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Há alguns dias, Donald Trump falou sobre sua concorrente, Kamala Harris: “Na verdade, ela não é tão inteligente quanto ele [Joe Biden]. A propósito, também não acho que ele seja muito inteligente”.
Foi apenas mais um dos arroubos misóginos que ele e seu candidato a vice-presidente, J. D. Vance, soltaram contra Kamala. No começo de agosto, Trump havia questionado, em entrevista no congresso da Associação Nacional dos Jornalistas Negros, se sua rival era mesmo negra – e ainda afirmou que ela só tinha decidido se dizer negra por objetivos políticos.
(Lembremos que Trump foi um dos maiores propulsores da ideia de que Obama não era americano, que nem teria nascido em território dos EUA, uma das mais brilhantes campanhas de desinformação naqueles longínquos anos de 2008, época em que tudo era apenas mato e Trump era quem vinha com a enxada.)
Trump ainda chamou a candidata democrata de “horrível” (“nasty”) no programa Fox & Friends e de “vaca” (“bitch”) privadamente em diferentes ocasiões, segundo o New York Times .
Já Vance causou um furor online quando acusou Kamala de ser uma “childless cat lady”, uma mulher sem filhos obcecada por gatos (como, aliás, é esta que vos escreve). Revoltadas, feministas escreveram artigos em revistas, os jornais liberais escreveram longas reportagens sobre o tema, e até pais adotivos rechaçaram a visão tosca de Vance no Washington Post – Kamala tem dois enteados, filhos do marido, Douglas Emhoff. Pra reforçar que não é uma mulher sem filhos ou descendentes, no seu perfil do Twitter ela se autointitula como “mamala”, como eles a chamam, e reitera que é “tia”.
Claro, o barulho era tudo o que J. D. Vance queria. Tanto ele quanto seu companheiro de chapa sabem muito bem que, de todos os ódios que viralizam online, talvez o que voa mais longe é o sexismo. Pra quem vive de gerar mensagens online que devem alcançar mais pessoas, é tiro certo. Os algoritmos de todas as redes sociais impulsionam a misoginia; as Big Techs são sócias do machismo, ajudando a propagar essa mensagem e a lucrar com ela.
Há uma grande quantidade de pesquisas acadêmicas que provam exatamente isso.
Vamos falar do TikTok, rede que alcança um público majoritariamente jovem, que é amplamente disputado nesta eleição americana.
Uma pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade de Northumbria chegou à conclusão de que os comentários sexistas nos vídeos dos famosos “desafios do TikTok” receberam, em média, cerca de 60% mais curtidas do que comentários não sexistas: 604 versus 375.
A tendência não é “orgânica” e “natural”, mas impulsionada pelos mediadores da entrega da informação, conforme outra pesquisa, essa da Universidade de Kent, ressaltada em reportagem do The Guardian.
Trata-se de um estudo muito interessante. Os pesquisadores entrevistaram jovens que interagem, seja consumindo ou criando, conteúdo de radicalismo sexista online para então criar arquétipos de adolescentes que podem estar vulneráveis à radicalização, de acordo com interesses, como conteúdo sobre masculinidade ou solidão. Criaram, então, um perfil para cada um dos arquétipos e depois catalogaram mais de mil vídeos que o TikTok sugeriu na página “Para Você” ao longo de sete dias.
Inicialmente, os conteúdos sugeridos eram parecidos aos interesses iniciais de cada arquétipo. Mas, após cinco dias, o algoritmo passou a apresentar quatro vezes mais vídeos com conteúdo misógino, incluindo objetificação, assédio sexual ou desvalorização das mulheres – esses vídeos violentos foram de 13% do total para 56%.
Por ser um assunto polarizante de amplo espectro – afinal, atinge quase 100% da população, seja de um lado ou de outro –, a misoginia costuma viralizar nas redes, que valorizam justamente o que traz mais polêmica. Assim, quando uma mulher é assediada e se defende, os algoritmos apenas ajudam a ofensa a chegar a ainda mais pessoas, seduzindo ainda mais gente para prestar atenção na mensagem violenta.
É também por esse motivo que as ações das Big Techs para refrear a misoginia online são tímidas, pois no fundo no fundo vão contra seu modelo de negócios.
Só que a exacerbação da polarização ao redor do papel dos gêneros já tem consequências sociais nefastas, que muitos fingem não enxergar. Criou-se, por exemplo, o que acadêmicos chamam de a “manosfera”, uma ampla variedade de grupos masculinistas que operam na internet e fora dela. Muitos dizem lutar contra ideias progressistas (ou “woke”) sobre igualdade de gênero. Mas podem ser mais bem definidos como “supremacistas masculinos”.
Alguns são abertamente misóginos e atraem uma vastidão de apoiadores, frustrados como eles. Outros usam do anonimato dos “chans” para criar conteúdo ilegal e ameaçam cometer violência ou até estupro contra mulheres.
O sociólogo norte-americano Michael Kimmel, autor do livro Homens brancos raivosos: a masculinidade americana no fim de uma era chama essa reação emocional de “aggrieved entitlement”, algo como autoimportância ressentida.
O problema é que, hoje, o sexismo tem sido normalizado sob a liderança justamente de figuras políticas como Trump e lideranças empresariais como Elon Musk. Não sabemos, ainda, as consequências disso no longo prazo, mas estudos apontam uma realidade estarrecedora: há um “fosso de gênero” que tem se alargado em diversos países, como descreveu muito bem essa reportagem do Financial Times de janeiro, que nunca mais me saiu da cabeça.
Segundo Alice Evans, pesquisadora visitante na Universidade Stanford, a divergência de visão de mundo é tão grande entre os jovens americanos com menos de 30 anos que ela diz que a “geração Z” é composta por duas gerações, não uma.
É o que apontam dados do Instituto Gallup: durante décadas, a divisão entre liberais e conservadores se manteve igual nos EUA. Agora, mulheres entre 18 e 30 anos são 30 pontos percentuais mais liberais do que os homens – e essa diferença cresceu nos últimos seis anos. O fenômeno se repete em outros países, segundo a reportagem. Na Alemanha, os homens jovens são 30 pontos percentuais mais conservadores, enquanto no Reino Unido a diferença é de 25 pontos.
Voltando à campanha de Trump: como o republicano tem muito pouco a oferecer contra Harris além de seu racismo e sua misoginia, a campanha entrou em crise e não sabe muito bem como voltar a “pautar” o debate online – que, no mundo plataformizado, é o que importa.
Então, pode ser até que a misoginia não garanta a eleição a Trump; afinal, o mundo offline continua sendo o mundo offline, e há um limite sobre a quantidade de barbaridades que se pode dizer em comícios e entrevistas, por exemplo.
Mas, à medida que nos aproximarmos mais do dia da eleição em novembro, vamos ver ainda uma crescente e horripilante onda de ataques violentos contra Kamala, algo de uma proporção que ainda não vimos em nossas vidas.
Mais: se Kamala for eleita, estaremos diante de um mundo dominado por homens, mas cuja principal potência terá como líder uma mulher negra.
Como a sociedade americana e o mundo vão reagir, ainda vamos ver.
Fonte
O post “Crazy Cat Lady: A misoginia na eleição americana” foi publicado em 13/08/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública