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Diz-se “ponto cego” para aquele irritante lugar onde, do ponto de vista do motorista, existe um carro nem exatamente ao lado nem exatamente atrás, onde não se consegue enxergá-lo. É mais ou menos isso o que ocorre com uma parte significativa da arquitetura da desinformação que foi acionada para fomentar o golpe de Estado no ano passado.
Os méritos dos últimos avanços da investigação do STF, revelados na Operação Tempus Veritatis, da PF, são inegáveis. É a primeira vez que uma investigação criminal leva em conta a construção de uma campanha desinformacional como elemento crucial para a preparação, a conspiração e, posteriormente, a execução do crime – no caso, a tentativa de golpe de Estado (artigo 359-1 do Código Penal) e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-M).
Trata-se de dar substância real ao fenômeno que jornalistas, especialistas, legisladores e políticos estamos debatendo há quase uma década: a industrialização das fake news para derrocar a democracia. É um exemplo para o mundo em meio à ascensão da extrema direita populista que se vale do mesmo playbook.
No entanto, como adivinhou o leitor, meu papel aqui não é elencar os méritos da investigação, mas apontar o que lhe falta. Como aqui do nosso cantinho do mundo as valentes repórteres da Agência Pública têm se dedicado há anos a investigar a falcatrua, encontramos alguns fios que ainda precisam ser puxados pelos órgãos competentes para ajudarem a circunscrever de fato o tamanho, o financiamento e o impacto da conspiração (alô PF, dá uma olhadinha aqui!).
Um deles é a atuação, ostensiva e de bastidores, de congressistas engajados na campanha desinformacional. Sabemos que senadores e deputados realizaram uma longa audiência pública no Senado no dia 30 de novembro, que durou 11 horas e foi vista por 140 mil pessoas ao mesmo tempo – chegou a mais de 2 milhões de views apenas no YouTube. A sessão da Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor foi presidida pelo senador Eduardo Girão, do PL, e teve mais de 40 congressistas.
Como relataram os repórteres Laura Scofield e Matheus Santino, durante esse longo dia, os congressistas deram palanque para mentiras sobre as urnas, ataques ao STF e TSE e pedidos de intervenção militar. O desembargador aposentado do Distrito Federal Sebastião Coelho defendeu a prisão de Moraes e a aplicação do artigo 142 – e foi aplaudido de pé. Outros deputados se engajaram mais abertamente. Filipe Barros, do PL, pediu uma intervenção militar: “o artigo 142 é a intervenção constitucional para combater o regime de exceção que nós estamos vivendo, e é necessário que o presidente Bolsonaro, com o apoio do povo brasileiro, invoque o artigo 142”, disse, pouco antes de seus assessores cortarem a fala exata para ser compartilhada nas suas redes. O termo “art 142” ultrapassou 42 mil menções e virou um dos assuntos mais comentados no Brasil no dia seguinte.
A deputada Aline Sleutjes, do Pros, então vice-líder do governo, clamou aos militares para “agir rápido” antes da diplomação de Lula: “Tudo que nós vimos nos últimos dias foi o clamor da população dizendo ‘SOS Forças Armadas, nos ouçam! Cuidem de nós! Por favor nos atendam! Nós não queremos perder essa nação verde e amarela’”, disse. “Nós só temos 11 dias, 11 dias senadores, para vocês aqui no Senado fazerem a parte de vocês, para nós lá na Câmara fazermos a nossa parte, e para as Forças Armadas fazerem a parte delas!”.
Essas intervenções se articulam com o que a PF identificou como um dos núcleos de articulação antidemocrática, responsável por “incitar militares a aderirem ao golpe de Estado” – ação essa que foi parcialmente bem-sucedida e conquistou apoio de membros do Alto-Comando.
Tem mais. Segundo uma das mensagens de Mauro Cid citada na decisão de Alexandre de Moraes, dentre as muitas “pressões” sofridas pelo ex-presidente para “tomar uma atitude mais pesada, onde ele vai, obviamente, usando as forças”, havia pressão de “caras do agro” e de “alguns deputados, né?”
Quem são esses deputados? É urgente que se chegue a eles. Afinal, são representantes do povo que usaram de recursos públicos para coordenar uma quebra do regime democrático. Hoje, muitos seguem com seus assentos na tribuna pública e, dali, continuam usando a visibilidade (e a verba) que a democracia lhes deu para fomentar a narrativa golpista (que, lembremos, segue bem viva).
O segundo ponto para o qual eu queria chamar atenção diz respeito ao bom e velho “follow the money”, ou seja, há que buscar de onde veio o dinheiro usado por políticos próximos a Bolsonaro para espalhar mentiras sobre as eleições. De onde tiraram dinheiro muitos dos atores do que a PF chama de “Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral” – e nisso estou incluindo não apenas os alvos da operação, mas toda a rede fortemente articulada de influenciadores bolsonaristas de alto perfil.
Sugiro onde começar: é preciso olhar para o uso das verbas do Fundo Partidário.
Comecemos com Tércio Arnaud, um conhecido integrante do Gabinete do Ódio e um dos alvos da operação da PF. Arnaud foi candidato a suplente de senador pela Paraíba, junto à chapa de Bruno Roberto, do PL, embora nunca tenha sido eleito para nenhum cargo na vida. A chapa não foi vencedora, mas recebeu mais de R$ 1 milhão do Fundo Partidário, 100% pagos pelo diretório nacional do PL. Gastou mais de R$ 550 mil com apenas uma empresa de marketing – configurada como pertencente a um microempreendedor individual.
Em 2022, segundo revelou o Estadão , Arnaud criou grupos de WhatsApp que funcionavam como grupos de ação das chamadas “milícias digitais”, onde dava ordens sobre as narrativas e conteúdos a serem disseminados – possivelmente, esse era seu real “trabalho” durante a campanha fartamente regada com fundos públicos. Ele enviava, junto às mensagens, ordens para compartilhamento em massa, para “rodar nas redes”. Uma delas, a título de exemplo, dizia que o TSE havia se transformado “num clube, onde eles tudo decidem, até quem deva ou não se eleger presidente da República”.
Outros influenciadores bolsonaristas também se candidataram, tiveram mau desempenho eleitoral, mas receberam fundos partidários destinados às suas campanhas – embora mal tenham dedicado energia a se eleger.
Um deles foi o youtuber Fernando Lisboa (PL-SP), do Vlog do Lisboa, que recebeu nada menos que R$ 200 mil do Fundo Partidário do PL e usou parte da verba para impulsionar anúncios que foram quase todos suspensos pelo Google por violarem a política da empresa, que proíbe propagar fake news e ataques à integridade eleitoral. Lisboa tem mais de 852 mil inscritos em seu canal no YouTube e 568 mil seguidores no Facebook, mas obteve pouco mais de 25 mil votos. Não foi eleito.
Outro influenciador que atuou como “nó de rede ” de apoio a Eduardo Bolsonaro, Jouberth Souza (PL-MG) também recebeu dinheiro público e compartilhou informações falsas. Candidato a deputado estadual, só divulgou seu número três vezes durante a campanha no seu Instagram, preferindo dar palanque para Bolsonaro. Recebeu R$ 25 mil, grande parte do diretório nacional. Não se elegeu: teve apenas 696 votos.
Há candidatos de outros partidos que também receberam verba do fundo eleitoral e se engajaram em articular a tentativa de golpe. Renato Gasparim, candidato a deputado estadual pelo Republicanos no Paraná, declarou ter recebido mais de R$ 50 mil do partido e não declarou nenhum real em gastos com a campanha. No entanto, reportagem de Bruno Fonseca revelou que um áudio atribuído a ele circulou dois dias antes do 8 de janeiro, convocando 2 milhões de pessoas para retomarem o país na capital federal, em ônibus doados, alugados e emprestados.
“Vamos pra frente do Congresso, pra frente do STF […] É lá que retomaremos nosso país […] Você, homem, você que quer lutar pelo único restinho que resta do seu país, Brasília é o local”, diz o áudio.
Houve outros casos de candidatos-influenciadores que se engajaram na campanha por um golpe de Estado – e que podem ter sido financiados com verba pública para isso, conforme mostrou um levantamento feito pelos nossos repórteres, que indica uma média de cerca de R$ 23 mil por candidato.
Eu sei que os agentes da PF estão já com muito trabalho nas mãos, mas repito: seguir a pista do uso de recursos públicos será essencial para, além de punir os responsáveis e exigir o ressarcimento ao erário público, criar medidas que impeçam que o seu e o meu dinheiro sejam usados para tentar abolir o Estado Democrático de Direito – uma aberração que, como a cobra que morde o próprio rabo, se vale da política para acelerar o seu fim.
Fonte
O post “Ei, psiu, Moraes, falta olhar isso aqui” foi publicado em 20/02/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública