Novamente sem qualquer salvaguarda ambiental definida, a exemplos dos recentes acordos com China e Estados Unidos , o Brasil abriu suas reservas de minerais críticos para outros dois “jogadores caros”, usando o jargão futebolístico, no complexo jogo do mercado internacional da transição energética.
Com aval do Ministério de Minas e Energia (MME) e assim como os craques do futebol mundial que foram parar nos campeonatos árabes, parte da estratégia que usa o esporte para melhorar a imagem de ditaduras conhecidas por suas violações de direitos humanos, o Brasil foi atraído pelos bilhões da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes.
Depois do tour de começo do ano das autoridades brasileiras na região, são esperados R$ 23 bilhões em investimentos em mapeamento geológico e em projetos de minerais estratégicos para a transição energética, o que levanta questões sobre a soberania nacional e impactos socioambientais, como analisado por especialistas. Esse dinheiro simboliza um novo capítulo da relação do Brasil com os dois países do Oriente Médio.
A mineradora Ma’aden, controlada pelo governo saudita, vai abrir um escritório em São Paulo e prevê investir R$ 8 bilhões “para o trabalho de mapeamento geológico, pesquisa e aproveitamento mineral” no Brasil. Não está claro, porém, como isso acontecerá na prática, se haverá parceria com o Serviço Geológico do Brasil, responsável pelo mapeamento, e como isso será feito sem ferir a soberania nacional.
“Nós sabemos que carecemos muito de conhecer melhor o nosso subsolo para pesquisa e para parcerias com o setor mineral brasileiro, a fim de que possamos fazer o aproveitamento sustentável e adequado do subsolo brasileiro, porque não há transição (energética) sem mineração”, afirmou o ministro do MME, Alexandre Silveira, em coletiva de imprensa após a abertura do fórum Future Minerals na Arábia Saudita, evento que reuniu alguns dos principais executivos do setor e políticos do mundo todo , com enorme delegação brasileira.
Outro anúncio vago, como é praxe, foi o memorando de entendimento assinado entre o Brasil e o Ministério do Investimento dos Emirados Árabes Unidos , que teria o objetivo de promover a exploração e o desenvolvimento de minerais estratégicos.
“A parceria representa um marco na cooperação entre os dois países e prevê investimentos que podem alcançar R$ 15 bilhões em diversas áreas, como pesquisa mineral, processamento, comercialização, transferência de tecnologia e capacitação de mão de obra”, afirmou Silveira.
O MME não respondeu, até o fechamento desta matéria, os questionamentos sobre os temas enviados pelo Observatório da Mineração na última quarta-feira (22). O espaço continua aberto para os esclarecimentos da pasta.
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Soberania mineral, meio ambiente e comunidades tradicionais podem estar ameaçadas, afirmam especialistas
Para Fernando Brancoli, professor adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o investimento saudita em mapeamento geológico no Brasil suscita uma questão central: a gestão e o controle estratégico dos dados gerados.
“O mapeamento geológico é, por definição, um instrumento de poder, pois permite identificar e quantificar os recursos naturais de um território. Caso o acesso e o uso dessas informações não sejam rigorosamente regulamentados, existe o risco de que empresas estrangeiras ou governos utilizem esses dados em benefício próprio, reduzindo a autonomia do Brasil sobre suas riquezas”, alerta.
Além disso, segundo a visão do professor da UFRJ, é essencial considerar como esses investimentos impactarão diretamente as populações brasileiras mais vulneráveis, especialmente aquelas que habitam áreas ricas em minerais críticos, como comunidades indígenas, quilombolas e assentados rurais.
“Historicamente, o avanço da exploração mineral no Brasil tem agravado conflitos territoriais, causado deslocamentos forçados e gerado danos ambientais irreversíveis. Sem salvaguardas sólidas, existe o perigo de que os benefícios econômicos fiquem concentrados em grandes corporações ou governos estrangeiros, enquanto as populações locais arcam com os custos sociais e ambientais”, diz.
Para Brancoli, o argumento de soberania, “precisa ser traduzido em mecanismos concretos de regulação e proteção que garantam tanto o controle estratégico dos recursos quanto a segurança e o bem-estar das populações mais afetadas”. A soberania é frequentemente utilizada pelos militares e pela indústria mineral quando convém, como no caso do recurso ao STF para impedir que as responsabilidades por desastres no Brasil sejam julgados no exterior .
Na visão de Karina Calandrin, professora de relações internacionais da Uniso e Ibmec-SP, o anúncio de investimentos sauditas representa um marco significativo na relação entre os dois países, mas levanta questões importantes no âmbito geopolítico.
“A Arábia Saudita, por meio de sua estratégia de diversificação econômica Visão 2030, busca reduzir a dependência do petróleo e investir em recursos minerais estratégicos, como lítio, níquel e terras raras, essenciais para a transição energética e o avanço tecnológico. O Brasil, por sua vez, com um dos maiores potenciais minerais do mundo, se torna um parceiro atrativo para esses investimentos”, argumenta.
Mas, segundo Calandrin, há implicações importantes a serem discutidas. “Do ponto de vista da soberania, a entrada de capital estrangeiro em um setor tão estratégico pode trazer riscos ao controle nacional sobre cadeias produtivas essenciais. Historicamente, o Brasil tem enfrentado desafios para garantir que os benefícios da exploração de seus recursos naturais sejam distribuídos de forma equitativa, especialmente quando investidores externos entram no cenário. Isso levanta dúvidas sobre a definição de contrapartidas, como transferência de tecnologia, geração de empregos qualificados e fortalecimento da indústria nacional, evitando que o país se limite ao papel de fornecedor de matéria-prima”, avalia.
Para a professora do Ibmec-SP, outro ponto relevante é o impacto ambiental e social, já que a pesquisa mineral frequentemente antecede projetos de exploração em larga escala. “No Brasil, regiões sensíveis, como a Amazônia e o Cerrado, concentram grande parte das reservas minerais, o que pode aumentar a pressão sobre ecossistemas já fragilizados. Além disso, questões relacionadas à consulta e aos direitos de comunidades indígenas e tradicionais podem se intensificar, considerando que, em muitos casos, investimentos estrangeiros em mineração são acompanhados por disputas sociais e críticas sobre governança”, diz.
Para Mateus Santos, doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA), os sauditas estão em uma “travessia social, política, econômica e cultural” e as relações com o Brasil deverão ser potencializadas diante das crescentes demandas de seu projeto de desenvolvimento. “Nesse mesmo sentido, seguindo caminho semelhante ao vizinho Emirados Árabes, os sauditas tendem a assumir maior protagonismo nos debates sobre transição energética”, diz.
Santos reconhece que iniciativas estrangeiras dessa natureza não ocorrem de forma desinteressada, mas caberá ao Brasil buscar “certo equilíbrio entre a potencialização dos recursos financeiros sauditas, o interesse do país árabe em ampliar seu acesso a minerais estratégicos e uma política que contribua diretamente para o fortalecimento do setor minerador brasileiro”.
“Evidente que não se trata de uma combinação das mais fáceis, mas a garantia de colaboração externa pode ser um aspecto importante como um fator de transferência de recursos financeiros e tecnológicos, contando, evidentemente, com a primazia da participação brasileira no processo”, acredita.
Ditaduras ampliam força no mercado de minerais críticos, incluindo o lítio de Minas Gerais
A Arábia Saudita, em especial, tem ampliado significativamente sua influência na mineração brasileira e mundial. Em agosto de 2023, a Manara Minerals, outra mineradora também controlada pelo governo local, comprou 10% da Vale Metais Básicos (VBM, na sigla em inglês) por US$ 3,4 bilhões . A VBM é a subsidiária da Vale criada para operar os seus negócios em minerais importantes para a transição energética, como o cobre e o níquel.
Investimentos não detalhados ou protegidos por acordos entre empresas e investidores sauditas e seus fundos bilionários estão acontecendo, a exemplo da extração de lítio. Ana Cabral, CEO da Sigma Lithium , informou em entrevista ao jornal Valor Econômico que recebeu aporte, sem discriminar valores, da Acwa Power, empresa de investimentos e energia da família que controla a Arábia Saudita.
A relação da Sigma com os árabes vem de longa data e inclui evento realizado no Rio de Janeiro ano passado, no contexto do G20 , com a presença de autoridades políticas do alto escalão do Brasil e da Arábia Saudita e o fato de que envia parte de sua produção para os Emirados Árabes.
Como já mostrou o Observatório da Mineração, apesar da propaganda extensiva sobre a “sustentabilidade” das suas operações em Minas Gerais, a produção de lítio da Sigma tem afetado o meio ambiente, indígenas e quilombolas no Vale do Jequitinhonha , além de aumentar o custo de vida e piorar serviços públicos para a população local .
Mostramos com exclusividade em outubro que o governo brasileiro entrou como forte investidor da empresa canadense: o BNDES emprestou R$ 487 milhões para a expansão da Sigma Lithium, algo que só foi possível por alterações significativas feitas no Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, mais conhecido como Fundo Clima .
Fonte
O post “Ditaduras árabes investirão R$ 23 bilhões em mapeamento geológico e minerais críticos no Brasil” foi publicado em 27/01/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração