Desculpem demorar tanto para escrever sobre isso, mas falta tempo. E vontade também. Parece que só tem tragédia acontecendo ultimamente: Genivaldo morto numa viatura que serviu como câmara de gás, a execução de Dom Phillips e Bruno Pereira, a procuradora Gabriela que foi espancada pelo colega covarde em Registro… Tudo isso e muito mais no Brasil de Bolsonaro num prazo de um mês.
Mas o escândalo da semana parece ter sido desencadeado por uma ótima reportagem colaborativa entre o Portal Catarinas e Intercept Brasil , assinada por Paula Guimarães, Bruna de Lara e Tatiana Dias. Uma menina de 10 anos foi estuprada. Quando ela e sua mãe descobriram a gravidez, foram ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à UFSC. A menina estava grávida de 22 semanas e dois dias. Por algum motivo inaceitável, a equipe médica não aceitou realizar o aborto. Disse que só realizaria o procedimento até a vigésima semana, e que a família teria que trazer uma autorização judicial. Cada semana aumenta o risco que a garota enfrenta, já que sua estrutura física é frágil para prosseguir com uma gestação (e a gestação não para pra esperar decisões da justiça).
Dois dias depois da ida ao hospital, o Ministério Público catarinense mandou a menina para um abrigo, “até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural”. A promotora Mirela Dutra Alberton, do MP, reconheceu que a gravidez era de alto risco.
Em despacho, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, então titular da Comarca de Tijucas, declarou que tomou a decisão pelo abrigo para garantir a proteção da menina em relação ao agressor. Porém, ela elencou outra razão: “Salvar a vida do bebê ”. Em outras palavras: uma menina de 10 anos foi posta num abrigo, longe da mãe e da escola, para que fosse forçada a seguir com uma gravidez indesejada, fruto de estupro. Mesmo que o aborto nesses casos seja permitido por lei!
No dia 9 de maio houve uma audiência judicial, e partes do vídeo chegaram ao Intercept. O que se vê é um show de horrores comparável àquela audiência icônica em que o advogado do réu ataca violentamente Mari Ferrer, vítima de um estupro, e o juiz e promotor se calam . Pelo vídeo da audiência ter vazado é que temos, há mais de um ano, a Lei Mari Ferrer , uma grande conquista das mulheres. Mas mesmo a Lei Mari Ferrer não impediu que uma menina de 10 anos, completando 11, fosse agredida pelo Estado que deveria protegê-la.
(No Twitter, uma moça chamada Michelle Barouki apontou: “Não pensem que é mera coincidência o caso Mariana Ferrer e o caso dessa menina de hoje ocorrerem em Santa Catarina. É um reflexo da sociedade catarinense e o que ela pensa sobre estupro, meninas, mulheres e gravidez”).
Na audiência de 9 de maio, a juíza Joana faz uma série de perguntas absurdas à menina: “Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?”. A garota responde “não”. Afinal, ela não quer o bebê! “Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?”, indaga a juíza, referindo-se a um estuprador! Desde quando um estuprador pode decidir alguma coisa?! A menina diz “Não sei”.
“Você suportaria ficar mais um pouquinho com o bebê?”, quer saber a juíza. A promotora Mirela também defende a manutenção da gestação. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele”. Não sabemos quais vídeos anti-aborto a promotora tem visto, mas não é assim que acontece (aliás, especialistas afirmam que seria muito menos perigoso para a vida da menina tomar medicamentos abortivos do que ter que se submeter a uma cesariana. E não estamos nem falando da parte emocional). A mesma promotora está envolvida em outro caso horrível em Santa Catarina, o de uma quilombola que perdeu a guarda das duas filhas em 2016, “em um processo recheado de termos racistas, sexistas, e violações dos direitos quilombolas”, como reportou o Portal Catarinas.
Numa audiência com a mãe da menina, a juíza Joana, depois de dizer que o aborto depois de um certo prazo “seria uma autorização para homicídio” prega: “Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”. A mãe responde: “É uma felicidade porque não estão passando pelo que eu estou passando”. E implora a juíza para deixar a menina sair do abrigo e ficar com ela. A juíza nega. Um trecho de sua sentença pontua: “O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”.
Só ontem, após toda a repercussão do caso, depois da menina passar sete semanas sequestrada num abrigo, é que ela foi liberada, agora na 29ª semana de gravidez. Ainda não se sabe o que a família fará (e é melhor que ninguém saiba mesmo, pra fundamentalistas não atacarem a menina).
A socióloga Tabata Tesser, integrante da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, declarou numa entrevista : “Cada dia mais é um risco de morte para a menina. Interromper esta tortura é o mais urgente”. E realçou: “O aborto legal não é crime. Parece redundante dizer isso, mas o que temos visto é jurisdições se baseando em opiniões e em cunho fundamentalista. A tarefa da justiça deveria ser garantir que crianças não pudessem ser mães depois de passar por inúmeras violências, não passar um mecanismo de tortura do Estado”.
Já a advogada criminalista Tania Maria de Oliveira, coordenadora executiva da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), condenou toda a postura do juizado: “Uma instituição não pode criar regras que sejam contra a legislação. Essa menina foi vítima de uma série de ilegalidades neste processo, em prejuízo da infância”. Ela tampouco absolveu de culpa o hospital: “O Código Penal não cita um prazo para a realização do aborto legal nos casos previstos em lei. Não fala em semanas. Isso não existe. Essas interpretações são invenções de instituições médicas. Qualquer mulher que passou por um estupro tem esse direito”.
Os fundamentalistas cristãos que estão no poder são contra a educação sexual nas escolas e a favor do homeschooling e alegam que tudo que fazem é para proteger as crianças. Mas não todas as crianças. As não nascidas são infinitamente mais valiosas que as meninas de 10 anos. Parece que a preocupação é proteger o estuprador, os familiares que estupram, garantir o direito do estuprador ser pai. Na realidade, fundamentalistas são contra as mulheres decidirem e terem direito sobre seus próprios corpos. O resto é mentira. Se tiverem dúvida, basta ver como tratam meninas de 10 anos que foram estupradas e engravidaram: trancando num abrigo ou gritando “Assassina” pra uma que conseguiu abortar em outro estado!
Dá muita raiva! E a gente assinando petição exigindo o afastamento da juíza Joana Ribeiro Zimmer. Aí a gente descobre que ela já foi afastada. Foi promovida ! (e esta foi uma das sentenças que veio à tona, graças aos esforços de jornalistas. E as outras? Quantas outras vidas essa juíza já arruinou?). Será aberta uma investigação na Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) para avaliar a conduta da juíza, mas todo mundo já sabe o que vai acontecer, né? Nada!
Opa, nada não! Não tenham qualquer dúvida: assim que a poeira baixar, alguma deputada bolsonarenta ou a própria Damares vai condecorar a juíza que enfiou num abrigo uma menina de 11 anos grávida que foi estuprada e queria abortar. E óbvio que se a garotinha morrer no parto foi porque Deus preferiu assim.