Não é segredo que, no Brasil, militares se enxergam como pessoas apartadas dos “paisanos” – os civis – e por vezes agem para proteger a “família militar ” de críticas externas, mantendo disputas entre eles contidas nos quartéis. Nos interrogatórios do Núcleo 1 da trama golpista na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), porém, apareceram rachaduras nesta ‘blindagem’ ao longo das falas dos militares réus no caso, todos ex-membros da cúpula do Exército e da Marinha.
Acompanhados pela Agência Pública ao vivo no STF, os depoimentos mostraram à sociedade uma troca de farpas entre militares de alta patente, com comentários ácidos e tentativas de descrédito entre eles. Nas rodas de conversa no plenário da 1ª Turma, circulava a tese de que as defesas de parte dos réus tentavam passar a responsabilidade pela trama ao ex-presidente – e ex-capitão do Exército – Jair Bolsonaro (PL) e ao general da reserva Walter Braga Netto (PL), vice na chapa derrotada em 2022.

O tenente-coronel Mauro Cid e o general Walter Braga Netto protagonizaram o principal embate graças ao encontro dos “kids pretos” Hélio Ferreira Lima e Rafael Martins de Oliveira com o general em sua casa em Brasília (DF) no dia 12 de novembro de 2022, mediado por Cid. As investigações sugerem que naquela data teve início a operação “Copa 2022”, com o objetivo de sequestrar e “neutralizar” autoridades da República, incluindo o ministro do STF Alexandre de Moraes.
De um lado, Cid sustentou sua delação, na qual afirmou que planos mais “radicais” para reverter o resultado eleitoral tiveram início após o fatídico encontro de Braga Netto com os “kids pretos”. Ainda segundo Mauro Cid, dias antes do encontro os dois militares haviam sugerido “causar o caos” para impedir a posse do presidente Lula (PT), como relatado pela Pública . “A ‘toada’ das conversas [com militares] era assim, de pressionar os comandantes para tomarem alguma posição”, afirmou o militar durante seu interrogatório na última segunda (9).
Do outro lado, o general refutou a acusação, dizendo ao ministro Moraes que “o [tenente-]coronel Cid faltou com a verdade”. “Eles saíram juntos com o [tenente-]coronel Cid da minha casa. [Os “kids pretos” Hélio Ferreira Lima e Rafael Martins de Oliveira] estavam tristes que perdemos a eleição, mas eles não tinham intimidade para entrar em assuntos delicados comigo, não tocaram em assunto nenhum de operação”, disse o general Braga Netto .

De acordo com o tenente-coronel Cid, a reunião entre o general e seus dois amigos “kids pretos” teve desdobramentos logo em sequência, com o fornecimento de recursos financeiros a serem usados na operação clandestina.
“Dois dias depois do encontro, fui procurar o general Braga Netto e ele me orientou a procurar alguém do partido [PL]. Conversei com o tesoureiro [do PL], que falou que não tinha como apoiar ‘aquilo’. Não me recordo do espaço temporal, mas o general Braga Netto depois trouxe uma quantia, que foi passada ao [“kid preto” Rafael Martins] de Oliveira. Recebi o dinheiro no Palácio da Alvorada numa caixa de vinho, no mesmo dia eu passei para o major de Oliveira”, acusou Cid.
“Isso não corresponde à realidade. Eu não tinha contato com empresários, então, não pedi dinheiro e não entreguei dinheiro para ninguém”, refutou Braga Netto.
Pouco antes, ao responder perguntas do ministro Moraes sobre o tema, ele confundiu a patente de Mauro Cid, chamando-o de “general” – posto que o pai do tenente-coronel, também chamado Mauro Cid, alcançou enquanto estava na ativa. Indagado pelo ministro após o equívoco, o ex-vice na chapa de Bolsonaro deu uma alfinetada no delator, dizendo: “não, não, o coronel Cid… o general Cid é meu amigo”.
Se o tenente-coronel Cid ‘centrou fogo’ no general Braga Netto, ele também amenizou o papel de outros militares envolvidos na trama – como no caso de seus amigos “kids pretos” acusados de redigirem uma carta para pressionar o Comando do Exército a aderir ao golpe, e em relação ao general da reserva e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno que, segundo Cid, estava “distante” de Jair Bolsonaro à época da trama golpista.

“Não havia tempo para isso”, diz general Heleno sobre infiltração de agentes nas eleições
Então ministro ao qual a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estava subordinada, o general Augusto Heleno foi o único dos réus que exerceu seu direito de permanecer em silêncio perante todas as defesas, ministros e o procurador-geral da República. O ex-ministro do GSI respondeu somente a perguntas de sua própria defesa e, ainda assim, protagonizou momentos comprometedores .

Segundo as investigações, o general Heleno teria anotações com diretrizes e planos antidemocráticos muito similares aos encontrados com o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, também réu no caso.
Além disso, paira a dúvida de uma possível operação clandestina da inteligência do governo Bolsonaro nas eleições de 2022, graças a uma fala do general Heleno durante a reunião ministerial de 5 de julho daquele ano, uma das evidências usadas pela Polícia Federal no caso. O caso é investigado pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União, que não punirá o general, como revelado pela Pública .
Sobre o papel da inteligência nas eleições de 2022, que teria sido abordado pelo general com o então diretor-adjunto da Abin, Victor Felismino Carneiro, o ex-ministro do GSI negou infiltração de agentes nas campanhas eleitorais por falta de “tempo”, entre outros motivos.
“Eu deixei bem claro para o Victor [Carneiro] que, conforme manda a Constituição, não podemos infiltrar elementos da Abin nessas atividades. Normalmente, os que já estavam, não havia intenção de ‘mascarar’ esse procedimento, não seria possível infiltrar. O prazo para infiltração é muito grande, não havia tempo para isso”, afirmou Heleno.
Já em relação às suas anotações com teor antidemocrático, o general afirma não ter mostrado o material a ninguém. Ele também disse que “tinha de aceitar” o resultado das eleições, mas, ainda assim, reforçou posições ambíguas que já tinham vindo à tona – afirmando que o governo Bolsonaro tinha de “agir antes que houvesse problemas”.

O general ainda fez declarações inusitadas em relação a outros temas, como a suspeita de participação de órgãos de inteligência na elaboração de relatórios sobre fraudes no sistema eleitoral. Perguntado sobre o tema pelo ministro Moraes, ele disse que “não havia clima” para essa produção. Augusto Heleno ainda disse que “o clima na Abin era muito bom”, ignorando diversos escândalos e suspeitas de aparelhamento do órgão no governo Bolsonaro.
General ‘linha-dura’ disse que 8 de Janeiro foi “manifestação pacífica que acabou em baderna”

Em seu interrogatório , o general da reserva do Exército Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa durante toda a escalada golpista, tentou se afastar de qualquer ligação com planos de golpe, alegando que suas declarações à época foram “mal colocadas”, resultado do que ele chamou de “linguagem comum” entre militares.
Mas o general e ex-ministro da Defesa confirmou que, à época da crise, o governo Bolsonaro estudou a possibilidade de edição de um um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que permite às Forças Armadas atuarem com poder de polícia, após as eleições. Para o general, a edição de um decreto de GLO poderia ser “legítima”.
Perguntado pelo ministro Luiz Fux sobre o ataque bolsonarista no fatídico 8 de Janeiro, o general Paulo Sérgio disse que não enxerga o evento como uma tentativa de golpe. Para ele, tudo não passou de “uma manifestação pacífica que acabou em baderna”.

O general é uma peça-chave na trama, ao menos de acordo com as investigações. Nogueira teria participado de reuniões do ex-presidente Bolsonaro com comandantes das Forças Armadas, justamente para discutir o chamado “decreto do golpe”.
Mas, como outros réus, o ex-ministro da Defesa minimizou o fato – chamando o documento de “considerandos” sobre ações e eventos que o ex-presidente considerava “injustos” ao longo do mandato. Após uma reunião em 7 de dezembro de 2022 com Jair Bolsonaro e os então comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Marinha, almirante Almir Garnier, todos exceto o ex-presidente teriam saído “preocupadíssimos” do encontro, segundo Nogueira.
A postura do general Paulo Sérgio no interrogatório chamou a atenção pelo tom autoritário, com broncas e alfinetadas direcionadas à sua banca de defesa. Após os puxões de orelha em seu advogado , nenhuma das outras defesas lhe fez perguntas – e até mesmo o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se absteve de questionar o general. A situação rendeu burburinhos e risos no plenário como um todo.

Minuta golpista? “Vi uma apresentação na tela do computador”, diz ex-comandante da Marinha
Segundo as investigações, o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, teria sido o único dos três comandantes militares a embarcar na empreitada golpista. A suspeita se baseia em depoimentos dos outros dois ex-comandantes, o general Marco Antônio Freire Gomes e o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, que participaram com Garnier de uma reunião com Jair Bolsonaro no Palácio do Alvorada em 7 de dezembro de 2022.
Em seu interrogatório no STF , o ex-comandante da Marinha falou com desenvoltura e confiança no sentido contrário, negando ter acesso à chamada “minuta golpista” naquela reunião. “Eu não vi minuta, ministro. Eu vi uma apresentação na tela de um computador. Havia um telão onde algumas informações eram apresentadas na tela. Eu não recebi. Quando o senhor fala minuta, eu penso em papel, em um documento que lhe é entregue. Eu não recebi esse tipo de documento”, disse Garnier.

O almirante da reserva ainda criticou, abertamente, a postura do ex-comandante da Aeronáutica Baptista Junior, que teria se oposto a qualquer tipo de intervenção e comunicado sua decisão ao ex-ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira.
“Um comandante não diz ao ministro da Defesa palavras dessa natureza, como eu lhe falei, até que alguma ordem seja dada e essa ordem seja flagrantemente ilegal”, disse Garnier, que ainda complementou ao ministro Moraes: “acho até que isso não se coaduna com a atitude de um comandante de força, se o senhor me permite”.
Ao mesmo tempo, o ex-comandante da Marinha disse que, à época da crise dos acampamentos, achava que a decretação de uma GLO era um “instrumento adequado dentro de certos parâmetros”. Segundo Garnier, havia uma “preocupação que o presidente tinha – e também era nossa – das inúmeras pessoas que estavam, digamos assim, insatisfeitas e se posicionavam no Brasil todo, normalmente em frente aos quartéis do Exército”.
“Aquilo poderia trazer alguma dificuldade para a segurança pública, não se sabia muito bem para onde ia aquele movimento e, dentre os assuntos tratados [na reunião de 7 de dezembro], esse eu acho que esse ocupou uma boa parte do tempo”, afirmou ainda o ex-comandante da Marinha.
Fonte
O post “Diário do julgamento do golpe – Ato 7: acusações trincam retrato da “família militar”” foi publicado em 11/06/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública