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A vingativa e estratégica promessa cumprida por Jair Bolsonaro de “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena ” em seu governo teve uma irmã gêmea. Menos citada, a recusa na demarcação de territórios quilombolas foi igualmente deletéria para centenas de processos durante os quatro anos de Bolsonaro, praticamente aniquilando a política de demarcação de terras quilombolas no país. Cerca de 1.800 processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) continuam sem um desfecho, segundo servidores do órgão. Mais de 300 ações civis públicas foram ajuizadas, principalmente pelo Ministério Público Federal (MPF), para que a União cumpra a Constituição.
(Vingativa porque, como deputado federal, nos anos 1990, Bolsonaro tentou por duas vezes impedir a demarcação da Terra Indígena Yanomami e por duas vezes foi amplamente derrotado; estratégica porque atendeu a bancada ruralista, sua base eleitoral, e amplos setores do agronegócio, abertamente anti-indígenas.)
O desmonte da política bolsonarista sobre as terras quilombolas foi esquadrinhado em um “dossiê” elaborado por um coletivo de servidores do Incra denominado Aquilombola. Divulgado há duas semanas, o levantamento de 13 páginas mostra o papel que a auditoria interna do Incra desempenhou na paralisação dos processos de identificação e delimitação dos territórios.
Por meio de uma resolução de julho de 2020, nº 444, que determinou “a realização de avaliações e ações de controle sobre a política de regularização fundiária e titulação de áreas de comunidades quilombolas” no âmbito da auditoria interna, um setor vinculado à presidência do Incra, o governo Bolsonaro passou a questionar os atos e procedimentos dos seus próprios servidores públicos. O resultado foi a paralisação quase completa dos processos.
“Até novembro de 2021, 34 processos de regularização de territórios quilombolas em etapa de apreciação de recursos pelo Conselho Diretor (fase final do contraditório) e de publicação de Portaria de Reconhecimento foram encaminhados à Auditoria para revisões e reanálises, instituindo-se, assim, uma nova instância de avaliação informal. A auditoria estava fora, portanto, do trâmite legal estabelecido, e funcionou nesse período como contestação interna ao próprio Incra, questionando procedimentos aprovados nas respectivas instâncias normatizadas”, diz o relatório produzido pelo Aquilombola.
O coletivo dos servidores do Incra apontou que os relatórios da auditoria refletiam “um escasso conhecimento da matéria” e “pequena familiaridade com o tema”, sendo comum “a utilização de julgamentos de valor e argumentos de senso comum”. De modo geral, os relatórios usavam os mesmos argumentos já apresentados pelos proprietários de imóveis rurais a fim de questionar a demarcação dos territórios.
A ação da auditoria, diz o relatório da Aquilombola, “impactou diretamente servidoras e servidores no exercício de suas funções e no cumprimento de preceito constitucional e das atribuições do Incra”. “De forma antiética e autoritária, o contingente de servidores graduados e pós-graduados em ciências sociais e antropologia foram alvo de perseguição, questionamentos inapropriados e alheios à área de conhecimento e ameaças de processos disciplinares, entre outros.”
Com a ação da auditoria, o Incra “paralisou o fluxo regular de 34 processos de regularização fundiária de territórios, sendo que a maioria dos processos paralisados/suspensos sequer foram analisados, prejudicando os direitos das comunidades quilombolas”. Em maio de 2022, a auditoria devolveu 22 processos “que permaneciam sem qualquer análise em maio de 2022”.
“Os relatórios da Auditoria não têm nenhuma prestabilidade institucional e representam o racismo institucional do último governo negacionista e antiquilombola”, diz o dossiê do coletivo Aquilombola. De um total de 40 decretos já prontos para demarcação, apenas um foi assinado no governo anterior, em 2021.
O diagnóstico foi levado pelo Aquilombola ao governo Lula por meio de uma “síntese de propostas para a política quilombola conduzida pelo Incra para 2023”, encaminhada aos grupos de transição de governo nos temas da igualdade racial, do desenvolvimento agrário, do meio ambiente e da agricultura. O coletivo apontou que “a auditoria interna se valeu de conceitos estranhos à legislação de regularização de territórios quilombolas e serviu como etapa protelatória do andamento dos processos administrativos, com o objetivo de promover o cancelamento dos feitos. Muitos processos estão, até o presente momento, paralisados na auditoria”.
O levantamento mostra que, ao longo do governo Bolsonaro, a partir de um decreto do governo Michel Temer de 2017, “foram estabelecidos entendimentos jurídicos e gerenciais que impediram a titulação de territórios quilombolas”. “Segundo uma nova interpretação da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), não era mais “possível encaminhar um território para decretação de interesse social sem orçamento no exercício vigente, ao passo que não se prevê orçamento para essa ação orçamentária”.
Há alguns indicativos de que a política quilombola demonstra estar saindo da UTI com a chegada do novo governo em janeiro. De 16 conjuntos de portarias sobre territórios “que estavam prontos para assinatura em 2020, 14 foram assinados apenas a partir de abril de 2023, já na nova gestão do Incra”, apontou o dossiê dos servidores.
“Os processos foram paralisados por praticamente três anos. Na mesma situação ficaram os processos que estavam aptos para julgamento dos recursos. Sobre esses, salientamos a tentativa de revisão dos processos de Linharinho (ES), Paratibe (PB), Brejão dos Negros (SE) através das resoluções de dezembro de 2022 que foram baseadas nos relatórios produzidos pela auditoria. Felizmente, essas resoluções foram desconsideradas na nova gestão”, diz o estudo dos servidores.
Contudo, para a surpresa do coletivo dos servidores do Incra, o principal responsável pela auditoria interna durante o governo Bolsonaro, um servidor que em 2016 veio da Controladoria-Geral da União (CGU), estaria sendo cotado para ocupar um novo cargo no Incra do governo Lula, o de coordenador-geral de Gestão de Pessoas (DOH).
Em um email enviado à presidência do Incra no último dia 18, o coletivo Aquilombola repudiou a atuação do servidor “no governo anterior contra os processos de regularização de territórios quilombolas. Atuação esta que permaneceu ativa no atual governo. Assim, exigimos que tal pessoa não seja nomeada, pela atual administração, a novo cargo, assim como seja imediatamente desligada do que atualmente ocupa na Autarquia”. A carta do Aquilombola ao Incra foi noticiada no último dia 18 pelo “Brasil de Fato RS ”.
Para esta newsletter, a Agência Pública procurou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) e o Incra. O ministério disse que o instituto seria responsável pela resposta. Por email, a assessoria do Incra informou que o auditor questionado pelo coletivo dos servidores do Incra “foi indicado pela Controladoria- Geral da União (CGU) para atuar como chefe da auditoria do Incra, sendo nomeado pelo presidente do instituto em 2016. Posteriormente houve a renovação do mandato na chefia da unidade. O mandato venceu em 25/04/2023 e desde então o substituto está respondendo pela unidade”.
Segundo o Incra, o servidor da CGU “não foi nomeado para o cargo” de coordenador-geral de gestão de pessoas, o DOH, e “as nomeações no Incra seguem os critérios estabelecidos na Lei 14.205/2021 e no Decreto 10.829/2021”, ou seja, ambos do governo de Bolsonaro. Por fim, a assessoria defendeu que “as atividades de Auditoria foram realizadas com base nos normativos de controle interno estabelecidos pela CGU. Trata-se de uma atividade permanente e independente”.
Fonte
O post “Em dossiê, o “racismo institucional” do governo Bolsonaro” foi publicado em 02/08/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública