“Precisamos de universidades indígenas, não para os indígenas estudarem a nossa biologia, mas para nós estudarmos a cosmovisão científica da biologia indígena”. Essa afirmação do cineasta Luiz Bolognesi resume com exatidão onde o seu novo filme, A Última Floresta (2021), quer chegar. Com uma fotografia exuberante, o filme retrata a vida e o dia a dia dos Yanomami e mergulha com profundidade nos mitos de criação, o sonho como a extensão da realidade e as difíceis relações que o contato com o homem branco impõe. Isso só foi possível graças à participação decisiva de Davi Kopenawa, xamã do povo Yanomami e que foi convidado por Luiz para criar o roteiro. “Eu chamei o Davi Kopenawa não apenas para ser o protagonista desse filme, mas para ser o roteirista também. Então o documentário tem um ponto de vista muito indígena, um olhar muito mágico para a realidade”, afirma. A Última Floresta é um filme sobre outros modos de vida possíveis, diferentes (e por vezes antagonistas) ao que a colonização europeia impôs ao Brasil e seus habitantes originários que aqui estavam no século XVI.
Em sua filmografia, Bolognesi busca colocar as questões indígenas como protagonistas. Muito disso é fruto da sua formação como antropólogo e de uma vivência íntima com os indígenas Pataxós, no sul da Bahia. Em seu filme anterior, Ex-Pajé (2018), acompanhou a história de um Pajé da etnia paiter suruí que, após a entrada de uma igreja evangélica em sua comunidade, abandona suas práticas de pajelança por ser considerada “coisa do diabo” pelo pastor. “O que a gente filmou no Ex-pajé não está acontecendo só entre os paiter suruí, é geral, está acontecendo no Brasil inteiro dentro de um movimento de intolerância religiosa”, afirma Luiz, que também dirigiu a animação Uma História de Amor e Fúria (2013).
A Última Floresta é um filme atual e urgente. Embora não se debruce especificamente no garimpo ilegal e na invasão das terras indígenas que já ocorrem há décadas no território Yanomami, os últimos dois anos e os recente episódios de ataques diretos dos garimpeiros contra os indígenas (tanto Yanomamis quanto Mundurukus) dão uma dimensão da ameaça contínua que sofrem esses povos. Conforme o próprio Luiz afirma em entrevista ao ((o))eco: “riqueza para os Yanomami é a fertilidade do rio, para nós a riqueza é meio quilo de ouro e um rio inteiro destruído por metal pesado. Uma floresta inteira derrubada então é um conceito de riqueza mórbido, que leva à morte, por isso a gente está enfrentando como consequência essa pandemia que está nos mergulhando na morte”.
Único filme brasileiro exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim, A Última Floresta também foi selecionado para os festivais É Tudo Verdade, Hot Docs e Visions du Réel. No Brasil, o filme tem sessões marcadas para os próximos dias no Festival Pachamama , Imagem dos Povos e no especial Semana do Meio Ambiente da Mostra Ecofalante .
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((o))eco: Luiz, gostaria que começasse contando um pouco da sua história como cinegrafista, como diretor, e como é que as pautas ambientais e indígenas entraram na sua vida.
Luiz Bolognesi: Na verdade eu não estudei cinema, eu estudei jornalismo na PUC e ciências sociais na USP, sendo que na USP eu começo minha relação com a questão indígena porque eu estudei, forcei todas as minhas optativas e puxei pra antropologia e aí começa realmente minha relação profunda com a questão indígena, onde eu estudava principalmente mitologia. Mais do que etnografia, eu tinha um interesse muito grande por estudo dos mitos. Antes mesmo de eu começar a trabalhar com cinema, eu tive uma experiência muito importante com as questões indígenas que aí não foi intelectual, foi afetiva: eu fui professor de uma turma de alunos pataxós no sul da Bahia, então nesse período de 1 ano e meio eu convivi muito forte com uma comunidade indígena que eram os Pataxós . Se eu já tinha um encantamento intelectual, nessa experiência mais concreta surgiu também um encantamento e uma admiração mais afetiva, de ver a maneira deles lidarem com os conflitos com o dia a dia com o tempo, a supremacia do coletivo no lugar do individual, uma série de coisas que me faz ser tão interessado em conhecer a cultura dos povos originários que estavam aqui antes dos europeus chegarem.
E aí quando eu comecei a trabalhar com audiovisual e cinema, primeiro como roteirista, essa ferramenta da antropologia, o estruturalismo de Lévi-Strauss e a mitologia foram ferramentas muito importantes pros meus roteiros, com a maneira de olhar pro outro que a antropologia oferece, que não projeta seus valores pessoais. Isso é um marco nos meus roteiros. Conforme meu trabalho foi avançando, eu fiz alguns filmes que eu fui só roteirista como: Bicho de Sete Cabeças (2001), Como Nossos Pais (2017), Bingo: O Rei das Manhãs (2017) e Elis (2015).
No meu trabalho na direção essa característica de aproximar dos temas indígenas veio com mais força. Então eu fiz minha primeira animação em que eu dirigi: Uma História de Amor e Fúria, que na verdade é uma leitura da história do Brasil do ponto de vista de um guerreiro tupinambá do século 16.
Em seguida eu fiz o filme Ex-pajé, com os paiter suruí, que relata um processo que tem acontecido há 500 anos, que é a entrada de cristianismo nas aldeias, uma entrada muito agressiva, muito violenta e que recentemente, com a igreja evangélica mais fundamentalista, esse processo voltou a se acirrar. O filme retrata a entrada de uma igreja evangélica e a demonização do xamã, do pajé, que passa a ser acusado pelo pastor que os rituais sagrados que ele faz, os cânticos, as flautas mágicas, os espíritos relacionados a floresta, são coisas do demônio e desqualifica o pajé. O que a gente filmou no Ex-pajé não está acontecendo só entre os paiter suruí, é geral, está acontecendo no Brasil inteiro dentro de um movimento de intolerância religiosa que o fundamentalismo evangélico vem trazendo nas comunidades. Mas está tendo bastante resistência e é pra falar da resistência que eu fiz meu último filme A última floresta.
Como eu tinha documentado o processo violento de aculturação e etnocídio no Ex-pajé, eu achei que era muito importante mostrar o contrário, mostrar as comunidades que optaram pela luta de resistência e que estão nesse enfrentamento. Eu escolhi os Yanomami e o líder da resistência que é o Davi Kopenawa Yanomami, que escreveu um livro A Queda do Céu , em que ele relata muito esses processos. Tentaram evangelizar, ele chegou a estudar a Bíblia e depois ele teve consciência da violência que esse processo traz e se colocou do lado dos xamãs. Ele é um grande xamã numa luta de resistência não só contra a entrada da igreja evangélica, mas também do modo de produção e vida capitalista, o excesso de mercadorias e eu resolvi fazer um filme que retratasse essa luta. Um aspecto interessante é que eu chamei o Davi Kopenawa não apenas para ser o protagonista desse filme, mas para ser o roteirista também. Então o documentário tem um ponto de vista muito indígena, um olhar muito mágico para a realidade, mitologia e sonhos que fazem parte do dia a dia.
Hoje os yanomami vivem numa área muito grande, o território Yanomami é a maior reserva indígena do planeta, um território bastante considerável, é uma das áreas do Brasil com seus biomas bastante preservados. Se vocês forem estudar hoje os territórios indígenas, que somam 10% do território brasileiro, a concentração dos biomas conservados está nos territórios indígenas não é à toa. E nos últimos anos ele vem sofrendo – coincide com a entrada do governo Bolsonaro –, uma invasão assombrosa de garimpeiros no seu território, com destruição muito rápida e extremamente violenta dos rios, dos córregos e dos igarapés. O filme não é sobre isso, o filme é sobre o modo de vida dos yanomami, sobre o dia a dia deles, a beleza e potência do universo yanomami, mas também a gente aborda essa questão muito grave. Já era grave quando filmei em 2019 e esse ano está mais grave ainda. Agora os garimpeiros, tanto no território Yanomami quanto no território Munduruku vem inclusive fazendo agressões, causando incêndios e atacando aldeias, matando lideranças indígenas, então a situação é muito delicada, a destruição é muito grande porque vai além do impacto da destruição da floresta da mata. Então é um processo extremamente violento e que tem, na medida em que ele destrói o coração da floresta, a perspectiva de no curto e médio prazo avançar bastante a destruição dessas áreas e a gente sabe que isso está causando, afetando violentamente o processo hídrico do país, da América do Sul como um todo e causando interferências que causam diminuição das chuvas no Centro-Oeste, no Sudeste, a gente está com uma crise hídrica nas usinas hidrelétricas e essa devastação nos últimos rincões que a floresta está preservada é muito grave para todos nós brasileiros.
O filme A Última Floresta, e creio que o Ex-pajé também, traz uma perspectiva histórica. No caso dos Yanomami, essa pressão dos garimpos vem desde a década de 1980 e teve o episódio terrível do massacre de Haximu. Colocando o Davi Kopenawa como roteirista e protagonista do filme, o que esse filme pode ensinar aos não-indígenas sobre a herança e perspectiva de futuros que os Yanomami têm?
Eu acho que a voz dos povos nativos vem encontrando mais espaço, mais escuta nos últimos anos. A gente está começando a ouvir os povos. Culturalmente e historicamente nós sempre fomos formatados e ensinados a desqualificar os saberes e conhecimentos dos povos da América que estão aqui há 4 mil anos, civilizações extremamente ricas, potentes e sábias, que tinham sobretudo o conhecimento profundo do conceito tão importante hoje em dia de sustentabilidade. Hoje a Etnobiologia e a antropologia nos seus estudos mais recentes têm mostrado que o que é o território brasileiro hoje era muito populoso antes dos europeus chegarem. Os números estão mudando, hoje já se fala que existiam aproximadamente 20 milhões de indígenas vivendo no que seria o território brasileiro. Só na Amazônia, estudos de arqueólogos falam de 8 milhões de pessoas morando ali no século 15 ou 16. O curioso é que não eram tão pouco populosos, eram bastante populosos. O que a gente sabe é que eles tinham uma fartura de carboidratos e proteínas pelo regime de plantação e plantio das roças com batatas, inhames, mandioca e milho. O pão da América é a mandioca e uma fartura de proteínas que vinham dos processos de caça e pesca. É muito comum nos povos indígenas que eu visitei, as roças são bastante ricas e além da mandioca eles tem várias dessas raízes, vários tipos de batata, inhame, é uma fartura muito grande.
Nos tratos das narrativas mitológicas deles, há uma série de intervenções mitológicas que na verdade são saberes científicos, é isso que a gente tá começando a entender agora. O que nos parece narrativas folclóricas, mitológicas, na verdade está embutida uma ciência muito poderosa, por exemplo: nos paiter suruí, quando o pajé proíbe os homens que têm filhos pequenos de caçarem animais lentos porque isso traria doença pros filhos pequenos – e é uma intervisão mitológica deles – na prática quase todos os caçadores de idade adulta tem filho pequeno. Eles deixam de ter filhos pequenos quando já são bem mais adultos, com mais de 45 anos e muitas vezes já nem são mais caçadores. Isso faz com que a aldeia tenha um cinturão de animal lento que sobrevivem e que são a base da cadeia alimentar, então quando a gente examina isso com as lentes da ciência europeia, que é uma ciência diferente, a gente conclui que eles têm dispositivos ecológicos e ambientais voltados para a sustentabilidade numa ciência mítica, numa ciência que as intervenções estão ligados à mitos, fábulas e lendas, mas elas produzem uma realidade altamente sustentável que permite/permitia que cerca de 20 milhões de pessoas tenham vivido na América e mais de mil nações diferentes no território brasileiro durante quase 4 mil anos sem a destruição dos seus biomas.
Nós, a civilização europeia caucasiana, chegamos aqui com essa racionalidade científica há pouco mais de 500 anos, já destruímos ⅔ dos biomas e estamos condenando as futuras gerações a uma crise alimentar e hídrica sem precedentes. Sem falar que somos a civilização da pandemia no momento, estamos nos colocando numa sinuca de bico pelo modo que a gente produz, então eu sinto que chegou a hora de a gente ouvir com humildade e conhecer o saber das populações e civilizações que estão aí. Hoje ainda há cerca de 300 civilizações dessas mil que havia no Brasil. Estão aí falando as próprias línguas e eles detêm esse conhecimento científico sobre sustentabilidade, sobre cura, sobre remédio, sobre medicina e que tá embutido no conhecimento mitológico deles, esses conhecimentos não se separam. Um xamã como o Davi Kopenawa ao mesmo tempo que ele é um sacerdote religioso ele é um grande doutor da Sorbonne. Então quando eu vejo que o livro do Ailton Krenak , um filosofo indígena, foi o livro mais vendido na FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty]do ano passado, isso mostra pra mim que a gente está começando a entender que para o nosso futuro é urgente e será muito importante aprender com as civilizações que estavam antes na América: sobre sustentabilidade, sobre como preservar os rios, como manter os biomas e a importância disso para o futuro econômico.
O meu cinema milita exatamente nesse lugar, como eu tenho muito interesse, muita curiosidade em aprender com esses povos, eu coloco o meu cinema a serviço desse aprendizado, dessa escuta. Veio daí essa ideia, sendo o Davi um grande xamã que também escreve livro – porque ele escreveu junto com o antropólogo Bruce Albert um livro maravilhoso chamado A Queda do Céu – eu entendi que ele deveria não ser apenas protagonista do filme, mas ele podia ser autor do filme junto comigo.
Pegando emprestado da antropologia essa ideia de “desencantamento do mundo” e que a ciência europeia promove esse desencantamento do mundo, talvez esse seja o fio condutor do filme Ex-pajé. Mas o A Última Floresta é o oposto, é o mergulho no mundo encantado, na cosmovisão Yanomami. Mas o filme termina em Harvard, talvez a “meca” (sic) do desencantamento do mundo. Queria que você comentasse os choques e as possibilidades de aprendizado para a ciência, para a economia e toda estrutura de sociedade europeia capitalista que a gente vive…
A gente convivendo com eles e estudando as civilizações pré-cabralianas, os povos originários daqui, a gente vê que para eles esse encantamento com o mundo, ou seja, o fantástico e o mágico, fazem parte do dia a dia. Enquanto para nós os mitos viraram folclore e são guardados em livros numa estante, para eles é matéria do dia a dia: explica as formigas terem destruído a roça ou através dos mitos eles conseguem enfrentar ou encarar a doença de uma criança e tomar atitudes em como produzir essa cura. Os espíritos da floresta estão presentes no dia a dia deles da mesma maneira que para eles o sonho teria algo da realidade. Para gente o sonho é a narrativa de algo que não aconteceu, para os povos indígenas e para o povo Yanomami o sonho é algo real que se passa de noite, eles acreditam que aquilo que eles estão vendo tem o mesmo peso da realidade, ao ponto de eu estar andando com um caçador yanomami de manhã, ele se levantou e saiu às 5 da manhã e falou que estava cansado ‘mas como se você acabou de sair da rede?’ ‘não, mas eu passei a noite fugindo de uma onça que me perseguiu a noite inteira’ e ele se declarava exausto porque para ele aquilo tinha acontecido.
A ciência do concreto como Lévi-Strauss fala, um saber que produz muita realidade, produz sobretudo uma economia ecológica, uma economia em que por conta desse enraizamento mitológico, essa ciência e esse saber indígena faz com que eles se vejam parte da natureza, enquanto a ciência que surge principalmente pelo século XV e XVI na Europa, a gente se afasta da natureza para praticar uma ciência em que há uma soberania no logos em detrimento do mitos. Esse afastamento produz a destruição dos biomas, porque o homem se confundiu, perdeu sua noção de participação, através da sua perda do encantamento, de fazer parte de algo e ele achou que a missão dele era chegar ao ponto de quebrar o átomo e fazer uma bomba atômica. E esse processo hoje está se mostrando bastante ilusório, na hora em que a gente é colocado em xeque-mate por um ser unicelular que colocou toda a humanidade – que vem e que deriva desse modo lógico de agir e se afastar da natureza – contra as cordas, vivendo uma crise sem precedentes, sem saber como lidar com essa questão.
Riqueza para Davi e para os Yanomami é a fertilidade do rio, para nós a riqueza é meio quilo de ouro e um rio inteiro destruído por metal pesado. Uma floresta inteira derrubada então é um conceito de riqueza mórbido, que leva à morte, por isso a gente está enfrentando como consequência essa pandemia que está nos mergulhando na morte. A gente está criando condições para que a nossa espécie desapareça do planeta através desse afastamento, então temos que nos reconectar, esse pertencimento a natureza é a principal ação ecológica que nós podemos fazer hoje. Nós precisamos de universidades indígenas, não para os indígenas estudarem a nossa biologia, mas para nós estudarmos a cosmovisão científica da biologia indígena, da economia indígena e isso é urgente.
Eu acho que o meu cinema milita nesse sentido, mas os caminhos de escuta estão sendo muito abertos e é aí que a gente coloca Harvard no filme. Hoje o Davi é convidado para fazer palestra em Londres, em Washington, Harvard, da mesma maneira o Ailton Krenak. Cientistas de ponta estão reconhecendo o saber desses povos que estão aqui há milhares de anos e são saberes de ponta, não um saber perdido ou primitivo que na verdade é um preconceito construído pela nossa civilização para legitimar o massacre, o roubo das terras e o estupro das mulheres.
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O post De Harvard à Amazônia: Documentário explora o mundo pela ótica Yanomami apareceu primeiro em ((o))eco .
Fonte
O post “De Harvard à Amazônia: Documentário explora o mundo pela ótica Yanomami” foi publicado em 3rd June 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco