O governo de Romeu Zema (Novo), em Minas Gerais, está sendo denunciado por favorecer mineradoras e atropelar os direitos dos povos originários e comunidades tradicionais ao tentar determinar como deve funcionar a consulta prévia, livre e informada (CPLI) no estado.
O Decreto nº 48.893/2024 , publicado em 11 de setembro no Diário Oficial do estado, ainda atribui ao próprio empreendedor a condução da consulta em projetos da iniciativa privada, o que, segundo a Defensoria Pública da União (DPU), pode comprometer a imparcialidade e pressionar os atingidos.
Em nota de repúdio contra a decisão, o órgão ressaltou que a CLPI é um direito assegurado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que determina que os povos indígenas e comunidades tradicionais sejam consultados de forma livre, prévia e informada sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los diretamente.
Ao Observatório da Mineração, a defensora nacional de Direitos Humanos (DNDH), Carolina Castelliano, alertou que o decreto é visto com bastante preocupação porque está sendo uma espécie de precedente para outros decretos estaduais que porventura possam se espelhar nele.
“Existe o risco de cooptação política e econômica de um processo que deveria ser conduzido por um ator imparcial, de preferência um ator público institucional – seja o Ministério Público, a Defensoria Pública, alguma secretaria de governo. Definitivamente, não será um empreendedor que tem ali interesses evidentemente claros naquela tratativa da consulta”, ponderou.
A advogada popular e pesquisadora Larissa Vieira, da Cáritas, relembrou que esta não foi a primeira tentativa do governo Zema de “passar a boiada”, se referindo à Resolução nº 01/2022, das secretarias de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Minas Gerais.
“Este decreto chega como uma surpresa para os povos das comunidades tradicionais e para as entidades da sociedade civil porque ele tem um teor muito parecido com a resolução da Sedese/Semad de 2022, que foi amplamente repudiada. Houve uma luta muito grande para que essa resolução fosse revogada, o que aconteceu em 2023”, disse.
Ataques ou o desrespeito à consulta prévia por parte de mineradoras não são incomuns. Em 2022, empresários do Pará, incluindo o sindicato da indústria mineral, enviaram um ofício pedindo ao governo Bolsonaro que o Brasil abandonasse a Convenção 169. Diante da repercussão, desistiram. O recuo aconteceu após publicação de matéria deste Observatório.
Em Minas Gerais, um caso emblemático de mineradora que ignorou a necessidade de consulta prévia é a Tamisa que, ao tentar explorar a Serra do Curral, não ouviu a Comunidade Quilombola Mango Ngunzo Kaiango, em Belo Horizonte. O Observatório da Mineração foi o primeiro a denunciar a situação, em maio de 2022 . A falta de consulta, inclusive, levou o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) a suspender as atividades realizadas pela mineradora no local e também suspender as licenças prévia e de instalação do Complexo Minerário Serra do Taquaril, no fim de 2022.
Foto de destaque: Trabalho manual com a fibra da embaúba do povo indígena Maxakali, em Minas Gerais. Foto: Xavier Bartaburu / Mongabay Brasil
Usurpação de competência da Funai
Outro ponto presente no decreto da Semad é a retirada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) da coordenação da CLPI em processos que afetam as respectivas comunidades, o que segundo a DPU, também contraria a legislação federal.
“Apesar de todas as tragédias, as lições não tem sido apreendidas. Este decreto é mais uma aberração, um desrespeito total às comunidades tradicionais, às comunidades indígenas, porque ele é cheio de contradições e aberrações jurídicas. Vai de encontro às leis estabelecidas no país, além de ser uma insistência e uma repetição da resolução de 2022”, ponderou Haroldo Heleno, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Leste, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A entidade é uma das 30 instituições signatárias de uma carta aberta de repúdio , direcionada a Zema. No documento, elas pedem acesso à informação, participação ativa nos processos e a revogação do decreto.
O chefe do Poder Executivo mineiro foi criticado por Heleno. “A gente sempre fica assustado com a postura do governo Zema. Não deveríamos ficar mais, mas infelizmente desde o começo ele tem demonstrado qual é o seu verdadeiro perfil, a sua verdadeira ligação. Não à toa, Minas Gerais hoje é um verdadeiro queijo suíço, todo furado aí pelas minerações”, declarou.
Os abusos de Zema também foram denunciados por Cleonice Pankararu, uma das lideranças da comunidade indígena Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, formada pelos povos Pankararu e Pataxó, e localizada às margens do Rio Jequitinhonha, em Araçuaí.
“Esse decreto é muito prejudicial para as comunidades dos povos tradicionais e estamos, junto com outros representantes aqui de Minas, nos organizando para repudiar este decreto, incluindo apoio jurídico na Funai, no Ministério Público. Um diálogo para que este decreto perca o efeito”, disse.
“O governador de Minas Gerais é uma pessoa que abriu as portas para a mineração, para esses grandes empreendimentos, sem nenhum respeito pelas populações originais. Então, para eles, os povos indígenas e as comunidades tradicionais não existem”, completou Cleonice.
Governo alega falta de regulamentação
Em nota enviada à reportagem, o governo disse, por meio da Sedese, que a publicação do decreto “foi motivada, sobretudo, pela ausência de regulamentação do processo de Consulta Livre, Prévia e Informada a nível estadual, dado que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada através do Decreto 5.051/2004 e atualmente vigente através do Decreto 10.088/2019, estabelece apenas regras gerais para execução deste instrumento”.
No entanto, a defensora nacional de Direitos Humanos (DNDH), Carolina Castelliano, ressaltou que a convenção da OIT tem força normativa interna no Brasil, acima do arcabouço legislativo estadual, por ter sido internalizada dentro do que determina a Constituição Federal.
“Um decreto que tem uma natureza infralegal, que está abaixo de uma lei, definitivamente precisa estar em observância e ter algum nível de coesão em relação ao que está previsto nessa normativa que tem status supralegal. Então, considerando os termos da convenção, a gente consegue identificar o tanto que há de incongruência na redação do decreto”, afirmou Castelliano.
A advogada popular e pesquisadora Larissa Vieira reforçou que a convenção nº 169 da OIT não necessita de regulamentação e que é muito difícil acreditar que a consulta prévia vai ser livre e informada enquanto a parte diretamente interessada, ou seja, o empreendedor, estiver à frente do processo.
O governo Zema afirmou ainda que o decreto “dispõe sobre a possibilidade de atuação de órgãos federais eventualmente responsáveis pela CLPI, de modo que não há quaisquer impedimentos na coordenação, acompanhamento, realização ou demais procedimentos atinentes à consulta por parte da Funai ou da Fundação Cultural Palmares (FCP)”.
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O post “Governo Zema é denunciado por decreto que compromete consulta prévia a comunidades tradicionais e favorece mineradoras em MG” foi publicado em 26/09/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração