Por Lúcio Lambranho e Fabio Bispo (dados)
Edição: Maurício Angelo
Além de ter o maior número de processos de interesse por minerais críticos sobrepostos em áreas de assentamento rurais do Brasil, como o Observatório revelou na primeira reportagem sobre o tema , o Pará concentra, na mesma área requerida por grandes mineradoras, vários conflitos fundiários, de acesso à terra e à água que podem complicar ainda mais a vida dos trabalhadores rurais e a produção de alimentos.
Nos assentamentos do Incra situados em cidades paraenses marcadas por conflitos no campo, como Canaã dos Carajás, Ourilândia do Norte, Parauapebas, Marabá, Eldorado dos Carajás e Tucumã, o levantamento encontrou 372 processos com 689 sobreposições de áreas requeridas pelas mineradoras na ANM para extração de cobre, níquel e manganês. Esse recorte do sudeste paraense se insere dentro da realidade do Pará, que lidera o ranking em todo o país, com 1.207 processos minerários em 460 assentamentos.
A Vale é a principal empresa identificada e o interesse da mineradora está concentrado na extração de manganês, níquel e cobre. Entre essas áreas requeridas pela empresa, a maioria está na fase de pesquisa na Agência Nacional de Mineração (ANM), mas cinco já se encontram em fase mais avançada, de lavra.
Em um assentamento localizado em Tucumã, uma das áreas demarcadas com maior número de processos e que, segundo o Incra, abriga 3.743 famílias de assentados, a Vale mira a exploração de níquel e cobre.

Questionada pela reportagem sobre a sobreposição de processos de seu interesse em assentamentos, a Vale alega que o direito minerário envolve várias etapas e que “maioria dos investimentos em pesquisa não resulta na descoberta de um depósito mineral” e que mesmo naqueles com “sucesso“, “nem todo o projeto se concretiza, pois depende da viabilidade social, ambiental, técnica e econômica”. “Ou seja, ter um direito minerário em área de assentamento não significa a concretização de um projeto mineral no local”, afirma a Vale.
A empresa também acredita que “informações constantes no site da ANM podem estar em processo de atualização, o que pode gerar análises imprecisas sobre a real titularidade das empresas em relação a seus direitos minerários vigentes”.
Outra empresa que aparece entre os processos da região sudeste do Pará com sobreposição em assentamentos é a Codelco do Brasil, com foco em cobre, uma subsidiária da Codelco chilena, uma das maiores empresas de cobre do mundo. O Observatório pediu posicionamento sobre os processos para a Codelco, mas até o fechamento desta edição ainda não recebemos retorno. O espaço continua aberto para a manifestação das empresas.
Foto de destaque: Trem da Vale atravessa a zona rural de Parauapebas, entre assentamentos, levando o minério extraído até o porto de São Luís no Maranhão. Crédito: Ingrid Barros/Observatório da Mineração
Assentamentos no entorno de Floresta Nacional no Pará sentem os impactos da exploração de bauxita
A Floresta Nacional Saracá-Taquera, entre os municípios de Faro, Oriximiná e Terra Santa, tem a sua área superior a 400 mil hectares ocupada mais de 33% pela atividade mineral, no caso pela Mineração Rio do Norte, controlada pela suíça Glencore, maior trader de commodities do mundo.
A empresa tem o registro de 47 processos para extração de bauxita, sendo que 44 deles estão entre as últimas fases na ANM para concessão de lavra, todos processos que datam de 1967 e 1973, iniciados, portanto, ainda durante a ditadura militar, mas que continuam ativos.
Os impactos e os riscos provocados pela MRN são sentidos pelos assentados, ribeirinhos e quilombolas que vivem no entorno da Flona há anos. Como revelou o Observatório da Mineração em janeiro de 2024 , registros mostram dezenas de alterações em barragens da MRN no Pará e, sem comunicação, transparência e diálogo, famílias de quilombolas e ribeirinhos temem por desastres.
José Domingos Rabelo, assentado que vive desde 1993 na região e ainda antes da criação do assentamento PAE (Projeto de Assentamento Agroextrativista) Sapucuá Trombetas em 2009 e onde estão assentadas 1.202 famílias pelos dados do Incra, conta que tudo mudou para as comunidades desde que a empresa opera na região.
“Tudo aqui fica abaixo deste grande empreendimento. E no Lago Sapucuá são 16 comunidades, depois desse tanque de rejeito. A gente vive abaixo disso e já nota diminuição também de peixe, caça, e as onças que vivem no seu habitat estão saindo de lá, descendo e vindo para áreas próximas das residências”, afirmou o agricultor ao Observatório da Mineração.

A MRN respondeu que “não possui direitos minerários sobrepostos a nenhum assentamento. Todos os seus direitos minerários no estado do Pará localizam-se dentro dos limites da FLONA Saracá-Taquera”.
Embora morem no entorno da Flona, como o mapa demonstra, os assentados, quilombolas e ribeirinhos sentem a pressão da expansão mineral. Essa desigualdade no acesso e na prerrogativa de uso é estudada e criticada há muitos anos por vários pesquisadores, como este relatório da Comissão Pro-Índio de São Paulo exemplifica.
O decreto de criação da Flona, de 1989, permite a atividade mineral , assim como o seu Pla n o de Manejo . A Flona concentra as operações da empresa que produz anualmente 12,5 milhões de toneladas de bauxita, em processo de expansão. A bauxita da MRN, que vira alumínio na cadeia de produção, empregado em diversas energias renováveis e na fabricação de inúmeros produtos, é exportada para três continentes e usa um complexo de 29 barragens de rejeitos.
Mesmo havendo um assentamento com o mesmo nome da Flona e a mesma área , o que tudo indica ser um erro, assim como cerca de 300 famílias assentadas de acordo com o documento oficial , o INCRA não esclareceu, até o momento, se há também um assentamento rural dentro da Flona.
A MRN acrescentou, em resposta ao Observatório, que “atua para prevenir, mitigar ou compensar os impactos socioambientais identificados e tratados no âmbito do processo legal do licenciamento federal a que está submetida. Do ponto de vista ambiental, os dados de qualidade de água, emissão de particulados e ruídos, recolhidos em mais de uma década de monitoramentos, indicam não haver impactos ambientais significativos sobre essa região”.
A mineradora afirma que “executa em torno de 60 iniciativas, entre projetos e programas, que buscam a compensação adequada às comunidades em sua área de influência. São projetos que aliam a preservação ambiental com geração de renda, assegurando a cultura e modo vida das comunidades, integrando também com suas aspirações de desenvolvimento para o futuro” e que “tem o compromisso de deixar um legado para a região, mesmo após o término de suas operações, possibilitando uma transformação positiva nas comunidades próximas”.

Tendência é de acirramento dos conflitos entre assentados e mineradoras
Charles Trocate, integrante da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), explica que a exploração mineral em assentamentos já acontece, especialmente na região onde está o maior número dos processos minerários no Pará.
Trocate cita operações, incluindo uma da Polícia Federal de maio de 2024, a Operação “12º Elemento” , que desativou uma mina clandestina de manganês dentro de um projeto de assentamento do Incra no Pará. A área do projeto fica, segundo a investigação, localizada em Cumaru do Norte, no sudeste do estado e na divisa com a Terra Indígena Kayapó.
“Há um grupo, uma fração da burguesia local que ganhou muito dinheiro com a construção do projeto Grande Carajás, mas quarenta anos depois esses pólos siderúrgicos foram implodidos porque faltou a floresta. Então essa elite ficou sem função. O que ela fez para ganhar dinheiro? Se associou ao bolsonarismo e foi fazer essa garimpagem empresarial, que é aquela feita com retroescavadeiras que revolvem a terra e que o garimpeiro é mero trabalhador, quase escravos destas pessoas, o que gerou uma onda dessas garimpagens de mineração clandestina em muitos assentamentos da região”, explica Trocate.

Para o representante do MAM, a abertura para exploração industrial de mineradoras vai trazer consequências ainda piores para os assentados da reforma agrária e para a região, além de ampliar os conflitos fundiários. “Ao invés dessa abertura para a mineração nos assentamentos ser a uma redenção, será nossa maldição por que já faltam áreas para a produção de alimentos”, diz.
Giliad de Souza Silva, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), avalia que na região se sobrepõe a “um conjunto de interesses e um conjunto de conflitos”, sendo que parte deles é orientado pelo Estado que primeiro assentou as famílias, especialmente na região de Marabá, e depois dos anos 80 incentivou projetos de mineração.
“É importante identificar que esta é uma situação muito tensa e muito problemática, basicamente porque está cada vez mais evidente que o território onde está o bioma Amazônia é um território que tem um conjunto de províncias minerais extremamente densas e ricas, e contraditoriamente tem um conjunto de pessoas que moram sobre essas províncias minerais”, avalia o pesquisador.

Segundo o professor da Unifesspa, estes lugares, que já tinham um conjunto de tensões no campo da disputa por território. “E basicamente os anos 80, 90, um pedaço dos anos 2000, foram anos de não só descoberta, mas de busca por identificar ou quantificar o tamanho dessa riqueza”, diz.
Para Silva, a região deve passar por uma “aceleração dos conflitos”. “A perspectiva que a gente consegue acenar é de um aprofundamento dos conflitos, onde o papel que o Estado vai jogar vai ser cada vez mais fundamental, se vai ser um papel de acirrar os conflitos ou um papel de, em algum nível, reduzi-los”, avalia.
Vale alega que instrução normativa do Incra permite sobreposição de processo em assentamentos
Em outro trecho da nota enviada ao Observatório da Mineração, a Vale sugere que não existe ilegalidade nos processos em assentamento, pois a Instrução Normativa 112/2021 do INCRA, norma que os movimentos sociais do campo tentam revogar desde o começo do atual governo Lula 3, está válida .
“A possibilidade de sobreposição de projetos minerários ou de outra natureza com áreas de assentamento é situação prevista na legislação e regulamentada pelo próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A Vale cumpre rigorosamente a legislação, com respeito aos direitos humanos e tendo o diálogo com os órgãos competentes e comunidade como premissa de sua atuação”, diz o comunicado.
A IN 112 estabeleceu regras para uso de áreas de assentamentos por empreendimentos para atividades de mineração, além de projetos de energia e infraestrutura. Desde a sua edição até o momento foram abertos 982 processos minerários com 1.337 sobreposições em assentamentos.

Em região marcada por massacres, violência e disputa pela água, minerais de transição ocupam novo capítulo
Entre os assentamentos mais impactados pela busca de minerais estratégicos, os cinco primeiros no geral estão no Pará, localizados nos municípios de Faro, Tucumã, Itupiranga, Canaã dos Carajás e Santarém.
Este novo capítulo da busca por minerais essenciais para a energias renováveis e a fabricação de carros elétricos, entre outras aplicações, pode agravar o histórico de uma região já marcada pela violência e a disputa por terra.
Em um encontro neste mês com Paulo Teixeira, ministro do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) , a Comissão Pastoral da Terra, entidade que reúne dados sobre conflitos no campo, informou que a última década foi marcada por uma “contrarreforma agrária”. E que houve uma ascensão da “mineração e de projetos energéticos”, além do agronegócio, como “forças dominantes no campo brasileiro”.
O Caderno Conflitos no Campo 2024 ainda será lançado pela entidade em abril de 2025, mas os números do relatório de 2023 mostram que o Pará está em segundo lugar em conflitos entre os estados, com 227 casos, atrás apenas da Bahia. Em 2023 foram registrados pela CPT 34 conflitos pela água envolvendo mineradoras e garimpo, que no geral respondem por 17% dos conflitos registrados.
Em 2020, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) já apontava em um estudo os problemas dos assentamentos e acampados da região , especialmente em conflitos causados pela Vale.
“Entidades de apoio e agricultores acampados relatam que a área de domínio da empresa Vale hoje incide sobre antigos e novos assentamentos agrícolas efetivados pelo Estado. Este seria o caso das áreas que no passado compreendiam os Projetos de Assentamento Carajás I, II, e III, em 1982. Ainda de acordo com os acampados, estas áreas, hoje atingidas pelas atividades de mineração, e outras questões são classificadas como área do Parque “Terra Legal”, ou seja, da União”, afirma o estudo.
A mineradora Vale, segundo o PNCSA, ao adquirir terra para pesquisa, lavra e reflorestamento exigido como contrapartida pelas áreas impactadas pelos projetos minerários, tem as maiores porções de terras na região. “A concentração de terra vai além e, que as promovidas por esses empreendimentos não se restringem a área de exploração em si, mas abarcam uma área mais ampla no território, o que permite maior controle sobre os recursos naturais”, completa o estudo do PNCSA.
Além de massacres históricos, como os de Serra Pelada e Carajás , a violência também marca os últimos anos. Em junho de 2020, foi registrado um ataque de seguranças contratados pela Vale . Cerca de 150 pessoas foram surpreendidas por balas de borracha disparadas à queima roupa e bombas de gás enquanto faziam orações em Parauapebas (PA).
Pelo menos 20 agricultores ficaram feridos, mas o caso segue impune desde então e um inquérito aberto para apurar as falhas na investigação da Polícia Civil do Pará pelo Ministério Público Federal (MPF) foi arquivado em junho de 2022.

O sudeste do Pará é marcado por massacres, como o dos 19 acampados sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA) em 1996, e além da violência, há uma disputa pela água . Os problemas hídricos dos agricultores, especialmente em Canaã dos Carajás, tem como causas os novos projetos da Vale e o cerco de garimpos ilegais na região.
Um levantamento da CPT, realizado a partir de dados do Incra e em processos judiciais, mostra que Vale teria arrematado 58,4 mil hectares de terras na região de Carajás entre os anos 2000 e 2011. Pelo menos 41% (24 mil hectares) são terras públicas da União e de assentamentos pertencentes ao Incra.
Fonte
O post “Interesse por minerais de transição sobre assentamentos rurais no Pará tende a acirrar conflitos em área historicamente conflagrada” foi publicado em 31/03/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração