Nesta sexta-feira (13), a Agência Pública lançou uma investigação inédita, baseada em documentos vazados pelo WikiLeaks no dia 5 de agosto, sobre as organizações ultraconservadoras de extrema direita HazteOir e CitizenGO. As duas têm como fundador o espanhol Ignacio Arsuaga, mas a primeira tem atuação local e a segunda tem escritórios e associados em todo o mundo, inclusive no Brasil. A investigação da Pública encontrou mais de 200 nomes de brasileiros entre os associados.
Em entrevista, Neil Datta, pesquisador e secretário do Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos, comentou a importância do vazamento e falou sobre seu recém-lançado estudo “Tip of the Iceberg — Religious Extremist Funders against Human Rights for Sexuality and Reproductive Health in Europe, 2009-2018” (A ponta do iceberg — Financiadores extremistas religiosos contra os direitos humanos para a sexualidade e saúde reprodutiva na Europa de 2009 a 2018, em tradução livre), que revela quais são os principais grupos antidireitos no mundo, como eles se mantêm e quais são suas principais fontes de financiamento.
A primeira parte de seu relatório olha para 54 financiadores antigênero na Europa, vindos especialmente dos Estados Unidos, da Rússia e da União Europeia. Juntos, de 2009 a 2018 eles teriam gastado mais de US$ 707 milhões com organizações e ações antidireitos reprodutivos e LGBT. Entre as organizações mais influentes no mundo está a TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), fundada no Brasil na década de 1960 por Plínio Corrêa de Oliveira. Neil explica que, apesar de ter praticamente encerrado as atividades na América Latina após a morte do professor na década de 1990, a organização se manteve forte na Europa e gerou várias outras, como o grupo ultraconservador, extremista e antidireitos polonês Ordo Iuris . “As organizações que surgiram a partir da TFP são provavelmente a rede ultraconservadora mais rica na Europa neste momento”, define.
Como a Pública também mostrou , o grupo, que tem forte influência política, financiou a ida de Angela Gandra, secretária nacional da Família no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a uma conferência antiaborto na Polônia no fim de 2020. O estudo de Neil revela também que o financiamento de ações antigênero, antidireitos reprodutivos e LGBTfóbicas aumentaram drasticamente nos últimos anos. “Esses grupos nunca foram relevantes, e nós pensamos que eles apenas desapareceriam em algum momento porque as lideranças estavam ficando velhas. Mas dez anos atrás isso mudou. Estamos lidando com uma nova geração de organizações”, diz. Entre as fontes de financiamento estariam organizações evangélicas americanas, famílias aristocratas europeias, oligarcas russos ligados ao Kremlin, dinheiro vindo de lavagem de dinheiro de políticos corruptos e doações de pessoas fisgadas em petições on-line.
Por que esse novo vazamento do WikiLeaks é importante?
O vazamento é muito importante porque mostra a vasta rede de organizações ultraconservadoras antidireitos humanos, como estão interconectadas e como ameaçam a democracia e os direitos em muitos países. E a gente também descobre que existe um certo número de epicentros, especialmente da CitizenGO. Não há apenas um local coordenando tudo, mas existem hubs – na Espanha, nos Estados Unidos, na Rússia, no Brasil e no México –, e eles interagem, trocam ideias e fundos.
Nós achamos cerca de 200 nomes de associados no Brasil. O que a CitizenGO faz nos países em que se estabelece? Porque não é apenas uma plataforma on-line para petições, certo?
Eles fazem muitas coisas. A plataforma on-line para petições é só a ponta do iceberg. Com as petições em si o que eles fazem é um bullying a diferentes atores para que não tomem ações referentes aos direitos humanos, uma pressão para ir contra os direitos humanos. E isso já é uma tática superagressiva. Isso é uma coisa. Não são petições legais ou gentis, são táticas de bullying. Quando eles têm todas essas assinaturas para as petições — e as petições sempre pedem algum e-mail —, não importa se as petições funcionam ou não, porque o real interesse é pegar esses endereços de e-mail das assinaturas. Então eles abordam essas pessoas com pedidos de financiamento. Esse é o principal objetivo das petições. Você tem esses milhões de endereços de e-mails e pode pedir que eles mandem 5 €, US$ 2. Além disso, você assina uma petição e depois outra e acaba em várias listas, sendo abordado para mais e mais doações. Isso é a CitizenGO. De 2013 em diante, quando a CitizenGO apareceu, já se tornou uma das top 5 organizações antigênero na Europa em termos de fundos. Em menos de dez anos, eles foram de zero a top 5. E com esses financiamentos e petições eles também têm conseguido influência política. Na Espanha, já é bastante conhecido que eles são próximos ao partido de extrema direita Vox. E para quem não conhece o Vox, é a representação moderna do franquismo. Não é apenas um partido de direita, é extrema direita. E jornalistas têm denunciado que, quando você financia CitizenGO, você indiretamente apoia o Vox, porque eles compartilham as mesmas ideias. E a CitizenGO aconselha diversos partidos políticos sobre diferentes temas nos países. Então, as atividades são bullying, levantamento de fundos, influência política e, também, servir de guia para os assinantes ao espectro de extrema direita.
Outra coisa é que eles estabelecem acordos em que dizem: “Nessa língua você vai produzir esse tanto de petições e por essas petições nós vamos lhe dar esse valor em euros ou dólares. Se você criar dez petições, nós vamos lhe dar mil euros por petição. E por cada cem ou mil assinaturas nós vamos lhe dar esse tanto de dólares e euros e você compartilha essas assinaturas com a gente”.
Existem conexões entre a CitizenGO e o Opus Dei? E a CitizenGO e a TFP?
Na imprensa espanhola existe uma alegação, há muitos anos, de que talvez a CitizenGO seja ligada a essa organização mexicana chamada El Yunque , que seria um grupo ultracatólico secreto, com influência no cenário político mexicano. Existe muita coisa na mídia sobre isso. A Espanha também é o berço do Opus Dei. E muitas pessoas que faziam parte do Opus Dei, católicos ultraconservadores de extrema direita, gravitaram em algum momento para a HazteOir e CitizenGO. A gente sabe também de pessoas que são próximas à CitizenGO e HazteOir e têm conexões com o Opus Dei. Uma delas é o ex-ministro espanhol que depois virou membro do Parlamento Europeu, o nome dele é Jaime Mayor Oreja.
Sobre a TFP acontece algo interessante. A organização começou no Brasil na década de 1960 e se expandiu para outros países da América Latina, para os Estados Unidos e para a França. E de lá para outros países europeus. Por muito tempo houve TFP na Espanha – se chamava TFP-Covadonga e esteve muito presente nas décadas de 1960 e 1970. Foram muito presentes no período franquista. Mas desapareceram no fim da década de 1990. A TFP também desapareceu da América Latina após a morte de seu fundador, Plínio Corrêa de Oliveira, mas não é o caso da Europa, onde você ainda tem TFP na Alemanha, na França e na Áustria. A Ordo Iuris descende disso. Então a TFP na Polônia, criada na década de 1990, funda depois a Ordo Iuris. Nos anos 2000, não existia mais a TFP-Covadonga na Espanha. Mas em 2003 a HazteOir aparece e é muito semelhante à TFP. Existem algumas diferenças: a HazteOir não faz referência a Plínio e, junto com a CitizenGO, é muito moderna, enquanto a TFP é medieval. Mas, quando olhamos para as atividades, elas fazem basicamente as mesmas coisas. Petições, fundraising etc. Quando você olha os documentos que o WikiLeaks vazou, a CitizenGO fez workshops com outras organizações na Europa. E quais eram essas organizações? As diferentes frentes da TFP. Se existe uma conexão direta eu não sei, mas eles definitivamente preenchem um espaço deixado pela TFP na Espanha, agem de forma muito parecida, e também nos vazamentos é possível encontrar todas as cartas de fundraising de outras organizações da TFP na Europa, no drive da HazteOir. Então, no mínimo podemos dizer que a metodologia de fundraising desenvolvida no Brasil na década de 1960 e 1970 agora funda a base das formas de fundraising da CitizenGO em nível global!
A CitizenGO anuncia orgulhosamente que não recebe dinheiro do governo. Mas sabe-se que ela recebe dinheiro por meio de outras organizações e doadores, que muitas vezes recebem dinheiro governamental. Pode falar sobre isso e sobre as conexões com a Rússia e com esquemas de lavagem de dinheiro?
A CitizenGO alega que é financiada apenas por pequenas doações feitas por cidadãos. Mas isso não é totalmente verdade. Por um lado, ela tem muitas pequenas doações de indivíduos, mas os fundadores precisaram de ajuda para estabelecer a CitizenGO. Você não pode simplesmente criar um site e começar a coletar dinheiro sem um capital inicial. E o que o vazamento do WikiLeaks mostra é que, para estabelecer a CitizenGO, a HazteOir fez basicamente o que todos fazem, que é criar um documento com um conceito e mandar para potenciais doadores pedindo US$ 100 mil, US$ 200 mil. E quem são esses doadores que eles abordaram? Primeiro os bilionários espanhóis. Como eu disse no meu estudo, são famílias ricas, algumas da aristocracia espanhola. Eles abordaram também o bilionário mexicano Patrick Slim, que é suspeito de estar associado ao El Yunque. Abordaram dois oligarcas russos [Vladimir Yakunin e Konstantin Malofeev] que tiveram conexão com separatistas ucranianos de extrema direita. E parece que a CitizenGO conseguiu dinheiro deles. Em termos de lavagem de dinheiro, uma coisa que o WikiLeaks mostra é que a CitizenGO também foi financiada por um político italiano [Luca Volontè] de uma organização chamada Communion and Liberation, outro movimento religioso, que no começo deste ano foi condenado a quatro anos de prisão porque estava recebendo dinheiro ilegal vindo de fontes de corrupção do Azerbaijão em troca de votos contra os direitos humanos no Conselho Europeu. E reportagens mostram que sua organização dava dinheiro anualmente para a CitizenGO. Então você tem o financiamento vindo de famílias aristocratas espanholas, lavagem de dinheiro e oligarcas russos. É basicamente assim que se estabelece a CitizenGO.
Quais grupos antidireitos são mais ativos hoje no mundo e como eles trabalham?
Nos países europeus, as leis de legalização do aborto começaram a surgir em algum ponto na década de 1970, e então surgiram os grupos “pró-vida” oferecendo uma alternativa de contraposição a esses avanços. Esses grupos existiram assim nos anos 1970, 1980 e 1990, e aproximadamente dez anos atrás nós vimos algo inédito acontecer. Esses grupos antiaborto nunca foram relevantes, eles ficavam em frente a clínicas protestando, fazendo pequenas coisas. E nós pensamos que apenas desapareceriam em algum momento porque as lideranças estavam ficando velhas. Mas dez anos atrás isso mudou. Então nós estamos lidando com uma nova geração de organizações que não tínhamos antes na Europa e nos Estados Unidos. Além disso, surgiram novas constelações em organizações já existentes. Por exemplo: muitas dessas organizações nacionais decidiram se internacionalizar.
Então, quais são os nomes principais hoje em dia? Um é a HazteOir, que se desenvolveu internacionalmente e estabeleceu a CitizenGO. São as mesmas pessoas, mas um é espanhol e outro, global. Outro grupo importante que se internacionalizou é o One of Us. Eles são bem próximos à Igreja Católica e são considerados um modelo de sucesso. Existe um grupo similar que faz campanhas antidireitos LGBT, em favor da “família”, que ficou conhecido como La Manif pour Tous na França e se espalhou por outros países europeus com o nome de “Mum, dad and kids”, e um grupo que veio do meio cristão protestante.
Outro grupo que veio do mundo protestante e se tornou um partido político é o European Christian Political Movement (ECPM).
E um dos atores mais importantes desse grupo antidireitos hoje é a Ordo Iuris, que tem conexões com o Brasil porque é a representação moderna da TFP.
Como aconteceu de a TFP ficar mais poderosa na Europa do que no Brasil?
No Brasil a TFP é parte da história, enquanto na Europa faz parte do presente. Estão presentes na França, na Itália, na Polônia, na Alemanha, na Áustria, na Irlanda e em muitos países católicos. Na Polônia se tornaram mais fortes, e, quando se trata da TFP, nunca é apenas sobre uma organização. Eles sempre têm muitas organizações. Recentemente a Ordo Iuris criou a universidade TFP chamada Collegium Internarium — e se você conhece a TFP, eles gostam de usar latim —, que é uma alternativa às universidades progressistas para as elites ultraconservadoras na Europa. Basicamente, pretende defender as ideias da extrema direita.
Você acredita que as mídias sociais trouxeram novos elementos a essa agenda antigênero?
Definitivamente. Através das mídias sociais esses grupos conseguem divulgar sua mensagem de uma maneira incontrolável, invisível para o mainstream. Um exemplo: recentemente, sobre as eleições na Croácia, tivemos notícias de que a CitizenGO estava enviando mensagens de texto e de WhatsApp, mensagens ultraconservadoras, para as pessoas votarem em um candidato específico nas eleições municipais. E isso é muito diferente de pagar anúncios de rádio e televisão. Os países são regulados por leis financeiras de campanhas eleitorais. Só se pode gastar esse tanto de dinheiro em anúncios etc. Esse tipo de guerrilha nas mídias sociais é totalmente irregular e acontece fora do radar.
Quem paga pela ação desses grupos?
Meu estudo tenta juntar o que a gente sabe sobre o financiamento desses movimentos. Fiz apenas sobre a Europa, principalmente porque a maioria dos estudos prévios sobre isso foi feita nos Estados Unidos e dá a impressão de que todo o dinheiro vem dos Estados Unidos, mas eu achava que tinha dinheiro vindo da Europa também. Olhei as contas anuais de cerca de 57 organizações presentes na Europa. HazteOir, CitizenGO, todas as pequenas ligadas à TFP. Em um período de dez anos, entre 2009 e 2018, eu consegui contar mais de US$ 700 milhões nesse movimento na Europa. Chamei esse estudo de “Tip of Iceberg” simplesmente porque esses US$ 700 milhões são só a parte que eu conheço e posso justificar com documentos. E metade das organizações que eu queria ter olhado não publica relatórios de contas anuais. Então, na verdade, esse número é muito maior. Mas é um começo. E desses US$ 700 milhões podemos encontrar três origens principais. Uma são os Estados Unidos. A direita cristã norte-americana. A segunda categoria de atores americanos é de organizações jurídicas, como por exemplo a Alliance Defending Freedom e o European Center for Law and Justice. Isso é importante porque na Europa a gente não tem essa experiência em litigância. Todos os progressos e avanços nos direitos são resultado de decisões legislativas e não de atos judiciais — o oposto dos Estados Unidos. Outra fonte de financiamento é a Rússia. E isso corresponde a cerca de US$ 180 milhões, um montante grande, e esse dinheiro vem de diferentes fontes. Oligarcas motivados por ideologia que trabalham próximos ao Kremlin, e também por esquemas de lavagem de dinheiro, o chamado dark money. A terceira fonte de financiamento da Rússia são agências de Estado que promovem ideias nacionalistas pró-Rússia ao redor do mundo. Neste momento, ideias pró- Rússia significam ideias conservadoras sobre família etc. A identidade nacional da Rússia é o conservadorismo, então é isso que eles estão promovendo internacionalmente. Outra fonte de financiamento, US$ 437 milhões, vem da Europa. E, quando você olha para além da superfície, você encontra quatro categorias principais de fundos. Uma delas é o astroturfing [termo usado para a prática de mascarar patrocinadores de uma mensagem ou organização com o intuito de fazer parecer que tenha começado ou seja apoiada por membros de movimentos populares espontâneos da sociedade]. A TFP, por exemplo, sempre foi conhecida por coletar doações através de itens católicos: medalhas, livros, calendários com a foto de Plínio, coisas assim. Eles ainda fazem isso e ganham milhões. As organizações que surgiram da TFP são provavelmente a rede ultraconservadora mais rica na Europa neste momento. Nos últimos dez anos, eles levaram cerca de US$ 120 milhões em astroturfing. A CitizenGO também faz isso, e outros grupos alemães. Outra fonte de renda vem das elites econômicas. Um certo número de bilionários na Europa está financiando partidos políticos de extrema direita. E temos famílias ricas em diferentes países. Temos um fenômeno bastante europeu, que são os aristocratas. Famílias de aristocratas que têm uma relação especial com a Igreja Católica. Muito comumente era a Igreja Católica, séculos atrás, que legitimava a sua posição, então essa relação continuou e em muitos países esses aristocratas ainda são parte da elite econômica porque herdaram terras. Eles financiam o movimento antidireitos por meio de uma série de fundações privadas. Vemos isso quando olhamos para o quadro de associados e vemos “conde disso, duque daquilo, princesa etc.”. E, quando olhamos mais de perto, descobrimos que são parte das famílias mais ricas da Alemanha, da Áustria ou de outros lugares.
Outra fonte de financiamento que encontrei são recursos estatais. Muitas dessas organizações são capazes de receber dinheiro estatal por meio de programas para juventude, aconselhamento de mulheres grávidas. E algumas delas desenvolveram seus próprios partidos políticos e são financiadas pelo Estado. Em alguns países, a democracia erodiu de tal maneira que agora organizações estão recebendo fundos do governo para apoiar narrativas antigênero e antidemocracia.
Por fim, temos as redes religiosas. Um grande número de pessoas associadas a organizações antigênero também tem papéis-chave em organizações religiosas. Em algumas das fundações privadas que mencionei, quando você vê quem é o fundador, é membro do Opus Dei ou parte de um partido como o protestante holandês.
Então, o que a gente tem basicamente são fundações privadas, astroturfing, grassroots [doações espontâneas], elites econômicas, famílias aristocratas, dinheiro público e atores religiosos.
Fonte
O post “De grupos religiosos a oligarcas russos: quem financia os ultraconservadores antidireitos” foi publicado em 13th August 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública