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Cheguei atrasada à casa elegante no bairro de Vila Nova Conceição, em São Paulo; o evento já ia começar. Um punhado de jornalistas já estava rodeando uma mesa com café, chás, bolachas e quitutes no fundo da casa. Na sala principal, um enorme telão e cadeiras confortáveis para todos.
Mas, diferentemente de outras coletivas de imprensa em que estive, o nervosismo era palpável; os profissionais encarregados de “vender” o produto para a imprensa sabiam que o desafio era grande. Quando choveram perguntas – e vieram poucas respostas –, ficou ainda mais claro que o lançamento da World no Brasil atrai mais questionamentos que aplausos.
A partir de quarta-feira passada, 13 de novembro, a World, uma iniciativa criada por Sam Altman, CEO da OpenAI, está escaneando os olhos de brasileiros para agregar a uma base de dados que, segundo a empresa, já tem os dados biométricos de mais de 7 milhões de seres humanos. Começaram com dez pontos na cidade de São Paulo – nos shoppings Tatuapé, Vila Olímpia, Center Lapa e com estandes na rua nos bairros de Ipiranga, Bela Vista, Jardim Brasília, Bom Retiro, Pinheiros e Penha.
Nesta coluna, vou economizar nos adjetivos, porque a história fala por si só. O leitor fique à vontade para encaixar nela alguns dos conceitos que costumo usar por aqui (tecno-oligarquia, neocolonialismo, tecnofeudalismo etc.).
Vejamos. O propósito hoje propalado pela World é criar uma identidade mundial que garanta que a pessoa que a utiliza é um ser humano. A ideia, chocada pelos fundadores Sam Altman, Alex Blania e Max Novendstern, e financiada desde a primeira hora pelo investidor Andreessen Horowitz, responde à crescente dificuldade dos computadores em conseguir verificar se um usuário é uma pessoa ou um robô. Basicamente, com a evolução da IA, aqueles testes de “captcha” estão ficando cada vez mais obsoletos. A World criou uma máquina – que chamou de “oculus”, uma bola preta que foi desenhada para parecer algo vindo de um filme de ficção científica – para escanear íris de cada pessoa para dar a elas uma identidade única.
Segundo uma extensa reportagem do site BuzzSumo, o “oculus” usa um scanner térmico para verificar a temperatura corporal das pessoas, uma câmera 3D para mapear os rostos e câmeras de alta resolução para capturar vídeos e imagens do corpo, rosto e da íris – tudo isso para provar que se trata de uma pessoa real e não de uma foto, por exemplo. Os dados biométricos, segundo a assessoria de imprensa, não são guardados pela organização, apenas os valores codificados, chamados de hashes, compartimentados por diversos servidores em universidades, de maneira que “não se pode reconstituir a íris”.
Temos que acreditar que isso é verdade porque, como no caso das demais empresas de tecnologia, não há nenhum fiscal que possa verificar se a promessa de fato se cumpre.
Mas o problema não está só na falta de transparência sobre como os dados são armazenados, como são destruídos, com quem a empresa os compartilha – segundo a mesma reportagem do BuzzSumo, o contrato de cessão de dados permitia à World compartilhar dados de usuários com terceiros como achasse conveniente. O problema começa com a narrativa que a organização quer vender. Pra começar, a “nova” narrativa esconde o motivo para a criação da empresa – formar uma criptomoeda de grande valor que fosse distribuída amplamente por toda a humanidade, talvez até criando uma “renda básica universal” através dessa criptomoeda. Foi para descobrir como proteger a criptomoeda Worldcoin de fraudes que os engenheiros de Sam Altman desenvolveram o “oculus”.
Dois anos depois, a aplicação dessa tecnologia é óbvia. Um serviço que pode garantir, por exemplo, que uma pessoa possa ser verificada em sua humanidade antes de entrar numa chamada de Zoom. Perguntei aos expositores se existe a possibilidade de venda desse serviço mais adiante para empresas de tecnologia.
“Não descartamos isso mais adiante”, foi a resposta.
Mas aí voltamos à narrativa que tem sido vendida. Em vez de assumir que tem um bom produto – o serviço de captcha – e querer lucrar muito com ele, a World pretende “resolver um enorme problema” para a humanidade.
De volta àquela sala em um dia quente em São Paulo, depois de gastarem seu latim tentando nos convencer disso, passaram um vídeo que celebrava as maravilhas do ser humano, com direito a imagens de criancinhas correndo e mulheres felizes sorrindo.
Não precisava de nada disso.
Como sabe o leitor que me acompanha, agora com a vitória de Donald Trump chegamos ao paraíso das criptomoedas, e a Worldcoin pretende ser mais uma delas. No momento, ela funciona apenas por acumulação: quem deixa a empresa escanear sua íris ganha mais de R$ 300 reais em “tokens” (25 tokens) agregados à sua conta criada para o uso da identidade, registrado em uma espécie de carteira virtual que você tem que baixar ao criar seu World ID.
Teoricamente, para sacar o dinheiro basta fazer um Pix, dando um email e CPF. Em outros países, o dinheiro tardou meses ou nunca chegou.
Tanto eu quanto outros colegas da imprensa perguntamos duas ou três vezes qual é o plano para transformar essa moeda em uma moeda com valor, e não tivemos resposta. Um dos expositores explicou que é possível que alguns serviços sejam disponibilizados através do App para serem pagos com a Worldcoin.
A ideia, até onde eu consigo entender, é que, quando milhões de pessoas tiverem os tais tokens, será fácil criar usos reais para esse dinheiro. É nisso que os “venture capitalists” que financiaram a empreitada estão apostando: segundo a assessoria de imprensa da World, eles detém 25% do total de moedas, como retorno ao investimento.
Para Sam Altman e Alex Blania, o lucro é duplo: além de estarem criando o maior banco de dados biométricos do mundo, o que por si só tem um valor indiscutível, eles criaram a empresa Tools for Humanity, que “presta serviços” para a World, como desenvolver o aplicativo, o site, ferramentas que são usadas pela organização sem fins de lucro que administra a base de dados (World Foundation). Altman preside a empresa, que tem como investidores uma gama de empresas de criptomoedas, segundo o Valor Econômico: a16z crypto, Bain Capital Crypto, Blockchain Capital e Distributed Global. Ainda segundo o jornal, desde sua criação, recebeu US$ 194 milhões em investimentos.
Antes de chegar ao Brasil, a World já criou enorme polêmica ao pagar para escanear íris em países pobres, como Indonésia, Zimbábue, Quênia – onde uma CPI foi instalada e o governo teve que ordenar diversas vezes o fim das atividades até ser atendido . A World, por sua vez, já esteve no alvo de órgãos reguladores de países como França, Alemanha, Argentina e Hong Kong. Este ano, teve suas atividades suspensas na Espanha e em Portugal.
Aqui no Brasil, o início da operação já chamou atenção da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Segundo a Bloomberg Línea , a autarquia instaurou na segunda-feira (11) um processo de fiscalização “com o objetivo de obter mais informações da empresa World sobre o relançamento do projeto que visa escanear a íris humana para verificação de identidade a fim de avaliar a sua conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD”. Uma semana antes, o vice-presidente de Proteção de Dados da Tools for Humanity, Damien Kieran, fez um tour por Brasília, onde se reuniu com reguladores do Ministério da Ciência e Tecnologia e representantes da ANPD.
“As preocupações são menos sobre privacidade do ponto de vista de anonimato e mais do ponto de vista de potenciais usos secundários de identificadores únicos gerados de forma computacional”, diz Rafael Zanatta, diretor da ONG Data Privacy.
Para ele, a solução é muito engenhosa, “talvez seja a solução mais engenhosa do mundo para identidades digitais”. Mas o primeiro problema é o da soberania digital: “Avançamos em uma privatização de funções estruturais para transações, que é a atribuição e verificação de que uma pessoa é uma pessoa, pois temos poucos instrumentos de fiscalização em escala global”. Para ele, para ser considerada de fato transparente, a “empresa deveria ter um conselho permanente de representantes da população capazes de avaliar as soluções de engenharia do ponto de vista ético”.
Há outro problema, mais amplo, que Zanatta não comenta, talvez por gentileza. Toda a narrativa da World se baseia no velho bom-mocismo do Vale do Silício, uma argumentação que faria sentido há 20 anos, mas hoje não cola mais. No fundo, o que a World quer fazer é exatamente o que fez o Google quando enviou seus carros com câmeras nas ruas do mundo todo, conseguindo, de maneira inédita, registrar a grande parte das ruas do planeta sem pedir autorização a ninguém. Criou uma base de dados inigualável e agora pode jogar em cima disso. Com sua narrativa de “ajudar a humanidade”, a World leva essa lógica para o corpo humano, trazendo o limite do mundo digital – controlável, privatizável e comercializável – para nossos corpos, para nossos olhos.
Fonte
O post “Iniciativa ligada a Sam Altman escaneia íris nos shoppings de São Paulo” foi publicado em 20/11/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública