Após longas rodadas de conversa e negociação que não resultaram em ação concreta por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), incluindo um pedido feito em abril deste ano , a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com uma Ação Civil Pública (ACP) para que o INCRA revogue a Instrução Normativa 112/2021, que permite mineração dentro de assentamentos rurais.
A ACP solicita um pedido de tutela provisória de urgência contra o INCRA e a União, representada pela Advocacia-Geral da União (AGU), para que acabe com o aval para projetos de mineração, energia e infraestrutura dentro de assentamentos rurais sem observar garantias legais, especialmente o direito de consulta livre, prévia e informada garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada e ratificada em decreto legislativo pelo Brasil.
Como o Observatório da Mineração mostrou, em levantamento exclusivo, são mais de 3 mil processos minerários correndo na Agência Nacional de Mineração (ANM) que afetam mais de 1400 assentamentos da reforma agrária no Brasil , sobretudo na Amazônia e no Nordeste. O levantamento considera apenas alguns minerais críticos e estratégicos selecionados. Se a conta incluir todo tipo de mineral, o número sobe para mais de 17 mil requerimentos.
Em matérias sequentes, mostramos a situação de assentamentos na Bahia e na Paraíba que sofrem com o assédio de mineradoras e destacamos o estado do Pará, que vive historicamente uma série de conflitos fundiários agravados pela mineração , quadro que a a norma do INCRA tem ajudado a piorar.
É justamente o Pará o estado escolhido pela DPU para concentrar a resposta da justiça à ACP em função do histórico local, embora trate-se de demanda que afeta a toda a federação. Foi no Pará que o INCRA firmou um acordo com a mineradora Belo Sun, que tenta aprovar há anos um projeto de ouro que afeta diretamente assentados da reforma agrária e povos indígenas, situação que abriu caminho para a IN 112/2021, instaurada no governo de Jair Bolsonaro.
O acordo do INCRA com a Belo Sun também é questionado na justiça pela DPU e pela Defensoria Pública Estadual do Pará. Lideranças locais denunciam perseguição, ameaças e assédio judicial da Belo Sun , que alega que tem o “dever, compromisso e regra de governança seguir e observar a legislação vigente e que vai cumprir todas as decisões judiciais”.
Mineração em assentamentos ataca a reforma agrária e cláusula pétrea da Constituição
Na ACP, a DPU destaca a função social da propriedade rural, garantida pela Constituição Federal em cláusula pétrea, que visa a justiça social, a sustentabilidade ambiental e a superação de desigualdades históricos no acesso à terra, reforçada por diversos outros instrumentos como o Estatuto da Terra e leis complementares.
Na avaliação da DPU, a política nacional de reforma agrária, que tem o objetivo de enfrentar o quadro de concentração fundiária extrema observado no Brasil, redistribuindo a terra, valorizando a agricultura familiar, a inclusão produtiva de populações vulneráveis, a segurança alimentar e o desenvolvimento rural sustentável, como previsto na Constituição, acaba sendo atacada e comprometida pelo avanço da mineração em assentamentos.
De acordo com o censo do IBGE de 2017, apenas 1% dos estabelecimentos agropecuários concentram quase 47% da área total, enquanto os estabelecimentos com menos de 10 hectares, que representam cerca de 50% do total das propriedades do país, detêm menos de 3% das terras. O mesmo levantamento mostra que os estabelecimentos classificados como de agricultura familiar – responsáveis por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país – ocupam apenas 23% da área agrícola nacional.
Ao mesmo tempo, os conflitos fundiários cresceram de modo expressivo, com 2.203 conflitos no campo no Brasil registrados em 2023, o maior número já apurado pela Comissão Pastoral da Terra desde o início da série histórica, em 1985. Há ainda o aspecto do racismo fundiário: pessoas negras e pardas representam 52% da população rural brasileira, mas são titulares de apenas 20% das terras cultivadas; por outro lado, pessoas brancas – minoria no campo – concentram 80% das áreas agrícolas
Esse cenário, lembra a DPU, é agravado pela lentidão e fragilidade das políticas públicas voltadas à regularização fundiária e à reforma agrária. “A função social da propriedade e a reforma agrária permanecem como comandos constitucionais frequentemente inoperantes, devido à ausência de políticas públicas estruturadas, à captura institucional por interesses privados e à omissão do Estado em assegurar salvaguardas mínimas às populações mais vulnerabilizadas”, afirma a defensora Carolina Castelliano de Castro na ACP.
Omissões, ausência de diretrizes e quadro institucional grave da ANM e INCRA
A ação destaca que a resposta anterior de órgãos como o INCRA e a ANM revelam um “um quadro institucional grave, caracterizado por omissões reiteradas, ausência de diretrizes técnicas mínimas e completa desconsideração dos parâmetros estabelecidos pela Convenção nº 169 da OIT, especialmente no que se refere ao dever de consulta prévia, livre e informada às comunidades potencialmente afetadas”.
Dentre as principais falhas encontradas nas respostas de ambos os órgãos, a DPU destaca a inexistência de protocolo institucional de participação social ou de consulta, ressaltando a situação crítica também no Mato Grosso, com diversos assentamentos afetados pelo interesse minerário e o fato de que muitas consultas são promovidas pelas próprias empresas interessadas, sem participação estatal, controle ou supervisão do poder público, com irregularidades graves no Rio Grande do Norte, incluindo captura institucional feita pelo lobby de empresários e políticos.
A Defensoria explica detalhadamente que não há dúvidas de que assentados da reforma agrária estão incluídos no rol de povos e comunidades tradicionais abrangidos pela Convenção 169 da OIT que exige consulta prévia.
“A diversidade de formas de existência, de vínculos identitários e de territorialização presentes no interior dos projetos de assentamento da reforma agrária, sejam eles ambientalmente diferenciados ou não, devem ser reconhecidos como elementos de expressão da pluralidade de povos tradicionais existentes no país. As formas de apropriação do território pelos residentes de projetos de assentamentos são frequentemente marcadas pelo uso comum da terra, práticas coletivas de produção, laços de parentesco e sistemas culturais próprios, o que os qualifica como sujeitos da Convenção”, afirma.
Sobre os impactos gerais causados por empreendimentos minerários, a DPU destaca que, além de casos graves de ameaças e perseguição, há severa deterioração das condições de vida e de subsistência da população assentada, afetando a capacidade produtiva, a organização socioeconômica comunitária e a própria permanência das famílias no território.
Nesse sentido, a ACP elenca diversas falhas e irregularidades graves permitidas pela IN 117/2021 do INCRA, cujos “procedimentos de anuência têm ignorado o arcabouço jurídico nacional e internacional, promovendo uma política fundiária que favorece empreendimentos privados em detrimento das garantias territoriais das comunidades assentadas. A ausência de participação e consulta transforma o procedimento de anuência em um ato administrativo ilegítimo, carente de legalidade e incompatível com os compromissos convencionais assumidos pelo Brasil”.
DPU solicita urgência diante do risco de lesão irreparável aos assentados
A DPU justifica o pedido de urgência em virtude do “risco concreto, atual e grave de lesão irreparável ou de difícil reparação a inúmeras comunidades residentes em projetos de assentamento da reforma agrária no país”, destaca riscos adicionais como o representado pelo PL 2159/2021, aprovado no Senado, que incluiu a mineração no arcabouço de empreendimentos da nova lei geral de licenciamento ambiental, com potencial para destruir de vez a importância do licenciamento no Brasil, transformado em mera formalidade e, em muitos casos, procedimento autodeclaratório para empresas diversas.
“Se aprovado, o PL acarretará consequências desastrosas para os territórios da reforma agrária, ao comprometer a qualidade da água, do solo e da biodiversidade, afetando diretamente a produção agrícola familiar, a saúde pública, a segurança alimentar e a permanência das comunidades no campo”, afirma a ACP.
A ação civil pública pede:
- Tutela provisória de urgência para que o INCRA se abstenha de conceder novas autorizações, anuências ou manifestações favoráveis do uso de áreas de projetos de assentamento da reforma agrária para fins de atividades e/ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura sem a observância do direito à efetiva participação social e sem a realização de consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
- O julgamento procedente na integralidade da ação, confirmando a tutela antecipada, obrigando o INCRA a adotar, em todos os procedimentos administrativos relativos à anuência do uso de áreas em projetos de assentamento da reforma agrária por atividades e/ou empreendimentos econômicos (notadamente minerários, de energia e de infraestrutura), o direito à efetiva participação social e à realização de consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
- Revisão, pelo INCRA, de todos os atos administrativos para anuência do uso de áreas de projetos de assentamento da reforma agrária para fins de atividades e/ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura, nos quais não tenha sido comprovada a observância do direito à efetiva participação social e à consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
- Condenação da UNIÃO e do INCRA à obrigação de adotar medidas de caráter estrutural, com cronograma público de implementação, destinadas a assegurar o direito à efetiva participação social e à consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
O Observatório da Mineração procurou o INCRA, a AGU e a ANM para que se manifestassem sobre a ACP da DPU, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria. Caso o façam, o texto será atualizado.
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O post “Defensoria Pública da União entra com ACP contra norma do INCRA que permite mineração em assentamentos rurais” foi publicado em 18/06/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração