Há um motivo para que muitas vítimas de estupro ou pornografia da vingança atentem contra a própria vida, e muitas vezes conseguem se matar. Por que será que vítimas de violência sexual cujos autores são homens, fato de conhecimento de toda a sociedade, mesmo assim escolhem tirar suas próprias vidas?
São coisas que ocorreram comigo ao longo da vida, com amigas, vítimas, autores, testemunhas, mães, pais, amigos das vítimas, que já atendi e/ou vi meus colegas atendendo. Sabe o que acontece?
Você, seja homem ou mulher, cis ou trans, é a vítima, e coisas como as descritas abaixo ocorrem com você:
“Quem anda com porcos come farelo”, eles dizem.
Ou trabalha engolindo isso tudo, e fingindo ser forte, chorando escondido, evitando as pessoas para não ver elas felizes, sorridentes e se divertindo sem você. E ninguém querendo saber da sua existência, pelo visto.
Ou sai do serviço e fica à mercê da vida, sem nada assegurado.
É um caminho doloroso e totalmente solitário.
Não tem essa de ninguém solta a mão de ninguém.
A única que eu vi ajudar mesmo num caso foi a Áurea Carolina. Única. E todas as deputadas e deputados foram procurados.
Pensa: até politicamente com ativistas não se consegue auxílio. Como conseguir denunciar?
Para levar adiante a sua denúncia, já sabendo que o autor vai mover mundos e fundos para invalidar a sua acusação, vai ter que gastar com advogados, para conseguir ser respeitada.
E como vai conseguir apresentar provas? A polícia vai pedir. E nem sempre é desconfiando de vítima, é tentando deixar a denúncia dela robusta para o indiciamento do autor.
Na justiça, a defesa do autor vai cobrar essas provas. Vai alegar que não existem.
Provas de um coito violento e não autorizado.
Algumas têm medo de denunciar e não o fazem. Quem faz a denuncia são amigos.
Mas espera!
E os casos de estupro sem o coito? Homens lhe agarrando e forçando você a ficar parada enquanto ele se esfrega em você.
Imagine então que mesmo diante daquele desespero, o seu corpo começa a lubrificar.
Você sente seu corpo respondendo sexualmente àquele ato.
A culpa.
O choro envergonhado.
As pessoas comentam:
Ela anda igual uma vadia e agora está reclamando?
Ela dá para todos, ninguém precisa estuprar.
Ela realmente foi por livre vontade lá. E a vítima contou várias coisas que não eram verdade, e sem nexo algum, com medo de dizer a verdade. Que era apaixonada pelo rapaz, ele a chamou, ela tinha 14 anos, não esperava mais nada, ele tinha 17. Ele foi pra cima dela. Ela se assustou. Não que ela não quisesse, mas ficou com receio, não sabia o que era sexo. “Eu nem me depilei, ele vai achar minha perereca feia”, pensa.
Ele tenta fazer ela chupar o pau dele. Ela não tem reação. Está olhando pro nada. “O que meus pais dirão?”, “Por que ele está me tratando como um lixo?”…
Que nunca que ele pegaria a vítima. Que ela era muito feia. Gorda. Fedorenta. Zuada por todos da rua. “Imagina se o meu pau ia subir pra ela?”, ele debocha.
Ele me mostra fotos das meninas com quem sai.
Muitos policiais acham que ele tem razão.
Ali eu tive certeza que era verdade o que a vítima dizia.
Sempre.
Para piorar o absurdo do estupro, ela foi humilhada. E não satisfeito, todos seus vizinhos, colegas de escola e da rua onde mora, falavam dela.
Ao sair da padaria, um rapaz que estava na porta fumando grita “Essa é a gorda que fala que foi comida e tem pelo nas costas?”… Outros riem.
Então imagine você tentando provar o que ocorreu.
Primeira coisa. Exames.
Se passou o tempo, não tem como.
Seu pai vai te evitar.
Agora todos estão falando de como você é vagabunda e ainda tenta acusar o homem trabalhador. Pai de família. Que todos adoram.
A vergonha, a solidão, a tristeza. Não passam.
Como sair de casa?
Como ficar em casa sendo julgada pela família?
Tudo aquilo de novo.
Fica tentando se convencer que realmente foi vítima.
“Será que eu ter levantado a perna para tentar sair fez ele querer mais?”
“E o dia que eu mandei mensagem chamando para sair? Ele vai usar contra mim”
“Eu tenho o dedo podre”.
Eu sempre me perguntei POR QUAL MOTIVO ESSES HOMENS TINHAM CORAGEM SUFICIENTE DE FAZER ISSO COMIGO? Qual sinal eu dava para deixá-los tão a vontade para me agarrarem em plena luz do dia dentro de uma delegacia, sendo meu colega de trabalho?
E como você vai conversar sobre isso com os seus pais?
Que não provocou. Nada?
E se eu tiver provocado?
Nossa, eu estava bonita, jogando charme e, não sei, talvez aquela calça modeladora era muito insinuante…
“Quando a Nzr me perguntou se eu achava o Dr Slv bonito, eu respondi que sim. Foi por isso… a culpa é minha”… E isso foi dito mais por constrangimento porque a Nzr era amiga do Dr. Slv.
“Ah, eu joguei a toalha no ombro. Por isso ele me pressionou na parede e começou a beijar meu pescoço e passar as mãos em mim.”
“E olha lá a foto dele com a esposa e filha recém nascida. Vou acusar ele? Quem vai acreditar em mim?”
E agora não tem mais como comprovar.
Que não gritou.
Que não avisou.
Por que não disse NÃO?
Por que não lutou mais?
E quando denunciou uma outra vez? E as pessoas questionaram a veracidade. “Não creio, ele é tão de boa!!!”…
Pronto.
Todos sabem!
Os homens que você flerta começam a se afastar.
“Ela fala demais, ela conta as coisas, ela deve ter inventado porque o cara não quis mais”.
Em nenhuma hipótese, denunciando ou não, vai ser bom para você.
Pessoas que você achava ser suas amigas não vão fazer absolutamente nada. E vão dizer “eu tenho meus problemas também”. E nunca mais vão te procurar. E em reuniões chamarão qualquer um, menos você.
E os maridos delas vão te procurar mesmo, querendo uma foda, uma saída diferente.
“O casamento tá ruim”.
E em 2010?
A moça linda e maravilhosa que acusou o moço que conheceu de estupro. Quem conversou com ela foi um colega do trabalho. Depois ele conversou com o autor.
Ela disse que, nisso, e na persistência das negativas dela, o cara, que era bombadão e lutador de jiu jitsu, e famosim, deu um soco na cara dela, não aceitou, e começou a tentar fazer mesmo assim. Ela gritou, bateu nele, fez de tudo para sair dali. Ele era muito mais forte. Ele a esmurrou mais uma vez. Saiu sangue. Ela conseguiu sair. Ele a mandou embora. A ofendeu de várias formas.
O meu colega ficou putasso. Alterou a voz com o cara. Falou que ele era um imbecil. Que ele tinha que respeitar a moça. Que ele não aprendeu a tratar mulher. Era um moleque. As colegas que estavam próximas tentaram acalmar os ânimos. Aí o advogado interveio:
O meu colega continuou puto, discutiu com o advogado. A delegada fodona dos chefões lá correu para o local onde fazíamos o mutirão. Brigou com o colega. Apoiou o advogado. Mas todos nós que vimos e ouvimos intervimos a explicando os fatos. Ela entendeu. Tentou acalmar as coisas. E como todos fomos testemunhas das declarações dele, a situação do cara piorou, e muito. E a equipe achou mais pessoas para quem o autor falou a mesma coisa, debochando.
Acaba a vida amorosa da pessoa. Tudo é gatilho desesperador.
Alguns homens vão dizer uns com os outros, e alguns dos outros são seus amigos e você vai ficar sabendo:
“Essa daí não dá para ter relacionamento. Ela já foi usada e passada a mão por todo cara e depois ainda denuncia. Da mole pra todos mundo e os cara pega mesmo”..
Você não tem família.
Você não tem amigos.
Onde você trabalha ou mora estão te acusando.
Se tiver repercussão midiática, vão ter comentários depreciadores.
Ninguém vai querer namorar com você mais.
Os homens só vão querer transar, nutrem afeto mas jamais vão dar mais um passo.
“Como que eu vou namorar mulher estuprada?”…
Não há saída.
Todo lugar te acusa.
Padrões se repetem.
Você que está atraindo isso.
Algumas decidem ganhar a vida se prostituindo, juntando a necessidade financeira com a tentativa de empoderamento e acreditar em si mesma, aceitando as ofensas.
Na falta de dinheiro, na falta de equilíbrio, a cabeça um turbilhão, a alternativa é morrer.
O post “GUEST POST: POR QUE MUITAS MULHERES QUE SÃO ESTUPRADAS SE SUICIDAM?” foi publicado em 3rd February 2022 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva