O Guandu era um riacho pequenino até 1952, quando uma portentosa obra de engenharia turbinou seu cotidiano para sempre. De riacho, passou a caminho de volumosas águas que abastecem 9,5 milhões de fluminenses — 73% da população de toda a Região Metropolitana do Rio. Após passar por um intricado sistema de barragens, elevatórias, dutos e usinas hidrelétricas, as águas que nascem no município de Areias, em São Paulo e formam o Paraíba do Sul, chegam ao Guandu, onde são captadas pela Cedae, já na Baixada Fluminense. É um caminho sinuoso, complexo, e sujeito a contratempos que impedem qualquer “plano B” emergencial. Em outras palavras, trata-se de um sistema desprovido de redundância.
“Se por alguma razão, a torneira do Paraíba do Sul se fechasse, estaria extinguida a possibilidade de vida na Região Metropolitana do Rio de Janeiro como nós a conhecemos”, diz Paulo Carneiro, pesquisador do Laboratório de Sistemas Avançados de Gestão da Produção (Sage/Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Não existe um plano B para o abastecimento. Os rios que cortam a Baía da Guanabara são rios de pequeno volume. Além disso, hoje são todos poluídos”.
São Gonçalo, Niterói, Itaboraí e a Ilha de Paquetá são abastecidos por outro sistema, o Imunana-Laranjal, irrigado pelos rios Guapi-Macacu, onde não há reservatórios. Ademais, esse sistema já está em estresse, posto que há mais demanda do que oferta. Há ainda pequenos mananciais que nascem nas serras de Gericinó-Mendanha, na Zona Oeste, que contribuem com uma pequena porção de moradores.
Sistema ‘não pode parar’, e isso implica riscos
O que preocupa no sistema Paraíba do Sul-Guandu não seria, é claro, eventual problema em uma “torneira”. Mas especificamente dois pontos mais sensíveis da estrutura de transposição do Paraíba do Sul gerido pela Light: um túnel que liga a elevatória de Santa Cecília, em Barra do Piraí, ao reservatório de Santana, e uma tubulação que liga o reservatório de Vigário à hidrelétrica Nilo Peçanha, em Piraí. É como se o Grande Rio fosse abastecido por uma enorme piscina, mas dotada de apenas único canudo para drenar todo o líquido.
Na sintonia entre quantidade e qualidade de água, Cedae e Light dividem responsabilidades. A primeira zela pelo abastecimento público, mas precisa contar com o sistema de geração de energia da segunda. As regras de operação são determinadas por resolução federal, sempre com prioridade para o abastecimento das cidades, mas o diálogo nem sempre é fácil.
A falta de alternativas pode representar uma ameaça para a própria infraestrutura de transposição, lembra a professora Rosa Formiga, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ex-diretora de Gestão das Águas e do Território do Instituto Estadual do Ambiente (Inea):
“Existe uma parte da infraestrutura da Light na qual a empresa não pode realizar manutenção por conta da impossibilidade de parar a transposição. Isso é gravíssimo”.
Em resumo, o sistema opera sempre no limite. O risco não é faltar energia – o sistema é interligado e não depende totalmente das hidrelétricas fluminenses -, mas secar as torneiras de 9,5 milhões de pessoas. Rosa lembra que inclusive o Conselho Estadual de Recursos Hídricos chegou a defender obras para garantir redundância no sistema (veja o documento, de dezembro de 2010 ), mas não houve avanços. A solução apontada seria construir uma tubulação ligando os reservatórios Vigário e Ponte Coberta, como alternativa ao caminho único que liga a represa de Vigário à hidrelétrica Nilo Peçanha. Essa tubulação, apurou ((o))eco, não sofre manutenção desde 1979. A ideia é simples: caso um falhe, o outro compensa.
“Sugerimos que houvesse um rateio de custos entre Cedae, governo do estado do Rio e Light. Virou jogo de empurra-empurra por causa dos custos e ficou por isso mesmo”, lamenta. “O sistema de tratamento de água do Guandu é que eu conheço no Brasil que não paga pela operação de uma transposição. Uma transposição dessas é caríssima, e a Cedae e o governo do Rio não pagam nada por essa água que chega. Este dinheiro poderia ser usado para melhorar as condições ambientais das bacia do Guandu e de sua doadora de águas, a bacia do Paraíba do Sul”.
Há quem considere outras opções mais baratas e plausíveis. É o caso de Jerson Kelman, ex-presidente da Light.
“Se o problema de qualidade e quantidade do Guandu fosse responsabilidade de uma única companhia, teríamos uma solução simples: tratar os esgotos dos rios afluentes. É a solução de melhor custo-benefício”, comenta, numa referência à situação dramática do tratamento de esgotos da bacia do Guandu.
Outras grandes manchas urbanas, como a Grande São Paulo, são abastecidas por um conjunto de mananciais espalhados por suas regiões. Ainda que esta última metrópole tenha problemas passados e presentes , existe redundância em seu sistema de abastecimento.
Dez hidrelétricas pelo caminho
A gota d’água que chega às torneiras da capital e outras seis cidades da Baixada vem do Rio Paraíba do Sul desde o Vale do Paraíba paulista e passa por dez usinas geradoras de energia hidrelétrica, sete reservatórios que regularizam a vazão e duas elevatórias (que bombeiam a água morro acima). Para se ter uma ideia da viagem dessa gota d’água, a nascente dos rios Paraitinga e Paraibuna, formadores do Paraíba, está a 159 quilômetros do Centro do Rio, em linha reta: uma área rural do pacato município de Areias, nas proximidades do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em São Paulo.
Com a crise hídrica do Sudeste de 2014/15, São Paulo passou a usar também as águas do Paraíba. Desde agosto de 2018, a capital paulista recebe ao menos 5,1 metros cúbicos por segundo da represa de Jaguari, a segunda barragem para regularizar a vazão do rio. Por ano, esse canudinho de São Paulo pode puxar do Paraíba até 162 milhões de metros cúbicos – numa conta simples, 177 piscinas olímpicas diárias cheias de água.
A dinâmica das águas que abastecem o Rio | ||
M3/s | % | |
Indústria | 12,02 | 48% |
Irrigação + criação animal | 3,21 | 13% |
Urbano | 8,29 | 33% |
Outros | 1,48 | 6% |
Fonte: Agência Nacional da Água (ANA) |
Até a elevatória de Santa Cecília, em Barra do Piraí, a indústria responde pelo principal uso da água (48%), seguido pelas cidades (33%) e irrigação e criação animal (13%). A partir de Santa Cecília, há o desvio de até 160 metros cúbicos por segundo para o Ribeirão das Lajes e o Guandu. Outros 90 metros cúbicos por segundo seguem Paraíba do Sul, rumo ao mar de Atafona, em São João da Barra. Na transposição, depois de subir 300 metros, sob a força de bombas, as águas desviadas descem morro abaixo e passam por turbinas hidrelétricas.
Na hidrelétrica Nilo Peçanha, há um encontro de águas: as transportas do Paraíba com as do reservatório de Ribeirão das Lajes. Lajes tem boa cobertura vegetal e uma água considerada “classe especial”, de excelente qualidade. O reservatório, com capacidade para 450 milhões de m3, foi construído por empresa canadense, em 1908. Uma calha leva parte da água de Lajes diretamente para o sistema da Cedae: são 5,5 metros cúbicos por segundo.
Depois de descer rio abaixo, o reservatório de Ponte Coberta, a hidrelétrica Pereira Passos, no sopé da Serra das Araras, regulariza a vazão do Guandu a 120 m3/s – a Cedae, ainda mais abaixo, vai captar 37% deste volume na ETA Guandu. Há 68 anos Guandu é, portanto, a junção de águas de duas bacias diferentes: a do Piraí/Ribeirão das Lajes com as do Paraíba do Sul. Com 108 quilômetros de extensão e nascido no município de Paracambi, o Guandu deságua na baía de Sepetiba, já rebatizado de Canal de São Francisco.
O que diz a Light
((o))eco enviou cinco perguntas para a Light, por e-mail, no dia 25 de abril. No dia 28, a empresa informou, via assessoria de imprensa, que não “iria participar da reportagem”, após o envio das questões à diretoria.
Na noite de 22 de janeiro de 1967, um temporal de proporções bíblicas matou mais de 2 mil pessoas na região de Piraí, no Médio Paraíba, e mostrou que o sistema Light não está imune a contratempos que podem afetar o abastecimento de água do Grande Rio. Uma enxurrada de lama inundou a hidrelétrica Nilo Peçanha, operada pela Light, e exigiu uma força-tarefa para solucionar o problema. Na ocasião, um torneiro mecânico chamado Darcy de Souza reuniu amigos e nadou num líquido contaminado por ascarel, um fluido organoclorado de alta toxidade, para desobstruir a saída da usina, totalmente tomada por entulhos. Darcy, que faleceu aos 88 anos, em 2015, é pai do ex-governador do Rio, Luiz Fernando Pezão.
“Papai entrou dentro da usina subterrânea e mergulhou no ascarel, enquanto as turbinas ainda giravam”, conta Pezão. “Ele trabalhou por 46 anos na Light, e mesmo tendo tido contato com esse contaminante, viveu bem”.
Em uma revista da Light, de 1987, a escritora Rachel de Queiroz chegou a ser ouvida para relatar o que testemunhou na enxurrada daquela fatídica noite. “Confesso que não encontro a palavra adequada para descrever o que aconteceu. (…) Catástrofe, cataclisma, dilúvio? Essas palavras dizem um pouco, mas não dizem tudo“, escreveu.
Por causa da tempestade, as hidrelétricas Nilo Peçanha, Fontes Nova e Pereira Passos ficaram desativadas, houve redução em 40% na distribuição de energia elétrica para o Grande Rio e faltou energia por 13 horas em bairros da Baixada. Na época, a dependência da capital do sistema Light era bem maior.
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O post “Falta de ‘plano B’ põe em risco abastecimento de água do Rio” foi publicado em 30th April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco