Água na medida, com seus ares de sagrada, tem se mostrado cada vez mais como dádiva perdida.
Perturbamos o equilíbrio dinâmico do sistema Gaia para muito além da nossa cota ao insistir em padrões cada vez mais brutos e automáticos de substituição das redes de vida diversificadas (como os ecossistemas) por vazios estéreis impermeáveis de concreto e cimento. Esse padrão alienante que toma conta de grande parte dos assentamentos humanos, seja no campo ou na cidade, tem nos colocado em ritmo acelerado a caminho da auto-destruição. Uma verdadeira loucomotiva que avança rumo ao penhasco.
Florestas montana (berço das nascentes), matas de galeria (ciliares), cerrados e campos naturais, várzeas, restingas e manguezais formam o sistema de tamponamento de nossa malha hídrica definindo uma alta resiliência dos rios à perturbações naturais.
Como no nosso sangue, o ciclo completo desse engendrado sistema de transporte fluído é capaz de reequilibrar os fatores físico-químicos que viabilizam o caldeirão da vida permeada e mantida por água, promovendo ganho (evaporação) e perda de energia (condensação e movimentação para as partes baixas), enriquecimento com nutrientes minerais e orgânicos da interação com o solo, a vegetação e a fauna, depuração consumo e reciclagem ao atravessar as micro e macro membranas que compõe os diferentes tecidos da biosfera, essa tênue e frágil casca de ovo que estamos a pisar.
No Estado de São Paulo a crise tomou ares sombrios não só pelos danos aos próprios rios e florestas, mas também tem causado sofrimento e desamparo para as pessoas comuns, os super-usuários que se situam na ponta frágil da cadeia. Em breve cumpriremos nosso primeiro aniversário de escassez e racionamento que ao que tudo indica deve se agravar na estiagem de 2015. Seja por falta (na estiagem) ou por excesso (nas chuvas torrenciais de verão) água boa seria aquela que viesse na medida da regularidade e da relativa previsibilidade, marcando nossas estações nos ciclos naturais de Gaia Viva.
O que temos de certo é que o rio não está pra peixe, nem em quantidade e nem em qualidade, o que nos conduz a algumas reflexões sobre o problema:
- Podemos reverter esse quadro?
- Onde erramos e como fazemos para consertar as bobagens, inclusive e talvez principalmente, realizadas na forma de políticas públicas que se orientam por padrões insustentáveis de crescimento infinito e depredação de nossos sistemas de suporte a vida?
- Como desfoder o que fizemos com a água e garantir o seu acesso razoável para os usuários comuns de água e todos os seres vivos?
O físico britânico Geoffrey West explica na sua participação no clássico programa da TV Cultura – Roda Viva – o que deve ser feito para que cidades brasileiras funcionem de acordo com a sua teoria de eficiência das cidades grandes de concreto. Segundo West as prefeituras são as principais responsáveis pelas atividades necessárias, onde “o papel de um prefeito é providenciar cultura, prover mecanismos que facilitem a interação, deixando as pessoas livres para levarem suas vidas de forma criativa e significativa. É preciso haver metodologias e incentivos que forneçam espaços e trabalho tanto quanto aumente a interação”. Veja aqui o vídeo completo, é muito interessante http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/roda-viva-entrevista-o-fisico-britanico-geoffrey-west
No caso específico da grande São Paulo e municípios do entorno, não fica difícil adaptar o pensamento e avaliar nossos gestores durante a falta de água com uma série de ações desastrosas e decisões equivocadas, tanto nacional quanto estadual e regionalmente. Cada núcleo político está amparado em suas bases financeiras e toma medidas visando/ampliando mantendo o lucro e desenvolvimento destas bases, ignorando a totalidade do planeta enquanto vive em seu mini-mundo.
A destruição do cerrado nos estados do Centro-Oeste (que reabastece os aquíferos subterrâneos do sudeste) e da Amazônia no Norte (que fornece umidade para a chuva) já explicam um tanto da sistemia do problema de nossa falta água. Mas não é motivo para não termos responsabilidades e na dimensão micro (estadual-regional) podemos acrescentar à essa lista a destruição do Cinturão Verde da Mata Atlântica que circunda toda a região metropolitana de São Paulo, a grande membrana que protege a capital de suas próprias aberrações e ameniza o clima das cidades do interior, através desse efeito de borda que isola as grandes e pequenas ilhas de calor lá na Babilônia.
Nas últimas duas décadas o cinturão verde, que inclui a sera do Japi, o pico do Jaraguá, a Cantareira e a Cumieira da Serra do Mar foi desconectado através de graves ataques induzidos principalmente por conta das grandes obras rodoviárias como Rodoanéis (talvez o total no Estado seja de 40 deles) e as duplicações (não encontramos dados) e triplicações de rodovias para ampliar o tráfego de caminhões, a mais recente sendo a duplicação da Tamoios no Litoral Norte. Muitas florestas rasgadas para alimentar a sede do setor imobiliário e automobilístico, o sucesso agora é medido em rodas que sobem e descem a serra.
Para compensar todo esse estrago o Governo de São Paulo re-lança o fracassado Programa de Recuperação de Matas Ciliares que já nos tempos do governo anterior se mostrou inexpressivo nos 10 projetos pilotos onde foi implantado.
O palco é o mesmo, os atores também. Temos todas as instituições mapeadas, controladas e rastreadas. Podemos como sempre escolher ser palhaços, trapezistas, mágicos ou até plantadores de sonhos e florestas nessa nova fase de conversação com a água. As pessoas comuns, autorganizadas nas margens do Estado já se mostraram muito mais capacitadas para cuidar da água do que técnicos e burocratas apoiados e mantidos por leis e lucros.
O argumento é para não nivelar por baixo e lucrar na escassez. É viver para variar nos limites da superabundância, natural. Há muito espaço para aqueles e aquelas que sempre vibraram por ótimas conexões em seu simbionte social.
Iniciativas livres de plantar estão prestes a florir e as conversas já começaram há milênios em todo o planeta. Nesses novos cenários de estiagem de água (antevisto há décadas por pesquisadores ignorados), burocratas do mercado político são convidados a assistir o caos no spicos da crise e aprender novas formas de simbiose entre humanos e florestas. Um berço de águas que não isola os sistemas para criar as conexões necessárias à vida.
Nós, pessoas, vamos florestar de dentro da água.
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