Matheus Affonso é um fotógrafo e designer gráfico de 20 anos que mora no bairro de Nova Holanda, parte do complexo de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Ele retrata a comunidade LGBT do entorno onde vive. Jacqueline Fernandes é uma jornalista de 33 anos que vive no bairro Riachuelo, também localizado em uma região periférica da cidade. Ela mantém um portal de comunicação comunitária. Os dois são jovens fotógrafos que registram, com um novo olhar, o dia a dia das comunidades cariocas.
“Eu me considero um fotógrafo LGBT, porque ser LGBT é determinante para quem eu sou e para o que eu quero pautar”, relata Matheus, que afirma ser importante retratar uma população frequentemente invisibilizada dentro da própria favela — lésbicas, gays, bissexuais e transexuais.
Símbolo máximo das desigualdades brasileiras, as favelas são mais comumente retratadas como territórios de violência, apesar de também serem solo fértil para projetos, redes e espaços que promovem os direitos humanos por meio de atividades culturais, ativismo e participação.
Tanto Matheus como Jacqueline têm projetos próprios nesse sentido, como é o caso do Projeto Eeer , de Matheus, um perfil no Instagram com fotografias e ativismo LGBTQI+ de favela. Jacqueline edita o portal Hordas , um site de comunicação comunitária com reportagens sobre cultura, moda, diversidade, esportes, entre outros temas.
Para Jacqueline, tais iniciativas ajudam a criar uma memória da favela e das regiões periféricas diferente daquela retratada pela grande mídia. “Se você não tem memória, você não existe, se você não existe, não é respeitado nem reconhecido como ser humano.”
“É muito difícil encontrar uma pessoa que não goste de fotografia. A fotografia é uma arte que atinge um número grande de pessoas. Às vezes, as pessoas não querem ler textos. Mas a foto está lá, não tem como ignorar”, afirma Jacqueline, que também dá aulas a fotógrafos iniciantes.
Matheus e Jacqueline participaram em novembro das oficinas de fotografia do projeto Imagens do Povo , uma iniciativa da organização não governamental Observatório de Favelas que alia a técnica fotográfica à promoção de direitos e à democratização da comunicação, criando novas representações de territórios populares e desconstruindo estigmas.
Além do designer e da jornalista, a oficina teve a participação dos fotógrafos Thais Povoleri, Rodrigo Patrício Carvalho, Hector Santos, ONTEM (*), Dipreta (*), Carolina Olgador e Antonio Dourado, que retrataram cenas periféricas ligadas a temas como educação, saúde mental, direitos das pessoas LGBTI, igualdade de gênero, erradicação da pobreza, entre outros.
As obras produzidas durante a oficina tiveram como foco os direitos humanos e o empenho global para alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), compromisso assumido pelos 193 países-membros da ONU, entre eles o Brasil, para erradicar a fome, reduzir as desigualdades e combater as mudanças climáticas, entre outros.
As fotografias foram expostas na mostra “Se Essa Rua Fosse Nossa – Nossa voz, nossos direitos, nosso futuro “, durante o Dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, no Museu do Amanhã, região central do Rio de Janeiro.
A exposição fez parte de Fórum sobre Educação Não-Formal realizado por Organização Mundial do Movimento Escoteiro, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e Escritório do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Juventude.
Durante o evento, a enviada do secretário-geral da ONU para a juventude, Jayathma Wickramanayake, visitou a mostra e se reuniu com os jovens fotógrafos das comunidades cariocas.
“Fiquei impressionada ao ver como os e as fotógrafas conectaram as questões de direitos humanos com os ODS. E acredito (que a fotografia) seja uma forma muito poderosa de dizer que a agenda de desenvolvimento sustentável não é uma agenda só de desenvolvimento, mas também de direitos humanos”, disse a enviada especial da ONU.
A mostra é fruto de colaboração entre o Centro de Informação das Nações Unidas (UNIC Rio) e o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em parceria com o Observatório de Favelas.
Roda de conversa
O Dia dos Direitos Humanos também foi marcado por uma roda de conversas com os fotógrafos da oficina, mediada pela diretora do UNIC Rio, Kimberly Mann. Na ocasião, os jovens falaram sobre a conexão entre suas obras, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os ODS.
O consenso entre os participantes foi de que os territórios periféricos e de favela são marcados por graves violações de direitos humanos, muitas vezes cometidas pelo próprio Estado. “Conseguimos retratar isso ao longo da oficina. (…) Pensar quais são os direitos humanos a serem defendidos na favela”, diz Aruan Braga, diretor do Observatório de Favelas.
Um segundo consenso, no entanto, delineou-se ao longo da roda de conversa — o de que a favela e os territórios periféricos são, também, locais potentes para a transformação social.
“Vivemos em meio a uma necropolítica, pessoas vão apanhar, ser torturadas e mortas no espaço de favela. (…) Nossa questão é como interferir onde só a força está atuando. É aí que entra a comunicação e a arte. Quando as ideias se tornam perigosas”, diz Davi Marcos, de 40 anos, fotógrafo da agência Imagens do Povo.
Para Saulo Nicolai, de 26 anos, membro do projeto Favelagrafia , que retrata talentos das favelas cariocas ligados a música, dança, artes plásticas, é por meio da divulgação do trabalho criativo desses territórios que a luta por mudança pode ser travada. Tal disseminação pode ocorrer por meio das redes sociais — tanto virtuais como territoriais, afirma.
Diane Carvalho, de 31 anos, lembrou a importância de cuidar da saúde mental das pessoas que vivem em territórios marcados por conflitos e violência. Ela é coordenadora do projeto Maktub Experience , que promove a troca de experiências entre pessoas que desenvolveram transtornos psicológicos em um cenário de violação de direitos e desigualdade.
“Não falamos muito de saúde mental nas favelas. Falta diálogo, atenção e empatia”, diz. “Estamos perdendo jovens, mas também há aqueles que estão lutando para sobreviver.”
Para a assistente de direitos humanos da ONU Brasil, Maria Eduarda Dantas, aos 71 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é mais importante do que nunca. “A Declaração é trabalho concreto que lida com problemas reais e é fruto de lutas travadas o tempo inteiro”, conclui.
*nomes artísticos
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