“Aqui estamos vencendo o vírus chinês”, diz o tweet fixado no perfil de Everton Sodário (PSL) , prefeito da pequena Mirandópolis (SP), a quase 600km da capital. A receita milagrosa de Sodário para derrotar a pandemia de coronavírus? A distribuição de um “kit Covid”, que inclui hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, vitaminas C e D, além de zinco — todos comprovadamente ineficazes para combater a Covid-19 e todos comprados pela prefeitura com dinheiro público.
Nenhum dos medicamentos que compõem o “coquetel” tem aval da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou chancela da comunidade internacional, além de apresentarem possíveis efeitos adversos. Em informe de 17 de julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) afirmou ser urgente e necessário que a utilização da hidroxicloroquina “seja abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19”.
Segundo o boletim divulgado pelo município em 8 de outubro, a cidade acumula 422 casos e oito mortes por coronavírus, metade delas após o início da utilização do “kit Covid”, que, de acordo com o mandatário, produziu “reduções significativas nos números de internações e óbitos”. Os números são diferentes dos disponíveis na plataforma do Ministério da Saúde, que fala em 383 casos e nove óbitos no pequeno município de cerca de 30 mil habitantes.
Autodeclarado “cristão, direitista, conservador, bolsonarista, capitalista e anticomunista”, Sodário foi alçado ao poder municipal em eleição suplementar realizada em setembro de 2019, após a cassação da chapa que governava a cidade devido à rejeição das contas do vice-prefeito. No ano anterior, Sodário tentara uma vaga como deputado estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo. Não teve sucesso, mas conseguiu emprego no gabinete do deputado federal bolsonarista Coronel Tadeu (PSL-SP), de onde saiu para disputar a prefeitura de Mirandópolis. Em 2020, ele tenta a reeleição.
Em uma cidade onde parcela significativa da população se identifica com o bolsonarismo – 68,3% dos habitantes de Mirandópolis votaram em Bolsonaro no primeiro turno de 2018 –, Sodário foi eleito mimetizando pautas e o discurso do “capitão”, com quem jantou duas semanas antes do pleito suplementar , no ano passado. Em suas páginas nas redes sociais, Sodário compartilha fotos com armas e com a bandeira de Israel , exalta o presidente americano Donald Trump , critica João Doria pelos decretos de distanciamento social e posta vídeos em manifestações de apoio ao “mito” , se autointitulando como o “Bolsonaro caipira” .
Na pandemia, não foi diferente: o prefeito de Mirandópolis também vem seguindo à risca a narrativa bolsonarista. Em 25 de julho, anunciou que havia tomado uma dose preventiva de hidroxicloroquina contra o “vírus chinês” – apesar de diversos estudos que seguem as regras estabelecidas pela comunidade científica comprovarem a ineficácia da prática – e afirmou preferir “continuar com a Cloroquina do que tomar a vacina chinesa do DitaDória”. Nos comentários da publicação com doses de xenofobia, as teorias da conspiração contra a China se proliferam: “a vacina chinesa não tomaremos de jeito nenhum, deve estar infectada, como os testes que a China vendeu para a Espanha”, diz um; “essa vacina é um vírus chinês tipo um chip não é uma cura de jeito nenhum”, afirma outro.
“Kit Covid” quase mata moradora
Em sua defesa da hidroxicloroquina, Sodário não ficou somente nas palavras. Em 17 de maio, logo após o então ministro da saúde Nelson Teich pedir demissão por não concordar em recomendar os remédios que não têm eficácia comprovada, o prefeito de Mirandópolis anunciou que o município passaria a adotar os medicamentos contra o “vírus chinês” . No dia 22, dois dias depois do Ministério da Saúde autorizar o uso do medicamento para tratar casos leves e graves de Covid-19, Sodário fez um vídeo anunciando a autorização de compra de hidroxicloroquina pela prefeitura . No mês seguinte, anunciou a criação de kits com os medicamentos. A compra dos remédios ineficazes para combater a Covid-19 recebeu aplausos do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, via Twitter.
Médico, o vereador de Mirandópolis Carlos Weverton Sanches (Podemos-SP) critica a aposta em remédios que são comprovadamente ineficazes, de acordo com a comunidade científica. “A minha opinião, tanto como médico quanto como político, é de que não funciona, mas infelizmente algumas pessoas fazem política com essa droga. Isso causa nas pessoas uma falsa impressão de segurança, que faz com que elas saiam para a rua, quando elas deveriam procurar se isolar o quanto mais pudessem, lavar as mãos, usarem máscara, que são as medidas que nós sabemos que realmente são eficazes”, pondera o político.
A distribuição do “kit Covid” é feita em postos de saúde do município para todos aqueles que apresentarem sintomas da Covid-19 e aceitarem utilizar os medicamentos, mesmo sem que a infecção pelo coronavírus esteja comprovada por testes. Foi assim que uma moradora de Mirandópolis “quase morreu”, após a utilização do coquetel de medicamentos.
No final de agosto, sofrendo com fortes dores de cabeça, Mara* buscou um hospital da cidade. Lá, sem realizar teste para a doença, foi diagnosticada com Covid-19 e recebeu um “kit Covid”. “Fiquei em isolamento, longe da minha família, longe dos meus vizinhos, longe do meu convívio, não podia nem ir na igreja cultuar”, conta a mulher em uma live publicada em seu perfil no Facebook. “Esperei uns dias e procurei o postinho aqui no meu bairro, porque os remédios que me passaram pareciam que estavam triturando meus órgãos por dentro. Eu comecei a sentir muita dor, muita ânsia de vômito, passei muito mal, inclusive fui socorrida pela ambulância do município. Chegando no hospital na ala do Covid, a médica que me atendeu suspendeu toda a medicação”, relata. A moradora de Mirandópolis preferiu não ser identificada e não quis dar entrevista à reportagem, mas autorizou que suas falas na transmissão ao vivo fossem utilizadas.
Na live, Mara diz que, após interromper a utilização do “kit Covid” no terceiro dia, os sintomas melhoraram. Dias depois, a moradora de Mirandópolis realizou teste de anticorpos para a doença e constatou que nunca havia sido infectada pelo novo coronavírus. “Se eu concluo os 5 dias de tratamento não estaria aqui falando com vocês [na live], porque eu passei muito mal. Não desejo pra ninguém”, diz.
Para o vereador e médico Carlos Weverton, ao levar para o “palco da política” uma questão tão séria quanto um vírus, as pessoas acabam divididas. “Tem pessoas que acreditam que funciona, porque hoje o chefe do maior poder na cidade, que é o prefeito, é a favor da cloroquina. Eu acho que se aproveita muito desse momento crítico – onde as pessoas estão preocupadas, estão mais sensíveis e querem se apegar a alguma coisa que lhes passa mais confiança, lhes passa mais tranquilidade – para se fazer política com isso”, afirma o médico.
“DitaDoria”
Tal como o ocupante do Palácio do Planalto, o bolsonarista que comanda Mirandópolis também apontou suas armas para um inimigo em São Paulo: o governador João Doria. Desde o começo da pandemia, quando o comportamento de Doria começou a destoar da retórica de Bolsonaro, com a defesa de medidas de distanciamento social, Everton Sodário passou a disparar contra o tucano. Em um post , o prefeito posa com máscara estampada com a hashtag #ForaditaDória!!!. Em outro, critica a “tirania” do “desgovernador” , que à época manteve a região onde fica Mirandópolis na fase vermelha, a mais restritiva do Plano São Paulo, que organiza a retomada das atividades no estado.
Em pelo menos três oportunidades, Sodário tentou driblar ou derrubar as medidas estaduais de combate ao novo coronavírus. Em 6 de abril, publicou decreto promovendo a reabertura do comércio da cidade, mesmo que, no estado, a recomendação fosse pela manutenção das medidas de distanciamento. Pressionado, recuou dois dias depois, suspendendo o decreto. No mesmo dia, porém, impetrou mandado de segurança no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) pedindo a suspensão ou a flexibilização do decreto de Doria que prolongava a quarentena no estado até 22 de abril. O pedido foi negado pelo TJ-SP .
Na mesma época, a Promotoria de Justiça de Mirandópolis, que faz parte do Ministério Público estadual, emitiu recomendação ao prefeito , solicitando que ele interrompesse publicações nas redes sociais que fossem contrárias ao decreto estadual de quarentena ou que incitassem a população a descumprí-lo. Para os promotores responsáveis pela ação, as postagens de Sodário “ultrapassam o exercício do direito de liberdade de expressão”. Apesar disso, o prefeito de Mirandópolis continuou criticando as medidas de isolamento de Doria e passou a criticar também o Ministério Público ..
A despeito da recomendação da Promotoria – e das orientações do governo estadual e da Organização Mundial da Saúde –, o prefeito tentou novamente flexibilizar a quarentena na cidade via decreto , no início de junho. A tentativa foi novamente barrada pela Justiça , que estabeleceu multa de 10 mil reais em caso de descumprimento por Sodário.
A Agência Pública buscou um posicionamento do gabinete do prefeito Everton Sodário, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
Fonte
O post “Em Mirandópolis (SP), prefeito bolsonarista distribui “kit Covid” contra “vírus chinês”” foi publicado em 15th outubro 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública