“Com o tempo ele foi deteriorando,” diz o médico clínico Dr. Roberto Lesacano, que atende no estado de Entre Rios, no nordeste da Argentina. “Foi uma coisa progressiva. Cada vez mais foi se deteriorando, até que chegou um momento em que ele não podia mais se mover.” Seu paciente era o camponês Fabián Amaranto Tomasi. Símbolo da luta contra os agrotóxicos na Argentina, Fabián faleceu em setembro do ano passado, aos 52 anos.
Durante quase uma década, Fabián trabalhou para a Molina & Cia. SRL, uma empresa de pulverização aérea que tem uma base em Basabilbaso, um vilarejo em Entre Rios com menos de 10 mil habitantes onde o camponês nasceu e foi criado.
Fabián trabalhava na fumigação de plantações de arroz e soja com agrotóxicos como endosulfan, 2,4-D, clorpirifos e glifosato. Entre as tarefas, ele organizava o estoque, equipava os aviões com o veneno antes de levantarem voo e trabalhava em campo como bandeirinha sinalizando o melhor trajeto para as aeronaves.
Em 2007, Fabián começou a desenvolver machucados na ponta dos dedos e foi até o consultório do Dr. Roberto Lescano. Na época, já sofria de diabetes, e imaginava ser um desdobramento da doença. Mas não era isso.
“Era o início da perda de massa muscular,” diz o médico em entrevista à Agência Pública e Repórter Brasil. “À medida que aquilo foi evoluindo, me dei conta de que [os sintomas] tinham a ver com o histórico de trabalho dele. Foi quando eu o mandei para uma clínica especializada onde eles fizeram os estudos e confirmaram que ele tinha neuropatia tóxica”, diz ele. “Na análise apareceram vários agrotóxicos”. O distúrbio neurológico leva ao mau funcionamento dos nervos periféricos. Segundo o médico de Fabián, foi a contaminação por agrotóxicos que levou Fabián a desenvolver a neuropatia tóxica.
Fabián viveu durante mais de uma década com o distúrbio e, como consequência, sofreu problemas digestivos, dores nas articulações, mobilidade limitada e perda de massa muscular excessiva.
“Eu estava secando”, disse o próprio Fabián, em um relato que foi publicado no livro “Envenenados” do jornalista argentino Patricio Eleisegui, em 2013. “Tenho o corpo seco da cintura para cima. Quase não tenho músculo nenhum, só pele e osso”.
Quando começou a trabalhar na empresa Molina & Cia SRL, Fabián, que tinha 1,70 de altura, pesava 80 quilos. No final da sua vida, pesava 50.
Um ranking da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) feita pela Phillips McDougall em 2013, mostra quanto os 20 maiores mercados globais gasta com pesticidas tendo o tamanho da produção agrícola como referência. O cálculo é feito dividindo os gastos absolutos pelas toneladas de alimento produzidos. A Argentina aparece em 10º da lista (US$ 12 por tonelada) e ganha do Brasil que chega em 13º (US$ 9 por tonelada).
Um estudo da ONG Naturaleza de Derechos conclui que são considerados cancerígenos 44% dos 82 agrotóxicos detectados em alimentos monitorados pelo SENASA, órgão de fiscalização do governo argentino. Entre eles estão todos os campeões de produção em Entre Rios: tangerina, laranja, arroz e soja.
Segundo o Ministério de Economia, Fazenda e Finanças da Argentina , Entre Rios é o segundo maior produtor nacional de arroz e o quarto maior produtor de soja do país. O estado também é líder na produção de amoras e cítricos.
Sem proteção e sem orientação
Fabián cresceu em meio à natureza e à agricultura. Nascido em 1966, passou a infância tendo contato com as frutas que brotavam em Basabilbaso. O Dr. Roberto Lescano, mais de dez anos mais velho, era seu vizinho. “Invadíamos as casas dos vizinhos para pegar uvas, peras, laranjas e tangerinas. Arrancávamos a laranja ou a tangerina e nos sentávamos para comer, e os vizinhos nem reclamavam. Depois íamos jogar futebol”, recorda o médico.
Foi apenas com o tempo que Fabián construiu uma outra relação com as plantações – e tornou-se crítico. “Estão fazendo da agricultura um campo de concentração”, disse, em seu relato de 2013.
Enquanto trabalhou para Molina&Cia SRL, Fabián teve cargos com distintos graus de exposição aos agrotóxicos. “Quando trabalhava como bandeirinha os aviões passavam e o molhavam inteiro com o produto que estavam fumigando. Ele ficava com aquela roupa até que o produto se fixava no corpo. Foi isso que levou a tal grau de deterioração – porque foi uma exposição muito violenta e consecutiva, sem cuidado nenhum”, explica Roberto Lescano, acrescentando que a empresa não providenciava máscaras de proteção e nem orientava os funcionários.
“Trabalhei para Molina & Cia SRL. sem carteira assinada e sem qualquer proteção. Nunca nos protegíamos com nada e muito menos quando começamos a usar o glifosato, já que vem com um aviso na embalagem que diz que o produto é levemente tóxico”, afirmou Fabián em seu relato.
Um estudo de 2017 conduzido pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas do governo argentino e a Universidade Nacional de La Plata, revelou que a concentração de glifosato em Entre Rios está entre as mais altas do mundo. A substância foi classificada em 2015 pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) como “provável carcinógeno humano”.
Procurada pela reportagem por e-mail e telefone, a empresa Molina & Cia SRL não respondeu às perguntas até a publicação.
Cerca de três anos depois de detectar os primeiros sintomas, Fabián saiu da Molina & Cia SRL e passou a trabalhar como taxista. “Ele assumiu a doença. Sua preocupação maior era como continuar sustentando a família. Era uma pessoa com uma fortaleza de espírito muito grande. Muito batalhador”, diz Roberto Lescano.
No final de 2014, Fabián se aposentou por invalidez. Mas ele e a família seguiram convivendo com a intoxicação.
“Quando o meu pai foi ficando mais doente eu abandonei os meus estudos porque ficou complicado demais ir para a faculdade, que fica tão longe,” diz Nadia Tomasi, filha de Fabián, hoje com 24 anos. Ela estava estudando obstetrícia, mas a faculdade ficava a mais de 75 km de Basabilbaso. À medida que seu pai foi perdendo a coordenação motora, Nadia precisou estar por perto para cuidar dele. No final, Fabián não conseguia nem se alimentar sozinho.
Intoxicado até a alma
“Fabián teve uma intoxicação massiva por agrotóxicos. Fabián estava intoxicado até a alma. Ou seja, totalmente intoxicado,” explica o terapeuta neural Dr. Jorge Kaczewer, que tratou do camponês de 2008 até o fim da sua vida.
“Todo o seu organismo teve que armar fábricas ou depósitos de emergência para manter todas aquelas substâncias químicas confinadas. Por isso ele formava bolsões de líquido branco no corpo. Eram depósitos de emergência que o sistema dele armava para seguir em frente sem falha total até o final,” explica o Dr. Jorge. “Era como se o seu organismo virasse um campo de guerra. Isso fazia com que ele fosse deteriorando e parecesse cada vez mais pele e osso.”
Dr. Jorge foi um dos mais de 20 médicos que examinou Fabián por conta da doença. Os primeiros estimavam que ele teria apenas 6 meses de vida pela frente. Mas dr. Jorge iniciou uma terapia neural, tratamento homeopático que injeta procaína em áreas específicas do corpo para provocar um estímulo do sistema nervoso, além de outros tratamentos homeopáticos. “Tenho certeza de que esse coquetel de terapia neural com a homotoxicologia foi o que fez ele viver tanto tempo”, afirma o médico.
Em agosto de 2012, Fabián decidiu parar com os tratamentos – mas familiares dizem que ele não se entregou à doença. “Ele sempre teve bom humor. Ele achava que tudo se podia solucionar com bom humor,” conta Nadia. “Eu acho que foi bom humor que o manteve vivo durante tanto tempo, e claro, ele também tinha a mim e a minha avó como motivo para seguir vivendo.”
Outra razão levou Fabián a viver por mais de uma década com a doença: ele queria mostrar para o mundo o efeito que os agrotóxicos tinham tido no seu corpo. “Tenho certeza que o que o motivava era fazer com que outras pessoas não passassem pela mesma coisa”, diz o dr. Jorge Kaczewer.
A luta de Fabián
“Ele não via somente o seu caso, mas entendia que o problema era o modelo de produção agrícola na Argentina e na América Latina como um todo. Tinha entendido que o problema não era somente o uso do glifosato, mas outros produtos também”, afirma Eleisegui, o escritor que acompanhou a história do camponês desde 2010 para contá-la em “Envenenados”.
Apesar das dificuldades que tinha de locomoção, o camponês viajava para contar a sua história, participava de congressos contra o uso de pesticidas, ia para lançamentos de livros e chegou até a ser figurante em um filme de ficção sobre a agroindústria.
“Ele passou por uma transformação. Deixou de ser uma vítima, um afetado. E se deu conta de que poderia ser também um exemplo e mostrar para o mundo o que os agrotóxicos produzem,” diz Patricio.
Em 2013, Fabián foi procurado pela Rede de Médicos de Povo Fumigados, um grupo de cientistas e acadêmicos que lutam por uma produção agrícola mais sustentável. Quando o coordenador do grupo, Dr. Medardo Avila Vazquez, foi até Basavilbaso, Fabián se prontificou a dar um depoimento e a contar a sua história em congressos organizados pelo grupo.
“Fabián é um dos afetados mais valentes que já tivemos. Porque em geral as pessoas que ficam doentes, ou que têm filhos que adoeceram, não querem falar sobre essas coisas. Principalmente quando vivem em um vilarejo agrícola onde a economia toda depende disso e o poder político é atrelado à agricultura. Porque quem se coloca contra o agronegócio encontra resistência”, diz o Dr. Medardo.
Mas Nadia acrescenta que o pai não se curvava ao medo; pelo contrário. “Ele que investigou tudo. Ele era muito inteligente. Sozinho foi entrando em contato com as pessoas que o ajudaram a falar sobre a sua situação”, diz. Nadia ainda destaca que o pai foi, e continua sendo, uma fonte de inspiração para ela. “Ele tinha uma força muito grande. Todos aprendemos muito com ele. Aprendi com ele a dar valor às pequenas coisas na vida.”
A família de Fabián nunca recebeu indenização ou apoio financeiro da empresa Molina & Cia.
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