Era fevereiro, dia do Festival das Lanternas—parte das celebrações do Ano Novo chinês. Shen Ming fazia os bolinhos doces yuanxiao, iguaria tradicional do festival, em sua casa, em Wuhan, na província chinesa de Hubei. De tempos em tempos, levantava a cabeça para assistir ao noticiário local na televisão e receber as últimas notícias sobre o surto da COVID-19.
Ele prestou atenção especial às novas medidas de restrição de tráfego. Diferentemente da maioria das pessoas na cidade, que ficava em casa o dia inteiro por causa do bloqueio, Shen Ming precisava sair quase todos os dias. Como voluntário, ele se encarregava de levar pessoas que vivem com HIV até os serviços de saúde para buscar seus remédios durante o surto.
Naquela tarde, Shen Ming tinha plenajado um transporte para o Hospital Jinyintan. “Tempo suficiente para comer os bolinhos doces”, pensou. Quando a água começou a ferver, o telefone tocou. Um colega do Centro de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros de Wuhan perguntou se ele poderia levar outras duas pessoas para buscar seus remédios imediatamente. Ele disse sim. “Você vê, isso me poupará muito tempo, porque eu posso levar três pessoas ao hospital de uma só vez.”
Desligou o fogão e vestiu seu traje de proteção e uma máscara. “Esquece os bolinhos doces. Eu posso cozinhá-los mais tarde”, pensou. “Além disso, posso fazer uma chamada de vídeo com meus pais enquanto como bolinhos à noite.”
Era 8 de fevereiro e fazia mais de duas semanas que Wuhan, o epicentro do surto de COVID-19, estava sob bloqueio. Um silêncio desconfortável pairava sobre a cidade, que parecia deserta, em forte contraste com a energia da metrópole antes do surto.
Shen Ming tinha planos de ano novo totalmente diferentes. Ele havia reservado um voo para sua cidade natal, na província de Zhejiang, e até comprado algumas guloseimas locais para seus pais como presentes de ano novo. “Eles estão mais acostumados à comida doce, mas eu queria que eles provassem algo diferente”, relembra.
Dois dias antes do voo, Shen Ming recebeu uma mensagem do namorado. “Como você está?” dizia a mensagem. “Recebi más notícias: meu pai foi diagnosticado com COVID-19. E minha mãe e eu também estamos com febre alta. Estamos todos a caminho do hospital e ficaremos lá se houver camas para nós.”
Shen Ming ofereceu sua solidariedade ao namorado e, no dia seguinte, foi ver seu médico. Ficou aliviado ao saber que não estava infectado, mas foi aconselhado a ficar em Wuhan para observação — ele nunca pensou que o novo coronavírus seria o motivo de seu primeiro ano novo longe de sua família.
Graças a uma determinação do Centro Nacional de Controle e Prevenção de AIDS/IST da China, as pessoas que vivem com HIV podem receber reposição de medicamentos onde quer que estejam no país. Tudo o que precisam é de uma carta do serviço de saúde onde recebem atendimento rotineiro. No entanto, neste contexto, eles tinham um desafio, pois os táxis e os serviços de transporte público foram interrompidos durante o período de confinamento.
Uma pesquisa realizada em conjunto pelo UNAIDS e pela aliança BaiHuaLin de pessoas vivendo com HIV (organização comunitária em Pequim) mostrou que quase 65% dos entrevistados na província de Hubei tiveram dificuldade de obter seus medicamentos durante o bloqueio. Com a maioria das equipes médicas concentrando-se na COVID-19, organizações de base comunitária, como o Centro de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros de Wuhan, pediram a voluntários como Shen Ming que transportassem pessoas vivendo com HIV para buscar seus medicamentos.
Como motorista voluntário, seu primeiro passageiro foi de Xangai. Wuhan acabara de ser colocada em quarentena quando esta estava prestes a sair da cidade. Para piorar, seu remédio para o HIV estava acabando. “Se o tratamento de pessoas vivendo com HIV for interrompido, a saúde delas pode sofrer. Neste contexto, eu sempre percebi um pouco do medo, da ansiedade e do desespero deles com esta situação”, conta Shen Ming.
Nesta primeira viagem, Shen Ming colocou três máscaras e abriu a janela do carro para reduzir a possibilidade de ser infectado. Sua viagem foi ao mesmo hospital que cuidava das pessoas afetadas pela COVID-19. Ele estava nervoso ao chegar ao hospital, mas, para seu alívio, a clínica de HIV e a clínica de COVID-19 estavam distantes. O Centro de LGBTs de Wuhan deu a ele um traje de proteção depois de saber que ele não tinha equipamento de proteção adequado e ele, com o tempo, ficou mais tranquilo com a situação.
Além de levá-los de carro até o serviço de saúde, ele os acompanhava até a clínica e os esperava lá até que recebessem os remédios. Depois, conversavam sobre o tema. “Então, você também é HIV positivo, como nós?”, perguntavam quase todos a Shen Ming, que não vive com HIV. “Não importa”, respondia ele. “A AIDS é apenas uma doença crônica. O atendimento às pessoas vivendo com HIV vai além da comunidade de pessoas vivendo com HIV.”
Já era tarde quando ele voltou para casa depois de levar as três pessoas ao hospital no dia do Festival das Lanternas. Com fome, ligou o fogão e cozinhou macarrão. Esta foi a primeira vez que Shen Ming não comeu bolinhos doces no Festival das Lanternas, mas ficou feliz porque encontrou o namorado, ainda que brevemente.
“Vou continuar meu trabalho voluntário até que eles não precisem de mim. Seria melhor se eu não fosse necessário “, disse ele com um sorriso no rosto.” Eu provavelmente ficarei nesta cidade. Vou comprar uma casa quando a epidemia acabar e construir um lar aqui.”
Fonte
O post “COVID-19: a história do motorista que trocou o Ano Novo Chinês pela ajuda a pacientes com HIV” foi publicado em 3rd April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ONU Brasil