTC Explica agora é uma coluna publicada em parceria com a Revista AzMina, veículo independente focado na cobertura de temas diversos com recorte de gênero. Confira no link a seguir: https://azmina.com.br/colunas/o-que-e-antinegritude/
Referências:
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.
ALVES, D. (2017). Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, p. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi.
**MARINGONI, Gilberto. O destino dos negros após a Abolição. Desafios do Desenvolvimento, Brasília, DF v.8, n.70, 2011, p.34-42.
*ROSS, kihana miraya (2020). Call It What It Is: Anti-Blackness. The New York Times.
VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2020 – n. 45, v. 18, p. 16-26. Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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O post “ITTC EXPLICA: O que é Antinegritude?” foi publicado em 5th April 2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC