Apesar de ter sido oficialmente extinta em maio deste ano, o futuro da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB), uma das instituições de pesquisa em meio ambiente mais respeitadas do Brasil, ainda é incerto. A única certeza, conforme apontam pesquisadores e ambientalistas, são prejuízos que seu desaparecimento trará para a proteção da natureza, preservação das coleções científicas, algumas delas únicas, e para definição de políticas e estratégias para a gestão das questões ambientais no estado.
Segundo o biólogo e doutor em Ecologia, Paulo Brack, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), se a extinção da FZB se mantiver, de fato, os prejuízos em questões ambientais podem ser irreparáveis. “A burocracia aumentou e ficou quase inviável a obtenção de recursos de fora”, diz. “Na prestação de serviços para os Planos de Manejo das Unidades de Conservação do Estado, por exemplo, ingressavam alguns milhões de reais a cada dois ou três anos”. Esse dinheiro vinha de instituições de financiamentos, convênios e parcerias.
Além disso, acrescenta Brack, segundo relatos de técnicos do Jardim Botânico (JB) e do Museu de Ciências Naturais (MCN), ficou dificílimo repor ou adquirir materiais. O que antes se obtinha em uma ou duas semanas, hoje leva meio ano ou mais, por exemplo. “No que se refere ao JB, as plantas podem acabar morrendo por falta de substrato e de pessoal para cuidados especiais, e as coleções poderão ficar sem produtos conservantes de exemplares, como álcool ou formol”, alerta. “E sem chefias, sem plano de carreira, que tinha sido criado em 2014, acaba ficando uma confusão danada em se saber quem é o responsável por cada setor”.
O argumento do governo do estado para extinguir a Fundação foi o da economia de recursos e da modernização e eficiência da gestão. “Foram alegações genéricas, sem mostrar como isso aconteceria”, critica o advogado do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Marcelo Mosmann, que atua no caso da Fundação em defesa da preservação do patrimônio ambiental do Rio Grande do Sul. “Agora o estado está gastando mais para contratar serviços com qualidade inferior”.
Mosmann lembra que políticas públicas devem estar embasadas em evidências científicas, e para o desenvolvimento científico o pesquisador necessita de um espaço adequado e liberdade de estudo, o que a autonomia administrativa da FZB assegurava. “Isso só será retomado com a reversão da extinção da Fundação ou a contratação de institutos de pesquisa a preços muito mais elevados”, diz. “Ou ficaremos sem políticas ambientais sérias.”
De acordo com Brack, a extinção da FZB foi feita sob um manto de “modernização do Estado” e com o argumento “pífio” de redução de despesas do executivo. “Jogar serviços públicos para escanteio ou privatizá-los é algo ‘moderno’ na visão neoliberal reinante nos governos anterior e atual”, ironiza. “O valor previsto a ser economizado é de menos de 0,5% das despesas do estado. Cabe destacar que este valor era de cerca de 30 milhões por ano ‘economizados’, enquanto as sonegações e isenções anuais chegavam a cerca de 15 bilhões. Além disso, a Fundação obtinha recursos de projetos de pesquisa e prestação de serviços com estudos de biodiversidade e conservação da natureza. Com a extinção, isso se perde, o que aumentaria o alegado ‘prejuízo’ econômico das atividades realizadas”.
Segundo Mosmann, a FZB auxiliava o estado a tomar decisões inteligentes no planejamento e gestão ambiental. “Da identificação das plantas mais raras e valiosas ou animais ameaçados de extinção até onde instalar usinas eólicas com o melhor custo-benefício ambiental, tudo isso era avaliado cientificamente pela FZB”, salienta o advogado responsável pela defesa da permanência da instituição. “Podemos dizer que hoje o estado está acéfalo nestas áreas”.
A história da extinção da FZB, oficializada no ano passado, começou, na verdade em 2015. Já em 1º de janeiro daquele ano, quando o então governador José Ivo Sartori (PMDB) tomou posse, ocorreu a primeira da série de ações que indicaria a possível extinção da instituição. Neste dia foi publicada a Lei nº 14.672 , que altera a Lei nº 13.601 de 1º de janeiro de 2011, que dispõe sobre a estrutura administrativa do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul. Na Seção XV, o nome da Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) é modificado para Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e não inclui as suas fundações vinculadas, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM) e a FZB.
Outras medidas foram tomadas ao longo de 2015 até que no dia 6 de agosto daquele ano foi publicado o Projeto de Lei nº 300/2015 , que envolvia a extinção de quatro instituições, incluindo a FZB, e a rescisão de todos os contratos de trabalho dos empregados e dos contratos emergenciais ainda vigentes. Em um julgamento muito polêmico e conturbado realizado no início de 2019, a FZB foi extinta porque o Tribunal de Justiça resolveu revogar a decisão liminar que suspendia a extinção.
Na época, a Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMA) publicou uma nota onde esclarece que o fim da Fundação “não representa nenhuma mudança para o Jardim Botânico ou para o Museu Rio-Grandense de Ciências Naturais, que vão permanecer sob a administração pública, terão os serviços mantidos e seguirão abertos ao público nas mesmas condições atuais”. E que o Jardim Zoológico de Sapucaia do Sul será objeto de concessão para ser gerido pela iniciativa privada.
Além disso, a SEMA alegava que iria absorver as atribuições da FZB e que a transferência seria feita “sem qualquer prejuízo aos serviços hoje prestados”.
Segundo Mosmann, o futuro da fundação ainda está indefinido. “Toda essa questão ainda está sub judice, como se diz em linguagem jurídica, quer dizer que ainda não há decisão definitiva do judiciário e pode ser revista”.
Entre as incertezas geradas pela extinção da FZB está o futuro da lista de animais ameaçados de extinção, cuja atualização sempre ficou a cargo da Fundação. A última revisão foi em 2014 e, segundo declarações à imprensa do ornitólogo Glayson Bencke, o único especialista em aves no quadro do funcionalismo gaúcho, já estaria no momento de fazer uma nova atualização. Foi ele quem coordenou a equipe de 130 pesquisadores que realizou a última revisão da lista de espécies ameaçadas.
Para Brack, tanto o Museu de Ciências Naturais, quanto o Jardim Botânico e o Zoológico – que funcionavam de maneira bem integrada -, desempenhavam papel importantíssimo para as políticas de conhecimento, manutenção de coleções científicas e conservação da biodiversidade. “Os projetos de pesquisa estão dificultados hoje sem o caráter de uma instituição de pesquisa e sem o CNPJ da Fundação”, lamenta.
Além disso, ele conta que o viveiro do Jardim Botânico era, até então, o mais completo do Estado, incluindo até mesmo espécies ameaçadas de extinção. “Agora isso está sem perspectiva de continuidade, ou seja, sem um plano que evite ser fechado, o que seria uma calamidade”, aponta Brack.
Ainda pode haver uma luz no fim do túnel. “Teoricamente, se obedecermos a nova lei que garante que JB, MCN e Zoo são patrimônios, então eles devem seguir funcionando, senão são patrimônios de mentirinha”, diz. “A sociedade não pode ficar passiva a isso, e a situação só vai mudar se ela se mexer e cobrar o que ainda consta em lei”, convoca o biólogo.
Segundo Brack, a FZB continua desempenhando as suas funções, mesmo que de forma fragilizada. “A Fundação ainda mantém acervos vivos de plantas no Jardim Botânico e animais silvestres no Zoológico”, conta. Ele observa, no entanto, que o Museu e o Jardim Botânico ficaram ainda mais desestruturados após a retirada de chefias e a promoção ou incentivo à demissão ou aposentadorias, sem reposição, a partir de 2016.
Vários técnicos do JB e MCN foram sendo desligados definitivamente ou transferidos para a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), inseridos em uma Divisão de Pesquisas e Manutenção de Coleções Científicas, com prejuízos graves na pesquisa e no acompanhamento, cuidado e gestão de milhares de plantas. “As excursões de campo seguem, mesmo que diminuídas, mas o papel destas três instituições é imprescindível e insubstituível”, afirma Brack.
Atualmente, as atividades e os técnicos da FZB foram incorporados à Sema, no Departamento de Biodiversidade (DBio). Mas Brack diz que está difícil manter um nível de excelência no trabalho como a Fundação tinha anteriormente. “O Ministério Público Estadual cobra oficialmente a manutenção das atividades que garantem, no caso do Jardim Botânico, a qualidade do trabalho dentro da Categoria ‘A’”, explica. “Esta qualificação foi obtida com muito esforço, porém, a aposentadoria ou demissão de pesquisadores e o enfraquecimento do status de instituições de pesquisa vem inviabilizando a continuidade de várias atividades”, completa o biólogo.
Por ora, ainda não se sabe qual será o destino do patrimônio, das coleções e até mesmo dos servidores da FZB. Brack diz que internamente correm boatos que o governo do Estado e a direção da Sema desejam passar adiante o Jardim Botânico, por meio de parceria com alguma empresa ou com o setor não governamental. Já o Museu de Ciências Naturais seria repassado a alguma universidade privada. “Existe uma chance, mesmo que remota, de que o governo siga o processo de demissão dos funcionários do JB, MCN e Zoo, iniciado por Sartori”, lamenta. “Se isso ocorrer, estará ferindo a lei e jogando o Estado no obscurantismo científico. Sem técnicos de carreira, sem estrutura e sem recursos, as condições de trabalho se tornam insustentáveis e a memória do Jardim Botânico, do Museu de Ciências Naturais e do Zoológico se perde, sem retorno”, conclui Brack.
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