Esqueci! Deixei passar essa data tão importante: em julho, completei cinquenta anos de Brasil!
No dia 7 de julho de 1971, minha mãe, eu, com 4 anos de idade, meu irmão e minha irmã, com menos de 2 anos e apenas 4 meses, respectivamente, saímos de Buenos Aires e desembarcamos no Rio. Claro que não lembro nada disso! Estou me baseando apenas em documentos, que nem são muitos.
A carteira de trabalho do meu pai de 1972 diz que ele chegou ao Brasil duas semanas antes da gente, em 24 de junho de 1971. Trabalhou como gerente de marketing da Companhia Carioca Industrial, no Rio, entre outubro de 1972 e maio de 1973, quando ganhava 8.500 cruzeiros mensais. Eu lembro disso por causa dessa foto: eu me equilibrando em latas de produtos da fábrica.
Em seguida ele foi empregado como “auxiliar administração extra quadro” no Banco Lar Brasileiro, que era o Chase Manhattan, entre dezembro de 1973 e maio de 1976, com salário de 6.500 cruzeiros. Não sei se o salário dele diminuiu comparado à Carioca Industrial, ou se teve alguma troca de moeda. Eu lembro que ele falava que odiava aquele emprego, que envolvia relações públicas, coquetéis, happy hours.
Foi por detestar o emprego, pelo que eu entendi (mas quanto da vida adulta uma criança realmente sabe?), que meu pai largou o banco. Não tinha quase nada de dinheiro guardado, minha mãe não trabalhava fora, e ele imaginava que encontraria um outro emprego rapidamente. Não foi o que aconteceu. Levou meses, e nesse tempo não tínhamos como pagar aluguel, logo fomos despejados e passamos uns meses com a minha tia, e, depois, moramos de favor num prédio abandonado de três andares, com varanda para um enorme depósito de lixo (com direito a piolhos, besouros e batatas voadoras o tempo todo).
Havia uma lojinha no térreo do prédio que vendia bugigangas, o 1,99 da época. Eu lembro porque eu economizei qualquer mesada que recebi e comprei presente de Natal pro meu irmão e minha irmã: um mini-telefone verde e uma Moniquinha, ambos de plástico. Foi a época mais pobre da nossa vida. E ainda assim, não chegamos a passar fome. Alguém (amigos dos meus pais, nunca soube quem) emprestou um prédio abandonado caindo aos pedaços pra gente viver lá.
Eu pensava que nossa era de vacas magras no prédio abandonado tinha durado mais, pelo menos até o início de 1977, mas não. A carteira de trabalho mostra que meu pai conseguiu seu melhor emprego no Brasil em 20 de dezembro de 1976. Portanto, foi pouco tempo de miséria: do final de maio até o final de dezembro de 1976. E em sete meses perdemos tudo! Tivemos que largar a escola, não conseguíamos pagar o aluguel…
O ótimo emprego que meu pai tinha conseguido foi em São Paulo, e minha mãe não queria sair do Rio, mas a gente não queria ficar longe do nosso pai (o tempo que passamos longe durante o impasse foi triste demais). Finalmente nos mudamos, e nossa vida melhorou muito. Agora meu pai era chefe do departamento de pesquisas e serviços de marketing da Denison Propaganda, uma das dez maiores agências do país, na época. Ganhava 30 mil cruzeiros mensais.
Ficou lá até abril de 1986, pouco depois do dono da agência morrer e os filhos assumirem. Os diretores de cada área saíram e abriram cada um sua própria agência, e convenceram meu pai a sair também e abrir seu instituto de pesquisa, a Tendência
Olha o que era a inflação: em 1986, seu salário era de 22 milhões quatrocentos mil cruzeiros mensais. Impossível saber quanto isso é hoje! Uma das conversões que vi indica que os 22 milhões seriam referentes a mais de 13 mil reais hoje, mas é quase impossível calcular todas as mudanças de moedas antes do real. Tanto que hoje, pro cálculo de aposentadoria, só entra o emprego que você teve antes de 1994 pra calcular tempo de serviço, mas não valores.
Gestar seu próprio negócio foi difícil, e nosso padrão de vida caiu bastante de novo. Era muito mais seguro ganhar um salário mensal fixo. Meu pai manteve seu instituto, a Tendência, até morrer, em abril de 1993. Eu cheguei a trabalhar lá quase dois anos como (única) secretária, com carteira assinada, em 1988. Usava uma máquina de escrever elétrica.
Demorei pra me naturalizar, porque é um processo burocrático longo e trabalhoso, e também porque, sendo residente permanente no Brasil, eu tinha quase todos os direitos de uma cidadã brasileira. Certo, teve uma vez, nos anos 90, que eu queria jogar o campeonato feminino de xadrez, e fui impedida por não ser brasileira. Mas o principal motivo pra eu me naturalizar era um só: eu queria poder votar. Finalmente, em janeiro de 1998, quando eu já morava em Joinville, consegui me naturalizar. Lembro vagamente que tive que fazer um teste de português. Passei!
Quase todo mundo fica surpreso ao saber que não sou natural daqui porque não tenho sotaque. Mas também, eu vim pra cá com quatro aninhos, era um pinguinho de gente (e, pelos registros escolares, não foi tão fácil aprender português)! Tenho uma boa pronúncia em espanhol, só que falta vocabulário, conjugação verbal, essas coisas de quem nunca foi alfabetizada na língua materna. E certamente não sei escrever em espanhol!
Quando vou pra Argentina, vou como turista, e entro com meu RG, não com meu passaporte argentino (que não é renovado faz tempo). Não tenho mais família lá há décadas. Eu me comunico bastante bem naquela capital que me lembra tanto meu amado pai (minha mãe era de Santa Fé, que nunca conheci). Os portenhos dizem que eu falo muito bem espanhol pruma brasileira, e às vezes fico com vergonha de dizer: “Ahn, no fundo eu sou argentina…”
Achei muito simbólico receber o título de cidadã cearense (bom, não recebi ainda, por causa da pandemia, mas algum dia vai haver uma cerimônia na Assembleia Legislativa do Ceará) bem no ano em que completo meio século de Brasil. Adoro este país, apesar de tudo, e tenho fé que conseguiremos reconstruí-lo e encontrar um rumo. Foi o país que meus pais escolheram pra viver, e que eu escolhi também, quando a gente já tem idade pra fazer escolhas. Minha vida é aqui, e não tenho vontade de morar em qualquer lugar que não seja o Nordeste!
O post “FAZ MEIO SÉCULO QUE VIM PARA O BRASIL” foi publicado em 23rd August 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva