Outubro de 2019 – Nenhuma festa, viagem ou notícia, até então, havia me deixado tão empolgado e ansioso como o convite que recebi naquele mês. O pesquisador Everton Miranda recebeu o convite da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT) para resgatar um filhote de harpia e precisava de alguém para auxiliá-lo no resgate. O filhote foi encontrado em uma área de desmatamento ilegal no município de Colniza (MT), a cerca de 1.064 km da capital Cuiabá.
Everton foi meu professor na universidade, me conhecia a algum tempo e sabendo que meus ideias são semelhantes ao dele, me convidou para acompanhá-lo nesse resgate. Foi uma viagem um tanto cansativa e com muitas surpresas devido a chuvas intensas e a estradas precárias. Na ida a Colniza, nos deparamos, por volta da meia noite, com dois caminhões atravessados na estrada. Faltavam apenas 60 km para chegar a Colniza. Tivemos que voltar cerca de 8 km e dormir em uma pequena vila que encontramos.
No dia seguinte, no trajeto entre Alta Floresta e Colniza, não conseguia esconder a ansiedade para chegar logo na propriedade do Sr. Jaci, tutor de um filhote da maior águia do mundo, afinal de contas, nunca tinha visto um gavião real, conhecida como harpia, de perto. Por volta das 15 horas tivemos o primeiro contato com o filhote. Fiquei surpreso ao chegar a residência do Sr. Jaci, pois notamos que o filhote estava amarrado a um galho por uma corda fina e era alimentado a cada três ou quatro dias com galinhas e pequenos animais caçados na propriedade. O mais impressionante foi comparar o tamanho do filhote com os netos do Sr. Jaci e ver o quão perigoso era para as crianças conviver com a ave cujas garras são as mais poderosas do mundo. Permanecemos na propriedade por cerca de 50 minutos conversando com a família e, então, voltamos a Cotriguaçu-MT levando o filhote em um recinto especialmente preparado para ele.
Poder ver o filhote tão de perto foi bastante emocionante para mim. No entanto, também me fez pensar no fato de que a Floresta Amazônica, com sua tão rica biodiversidade, está sendo devastada para que uma única espécie, o boi, passe a dominar as paisagens outrora exuberantes. O filhote resgatado é apenas mais uma vítima da ganância humana que, diferente de milhões de outras espécies vegetais e animais que tomam a Floresta Amazônica por lar, teve a sorte de não ter morrido quando a árvore em que seu ninho estava foi derrubada. Teve mais sorte ainda em encontrar um ‘homem bom’ para cuidar dele até ser resgatado a pedido da SEMA-MT.
No mesmo dia, por volta das 23 horas, chegamos ao recinto onde o filhote passaria por pelo menos mais três meses para ganhar peso e se acostumar a nova vida para então ser reintroduzido. O liberamos no recinto debaixo de chuva e voltamos para a sede da ONF Brasil Fazenda São Nicolau – braço da estatal francesa que trabalha com sequestro de carbono no Arco do Desmatamento.
Assista ao vídeo do resgate:
Como a SEMA-MT soube do filhote
Sr. Jaci e seus filhos encontraram e cuidaram da harpia por cerca de 4 meses na esperança de encontrar alguém ou alguma instituição que pudesse trabalhar na reabilitação e reintrodução do filhote na natureza. Na época, Sr. Helio Mendes de Souza (Helinho da Rádio), então Secretário de Agricultura de Colniza (MT), foi procurado pela família a fim de ajudá-los a comunicar os órgão ambientais sobre a existência do filhote em cativeiro e do desejo de entregá-lo às autoridades. Sr. Helio contactou a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT) e esta, por sua vez, convidou o pesquisador Everton Miranda – que lidera um projeto de conservação da harpia na região – para que fizesse o resgate do filhote, bem como a reabilitação e reintrodução do mesmo na natureza.
No tempo em que esteve no recinto, o filhote foi alimentado basicamente com animais atropelados e, eventualmente, com galinhas. Após a soltura, o filhote deverá ser alimentado por mais dois anos, até que chegue a vida adulta e aprenda a caçar sozinho.
A soltura…
Em dezembro de 2019 surge um novo convite: acompanhar a soltura do filhote no mês de janeiro de 2020.
Recebemos a equipe da National Geografic – fotógrafa Karine Aigner e repórter Rachel Nuwer – no aeroporto municipal de Alta Floresta. A equipe veio documentar o trabalho desenvolvido pelo pesquisador Everton Miranda com as harpias da região do Arco do Desmatamento. Viajamos após as 14 horas com destino a Fazenda São Nicolau. Chegamos à balsa do Rio Juruena as 17h51min, 9 minutos antes da última balsa partir – caso perdêssemos a balsa teríamos que dormir em um pequeno pulgueiro às margens do rio.
No dia seguinte, 7 horas da manhã já estávamos a postos. Era o tão esperado momento: a soltura do filhote. Após o café, partimos para o recinto, que fica a uns 5 minutos de carro da sede da fazenda. Estávamos empolgados para ver o primeiro voo de liberdade do filhote. A fotógrafa Karine Aigner preparou as câmeras GOPRO, as instalou em um poleiro que foi colocado à altura do filhote. Enquanto isso, Roberto e a estagiária Bruna trabalharam para abrir a tela. Nesse meio tempo, Rachel se senta no chão e inicia a entrevista com Everton.
Pouco a pouco a equipe consegue desamarrar a tela de um lado do recinto. Karine, por sua vez, movia-se incansavelmente em busca do melhor click. Após umas 2 horas fotografando o filhote trancado no recinto, chegou o momento de abrir a tela, Karine se posicionou a uns 5 metros de onde o filhote estava empoleirado de forma que pudesse registrar o momento em que ele tomaria a liberdade de voar livremente pela primeira vez. Por volta das 10 horas da manhã a tela foi retirada e o mundo se mostrou sorridente para a jovem harpia.
Todos ao redor se mostravam apreensivos. Ansiavam pelo momento em que o filhote abriria as asas e tomaria os galhos mais altos das árvores ao redor do recinto. Aos poucos a ansiedade foi substituída por frustração. O filhote se negava a sair do ninho artificial, outrora construído para ele. 11 horas da manhã chegou e nada do filhote voar. Decidimos ir almoçar e deixar a fotógrafa a sós com o filhote. Talvez com menos pessoas por perto ele voaria. As 13 horas voltamos ao recinto, e para nossa surpresa, o filhote sequer havia se movido do lugar onde o deixamos.
Às 14 horas desistimos de tentar registrar o momento e voltamos para a sede da Fazenda, afinal, outras programações estavam agendadas e cada minuto era importante para a equipe contratada pela National Geografic para cobrir o trabalho do pesquisador. No dia seguinte, pela manhã, voltamos ao recinto e encontramos o filhote no mesmo lugar. Não tinha se movimentado para lugar algum. Se mostrava sem nenhuma empolgação e/ou preocupação em alçar voo. Afinal de contas, voando ou não ele permanecerá recebendo alimento a cada três ou quatro dias por pelo menos mais dois anos até ser capaz de capturar aves e animais da densa e úmida floresta amazônica por conta própria.
Assista ao vídeo do momento em que o recinto foi aberto:
Durante a expedição, o pesquisador aproveitou para checar um possível ninho, localizado dentro da fazenda São Nicolau, que fora reportado a ele por coletores de Castanha do Brasil.
A logística até o ninho foi um tanto trabalhosa. Cai dentro de uma poça d’água, molhando tudo que estava comigo. Por pouco não perdi minha câmera – tive que deixá-la desligada por alguns dias para secar completamente, caso contrário a perderia. Caminhamos cerca de 2 km dentro da mata úmida, sendo uns 80 metros com água na cintura. Rachel tomou nota de tudo e Karine não deixou de registrar um momento sequer. Por fim chegamos ao local indicado por GPS. Confirmamos que realmente um casal está nidificando ali.
Os aliados do projeto
Encontrar um ninho de harpia não é fácil. Primeiramente por que elas constroem seus ninhos a 30, 35 metros de altura, nas primeiras bifurcações das grandes árvores da floresta. Segundo, porque são aves raras, ou seja, já não existem muitas harpias morando na floresta. No entanto, em 4 anos de trabalho o pesquisador já tem cerca de 30 ninhos catalogados no norte do estado de Mato Grosso. Essa façanha só foi possível graças a ajuda de coletores de Castanha do Brasil (que tiram o sustento da floresta), que ao localizarem um ninho reportam o achado, recebendo R$ 500,00 como recompensa.
Esse filhote não foi o primeiro a ser resgatado pelo pesquisador Everton Miranda e sua equipe. Antes dele outros dois foram resgatados. Um morreu – vítima da burocracia dos órgãos ambientais para liberar licenças (Leia o relato completo aqui ) – e a outra (fêmea) foi liberada para viver livremente na natureza. A fêmea que foi liberada ainda recebe alimento como o filhote macho e há uma forte torcida, por parte dos envolvidos no projeto, de que os dois formem um casal e que construam seu ninho na Fazenda que os acolheu no processo de reabilitação. Quem sabe um dia contemos a história desse romance.
O projeto
O projeto “Construindo uma estratégia para a conservação da harpia na Amazônia”, desenvolvido pelo pesquisador Everton Miranda, que tem como parceiros diversas instituições do mundo. As atividades recebem financiamento da ONF Brasil, Idea Wild, Rainforest Biodiversity Group, The Explorer’s Club, Rufford Small Grants e South Wild.
*Editor do canal Fauna da Amazônia .
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