A farra das milhares de guias de utilização emitidas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) nos últimos anos, permitindo a extração mineral sem licenciamento ambiental, segue acontecendo apesar de recomendações, investigações, acordos e processos.
Essas guias, que deveriam ser um instrumento de caráter excepcional, foram banalizadas e são usadas para autorizações mais rápidas em explorações que costumam acontecer sem fiscalização.
É justamente esse mecanismo que foi usado pelo esquema investigado na Operação Rejeito, em curso e na Operação Poeira Vermelha, de 2020, para legitimar a extração irregular de minério de ferro em Minas Gerais.
O uso das guias está associado, segundo as investigações da Polícia Federal (PF) e da Controladoria-Geral da União (CGU), à corrupção de agentes públicos da ANM.
Apesar de terem sido alvo de um acórdão (1368/2024 ) do Tribunal de Contas da União (TCU), de julho de 2024, com a determinação de que a ANM deveria restringir a emissão de guias em quantidades “compatíveis com as necessidades da pesquisa e dos estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental”, pesquisas realizadas pela reportagem encontraram mais de 30 processos em que foram concedidos permissões de lavra como esse mesmo tipo de ato, entre agosto de 2024 e o último dia 9 de outubro.
Os dados mostram que o uso das guias descumpriu, pelo menos em um caso específico em fevereiro deste ano, a decisão do TCU, com o envolvimento direto de pelo menos um dos alvos das operações citadas na liberação deste mecanismo dentro da burocracia da ANM.
O uso indevido deste expediente pela ANM foi revelado com exclusividade pelo Observatório da Mineração em fevereiro deste ano. A reportagem apontou que empresas brasileiras estão sendo beneficiadas com autorizações deste tipo para extração de substâncias em terra e no fundo do mar sem licenciamento ambiental.
Este mesmo modelo se repetiu, conforme investigação da PF e CGU, em Minas Gerais. O uso das guias de utilização pelo esquema das mineradoras no estado é detalhado em pelo menos dois contextos nos autos judiciais da Operação Rejeito, e da Poeira Vermelha, que deu origem à investigação mais recente e veio à tona em setembro deste ano.
O esquema criminoso envolveu a extração irregular de minério de ferro entre fevereiro e julho de 2020, “sem a devida licença, mediante simulacro de atividade de terraplanagem”. A Mineração Gute Sicht, na época com o nome de Mineração e Dragagem Boa Vista e uma das empresas investigadas na Rejeito, protocolou o pedido de extração mineral por meio de guia de utilização de forma “completamente irregular”.
A empresa utilizou uma certidão de dispensa de licenciamento ambiental expedida em nome de outra empresa, a Valefort Comércio e Transporte Ltda-ME, o que “por si só já seria impeditivo, pois documento expedido para terceiro não poderia ser utilizado”.
“O processo da Gute Sicht valeu-se de Guia de utilização obtida com documentos indevidos, em desvio de finalidade”, aponta o processo judicial.
A guia também foi utilizada com objetivo declarado de construção de uma garagem, mas os policiais constataram que no local não foi construída uma edificação, “o que somente corrobora a tese de que o real objetivo da intervenção no local dos fatos era, sim, o de extração e exploração mineral ilegal”.
Alto escalão da ANM envolvido em autorizações suspeitas
Já no Projeto Aiga Mineração S/A, outro evento investigado pela Operação Rejeito, a guia foi usada para que os investigados se apossassem de rejeitos de minério de “alto valor de mercado” que haviam sido estocados pela Vale S.A. na Mina Capanema, estimados em cerca de R$ 200 milhões.
“A organização agiu junto à ANM para obter uma Guia de Utilização sobre esse material. O agente público cooptado, LEANDRO CÉSAR FERREIRA, Gerente Regional da ANM em Minas Gerais, assinou a renovação do Alvará de Pesquisa (7/8/2023) e, em seguida, a emissão de Guia de Utilização (26/9/2023), para amostragem de 300.000 toneladas por ano de minério de ferro, envolvendo material depositado em pilha de estéril e ‘in situ”, aponta a investigação.
Como também mostrou o Observatório da Mineração no começo deste mês , o citado Leandro Cesar Ferreira de Carvalho foi afastado do cargo de gerente regional da ANM em Minas Gerais por conta de sua atuação em favor da Empabra, empresa alvo da Operação Operação Parcours.
Na Operação Rejeito, ele é citado 43 vezes no despacho de deflagração da fase ostensiva da investigação, além dos pedidos de busca e apreensão nos seus endereços, afastamento da função pública na ANM e de prisão preventiva.
Diretor da ANM preso na Operação Rejeito emitiu guia de utilização cinco vezes acima do volume permitido para empresa de Minas Gerais; TCU cancelou o ato no mesmo dia da prisão
A atuação mais recente do TCU sobre o uso de guias de utilização resultou na suspensão imediata, em 17 de setembro deste ano, de uma guia que autorizava a extração de 1,5 milhão de toneladas por ano de minério de ferro concentrado por um período de três anos para a Serra Norte Minerações Ltda.
“A unidade técnica evidencia que a plausibilidade jurídica está robustamente caracterizada pelos fortes indícios de que a ANM descumpriu a legislação e as deliberações do TCU, notadamente o Acórdão 1.368/2024-Plenário”, aponta o relator do processo, ministro Jhonathan de Jesus.
A Guia de Utilização n.º 40/2025 foi expedida por Caio Mário Trivellato Seabra Filho, um dos alvos da Operação Rejeito e que continua preso por decisão da Justiça Federal.
O relator da medida cautelar contra o ato da ANM registra o fato no seu despacho, coincidentemente, dia da deflagração da fase ostensiva da operação e da prisão do diretor, além de corroborar os pedidos de ampliação da auditoria:
“A propósito, registro que, na data de hoje, a Polícia Federal prendeu o Diretor da ANM, Caio Mário Trivellato Seabra Filho, signatário da guia em análise. A operação investiga esquema de mineração ilegal, com indícios de corrupção e danos ambientais, o que reforça a necessidade da medida cautelar adotada. Em razão da gravidade da situação, acolho a oportuna proposta formulada pelo Ministro Bruno Dantas nesta sessão de julgamento, no sentido de determinar a realização de auditoria na Agência Nacional de Mineração, com fundamento no art. 244, § 2º, do Regimento Interno. Os fatos noticiados, somados aos indícios apurados neste processo, revelam um quadro preocupante que exige apuração aprofundada por parte deste Tribunal”, destacou o ministro do TCU.
Seabra Filho foi apontado nas investigações como um dos diretores da ANM cooptados pela organização criminosa e que sua atuação em prol do grupo “data de longa data”, com registros de conversas desde 19 de julho de 2020 relacionadas a demandas sobre bens minerais apreendidos. Segundo a investigação, há “fortes indícios” de que o diretor tenha recebido propina no valor de R$ 3 milhões.
O processo para a emissão da guia 40/2025 seguiu os trâmites que envolviam a Diretoria Colegiada da ANM e Caio Seabra. O processo foi distribuído ao investigado para relatoria e teve seu voto favorável em 24 de janeiro deste ano com emissão da guia quatro dias depois, em 28 de janeiro.
Depois, foi aprovado pela Diretoria Colegiada em sua 70ª reunião da ANM realizada em 30 de janeiro de 2025, mesmo tendo um volume de extração acima do permitido.
“A emissão de guia de utilização para extração mineral em volume cinco vezes superior ao limite regulamentar, sem prévio licenciamento ambiental e sem motivação técnica fundamentada, revela, em cognição sumária, grave violação ao ordenamento jurídico e ao entendimento já consolidado por este Tribunal“, acrescenta o despacho do TCU.

Irregularidades em guias de utilização seguem há anos, apesar de investigações e recomendações
O TCU informa que não realizou nenhum trabalho antes da Operação Rejeito que tenha relação específica e direta com a investigação da PF e da CGU e que a auditoria de conformidade foi motivada pelo risco constatado em um relatório de acompanhamento das ações da ANM ainda em 2018.
Na ação de 2018, constatou-se, diz o TCU, que a supervisão exercida pela então Superintendência de Pesquisa e Recursos Minerais da ANM (SPM/ANM) sobre os procedimentos de análise dos requerimentos e de emissão de guias de utilização “era ineficiente”. E que na primeira fase da investigação foram identificados quatro “achados”, termo usado no jargão técnico dos tribunais de contas para apontar irregularidades:
- a) emissão descontrolada de guias de utilização, em caráter não excepcional, em detrimento da outorga da concessão de lavra. Isso resultou em ineficiência na alocação dos escassos recursos humanos e materiais da agência e na antecipação indevida dos efeitos das portarias de concessão de lavra;
- b) ausência de indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinaram as decisões da ANM sobre a concessão de guia de utilização. Para simplificar e acelerar a emissão de guias, houve negligência na instrução dos requerimentos. Isso resultava em aprovações sem comprovação formal do preenchimento dos requisitos previstos na legislação;
- c) dispensa ilegal pela ANM do prévio licenciamento ambiental para emissão de guias de utilização;
- d) descumprimento do prazo para apresentação da licença ambiental e da declaração de produção antes da eficácia da guia de utilização, por omissão da ANM do seu dever de fiscalização e da supressão de controle prévio. Tal fato resultou em potencial risco de danos não controlados ao meio ambiente e possível usurpação de recursos minerais da União.
Diante das irregularidades, o TCU determinou que a agência apresentasse um plano de ação ao TCU, no prazo de 180 dias e restringiu a emissão de guias de utilização. O acórdão de julho de 2024 também criou um processo de monitoramento (TC 022.242/2024-4 ) que ainda não teve novas deliberações.
Este processo, segundo o TCU, poderá gerar eventual responsabilização, caso seja constatado descumprimento das deliberações. A corte de contas, ao responder aos questionamentos da reportagem, informa que não encaminhou o processo para outros órgãos de controle como o Ministério Público Federal (MPF) para que também fossem investigados os fatos apurados na auditoria.
“No caso concreto das empresas que obtiveram guia de utilização e realizam atividades de lavra sem apresentar o devido licenciamento ambiental, caberá ao TCU apurar a possível irregularidade na fiscalização que deveria ter sido exercida pela Agência Nacional de Mineração (ANM)”, informa o TCU por meio de sua assessoria de comunicação.
Defesa de diretor da ANM afirma que emissão decisão do TCU não analisou mérito do caso
A defesa do diretor da ANM Seabra Filho defendeu a legalidade do ato em resposta ao Observatório da Mineração.
“A Guia de Utilização é uma autorização, em caráter excepcional, para a extração de determinadas substâncias antes da outorga de concessão de lavra, nos termos dos artigos 22, § 2º, do Decreto Lei nº 227/1967, e 24 do Decreto nº 9.406/2018. A validade e eficácia da Guia de Utilização estão vinculadas a emissão da Licença Ambiental. Isso consta expressamente na Guia emitida e assinada pelo Diretor Geral da ANM. O minerador tem que juntar a licença no processo minerário tão logo esta seja emitida. Ou seja, sem a Licença Ambiental não é autorizada a exploração”, afirma Patrícia Henriques, advogada do diretor da ANM.
Segundo as alegações da sua defesa, no caso específico da Serra Norte houve parecer técnico em favor da mineradora tanto na Gerência Regional quanto na Superintendência. Com isso, afirma, a guia foi aprovada “por toda a Diretoria Colegiada da ANM, por unanimidade”.
“Essas diretrizes, acima mencionadas, seguem estritamente o previsto no Acórdão 1368/2024 do TCU. Em toda Guia de Utilização emitida consta expressamente que a sua eficácia e validade depende de uma Licença Ambiental a ser emitida pelo órgão ambiental competente. Até a sua emissão, a Guia não produz efeitos, ou seja, não está vigente. O TCU proferiu uma decisão liminar, que é uma decisão urgente, aparentemente sem análise do mérito, como foi colocada na própria decisão”, alega a defesa de Seabra Filho.
O diretor da ANM, que continua preso, terá um pedido de habeas corpus julgado pelo TRF 6 no dia 22 deste mês. Sua defesa diz que o processo está em sigilo e que por esse motivo não poderia apontar quais são suas alegações de defesa.
A Serra Norte, por meio de um dos seus sócios, Xisto Andrade de Oliveira Júnior, alega que ainda não executou nenhuma atividade após a emissão da guia de utilização. “Não está havendo, nem jamais houve, qualquer atividade de extração de minério de ferro no direito minerário da Serra Norte. Atualmente, a referida área encontra-se sob o regime de Alvará de Pesquisa com requerimento de Guia de Utilização (GU) em tramitação. Conforme a legislação minerária vigente — e expressamente disposto na Guia de Utilização nº 40/2025, emitida pela Agência Nacional de Mineração (ANM) —, a validade e eficácia da GU estão condicionadas à obtenção da respectiva licença ambiental”, afirma a empresa.
Além disso, a mineradora também alega “que a licença ambiental da Serra Norte será apresentada à ANM antecedendo qualquer atividade de extração mineral, obedecendo o prazo limite de 10 (dez) dias após sua emissão pelo órgão ambiental competente”.
Ao contrário do que alega a empresa, o prazo de dez dias é contado a partir da emissão da guia de utilização pela ANM e não depois do licenciamento expedido pelo órgão ambiental. É o que descreve o artigo 107 da Resolução 37/2020 , da agência reguladora: “§ 3º O titular da GU deverá apresentar à ANM a licença ambiental ou documento equivalente dentro de 10 (dez) dias, contados a partir da emissão desta última, sob pena de cancelamento da Guia”.
A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Leandro Cesar Ferreira de Carvalho. O espaço continua aberto para suas alegações.
Procurada para esclarecer os casos de emissão de guias, a ANM afirmou que não vai responder aos questionamentos formulados pelo Observatório da Mineração.
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O post “Esquemas investigados nas operações Rejeito e Poeira Vermelha usaram guias de utilização da ANM, mecanismo que segue sem controle apesar de decisão do TCU” foi publicado em 14/10/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração