Os 9.000 km² de Caatinga (e ecótonos com Cerrado) do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia, são um dos maiores contínuos de vegetação nativa do Nordeste. Uma das principais atividades de subsistência da região é a criação extensiva de caprinos e ovinos, o que faz com que haja muitos conflitos entre criadores e fauna silvestre. As poucas onças-pintadas (Panthera onca; Criticamente em Perigo de extinção) e onças-pardas (Puma concolor; Em Perigo) que ali habitam, registradas somente a partir de 2006 pela pesquisadora Claudia Campos, sofrem risco constante de serem abatidas em retaliação à predação de animais domésticos. A fim de reduzir tais conflitos foi criado em 2012, pelo Instituto para Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros, o Programa Amigos da Onça , que visa evitar o abate de onças por meio de mudanças no manejo dos rebanhos e na percepção que os sertanejos têm sobre as onças, além de coletar dados científicos para subsidiar ações de conservação.
O Programa iniciou suas atividades com diagnóstico e entrevistas na comunidade de Queixo Dantas, em Campo Formoso. No primeiro semestre de 2014, a partir de adaptações de publicações da Embrapa Caprinos e Ovinos e do Projeto Lobos da Canastra e em parceria com a Tetra Pak , foram construídos sete chiqueiros com proteção contra predadores, para pernoite dos rebanhos. Estes “chiqueiros” ou apriscos são pioneiros para manejo de caprinos e ovinos e foram tão eficientes que, em 2015, foram construídos mais 11 chiqueiros na comunidade de Lagoa do Mari, em Sento Sé. Os dados preliminares do Programa apontam que houve redução de 23,52% para 14,8% na predação dos rebanhos, após iniciado o manejo.
Em entrevista para ((o))Eco, os pesquisadores Claudia Campos, Claudia Martins, Carolina Esteves, Maísa Ziviani e Paulo Marinho esclareceram questões relacionadas à conservação das onças da Caatinga e detalharam ações e expectativas do Programa Amigos da Onça.
((o))Eco: Há estimativas de quantas onças-pardas e pintadas existem atualmente na Caatinga? E na região do Boqueirão da Onça?
Programa Amigos da Onça: Apesar dos esforços do Programa e de outros pesquisadores para mudar esse cenário, as onças da Caatinga certamente ainda são as menos conhecidas e as mais ameaçadas entre os biomas brasileiros. Estudos do ICMBio publicados em 2013 com participação da pesquisadora e coordenadora do “Programa Amigos da Onça: Grandes Predadores e Sociobiodiversidade na Caatinga”, Cláudia B. Campos, estimaram que existem cerca de 2.500 onças-pardas (Puma concolor) e apenas 250 onças-pintadas (Panthera onca) em todo o bioma, números alarmantes que colocam esses predadores em perigo e criticamente em perigo de extinção na Caatinga, respectivamente. Para se ter uma ideia, esse é o cenário mais negativo para a onça-parda em todo Brasil, enquanto que para a onça-pintada só existe situação similar na Mata Atlântica, onde a espécie também está criticamente ameaçada. Apesar de a atenção dada para reverter este cenário, e apesar de ser perceptível uma melhoria nesse sentido, a Caatinga ainda é preterida em alocação de recursos financeiros e humanos, comparativamente a outros biomas.
No caso da região do Boqueirão da Onça (área de estudo do Programa, que abrange os municípios de Umburanas, Campo Formoso, Sobradinho, Sento Sé, Juazeiro e Morro do Chapéu), norte do estado da Bahia, e hoje parte dela transformada no Parque Nacional do Boqueirão da Onça (347 mil hectares) e na Área de Proteção Ambiental do Boqueirão da Onça (505 mil ha), estimativas preliminares apontam que existem aproximadamente 200 onças-pardas e 30 onças-pintadas. Especialmente no caso da onça-pintada, esse número de indivíduos é muito baixo, tornando a população dessa espécie na região mais vulnerável a eventos extremos, como secas intensas ou mesmo à perseguição humana e à caça das suas presas, uma vez que a perda de um único indivíduo significa uma grande perda para a população total. Esse cenário é agravado pelo fato da população do Boqueirão da Onça estar praticamente isolada de outras populações de onças-pintadas da Caatinga, tornando sua recuperação mais difícil em uma situação de declínio acentuado.
Existem dados quantitativos sobre a mortalidade das onças na Caatinga? O conflito humano-fauna poderia ser considerado uma das principais causas?
Como já relatamos, o conhecimento sobre a biologia e ecologia desses animais e das pressões sobre eles ainda é muito limitado. Embora o trabalho na região com a pesquisa e conservação das onças tenha começado em 2006, uma soma de fatores como baixas densidades de indivíduos, áreas remotas e de difícil acesso, rápida mudança no tipo de uso e ocupação da região, e escassez de recursos humanos e financeiros dificultam o trabalho. Só mais recentemente temos conseguido responder algumas das nossas perguntas, mas muitas outras estão em aberto e ainda em análise.
Informações como mortalidade, por exemplo, são extremamente difíceis de serem coletadas, especialmente no caso de predadores pouco abundantes. Atualmente quando alguém abate um grande predador é comum enterrar ou queimar para não deixar vestígios, por medo de ser descoberto. A equipe do Programa encontrou, somente entre 2017 e 2018, quatro carcaças de onças-pardas e uma de onça-pintada em sua área de estudo. Nossos dados, apesar de ainda estarem sendo analisados, já indicam que o conflito humano-fauna é sim um dos principais causadores da perda de indivíduos na Caatinga. Um caso emblemático é o da Vitória , a primeira onça-parda monitorada na Caatinga com um colar com GPS e que foi abatida por um morador da região. Além da perda de mais um exemplar da espécie no bioma, a coleta de dados importantíssimos para entender como as onças vivem no semiárido brasileiro ficou prejudicada. Existem outros casos de onças-pintadas e pardas encontradas mortas em áreas do nordeste do Brasil por conta de conflitos, como ocorreu na zona rural de Jacobina, BA, em dezembro de 2019, onde uma onça-parda adulta e macho foi baleada e, durante ou após seu resgate (não se tem a informação precisa) por funcionários da prefeitura e do estado, foi a óbito.
De fato, uma das principais ameaças aos felinos é o abate de indivíduos em retaliação à predação de animais domésticos de valor econômico (bovinos, caprinos e ovinos). No entanto, outras espécies atuam como predadores dos rebanhos e nem sempre são percebidos, deixando a conta para as onças, como é o caso dos cães e porcos domésticos. Para entender melhor esse tema, a pesquisadora e integrante do Programa Amigos da Onça, Cláudia Martins, desenvolveu sua tese de doutorado a fim de investigar as dimensões humanas no conflito entre as pessoas e esses predadores na região do Boqueirão da Onça. A pesquisa contempla especialmente os criadores de cabras e ovelhas, que desenvolvem sua atividade mantendo o manejo que a tradição lhes ensinou e, por esse fato, estão em situação de maior vulnerabilidade, pela exposição, pela falta de assistência, muitas vezes pelo desconhecimento, outras vezes pela percepção de incoerência entre o que é ação do órgão ambiental face ao pequeno produtor em contraste com sua ação face ao grande empreendedor. Esse diagnóstico é necessário para fundamentar a proposição de medidas que precisam ser tomadas para melhorar a convivência homem-fauna.
Os dados preliminares do Programa apontam para a redução de predação dos rebanhos de 23,52% para 14,8% após a construção dos chiqueiros ou apriscos. Como vocês chegaram a esses números? Existe a possibilidade de eliminar completamente os ataques?
Antes da construção dos chiqueiros, fizemos um levantamento entre todos os moradores da comunidade para obter informações do perfil social, incluindo número de cabeças do rebanho, número de animais predados (possivelmente por onças), número de animais mortos (possivelmente por outros motivos), entre outras informações. Após um ano da construção dos chiqueiros refizemos a contagem dos rebanhos e entrevistamos os criadores parceiros do Programa e observamos a redução da perda do rebanho por predação, com base nas informações coletadas. Esse monitoramento é fundamental que aconteça na região, para que fiquem claras a todos os grupos (criadores, instituições da sociedade civil, pesquisadores, comunicadores, poder público, entre outros) as causas econômicas e sociais que eventualmente alimentam o conflito, para que se proponham medidas mitigatórias efetivas no tempo e no espaço. Também permite uma proximidade que estimula os residentes da região a externalizar outras possíveis motivações, não econômicas, do conflito, o que deve direcionar campanhas de educação para a conservação, para as diferentes faixas etárias, gêneros e setores presentes no Boqueirão.
Eliminar totalmente os ataques aos animais domésticos, embora seja um desejo de quem trabalha com grandes carnívoros, é praticamente impossível, especialmente em uma região onde as pessoas criam os animais soltos, para se alimentarem da vegetação nativa, e caçam intensamente as presas silvestres das onças. Mas é completamente possível diminuí-los através de ações de manejo, como a construção de chiqueiros seguros para os animais passarem a noite e é nisso que temos focado nossos esforços. Assim como ajustar o uso e ocupação do solo à realidade e vulnerabilidade atual da Caatinga.
Outra questão importante é tentar corrigir as percepções errôneas de muitas pessoas de que esses animais são sempre os principais causadores de perdas, quando muitas vezes os criadores perdem mais cabras e ovelhas por conta da seca ou de ataques de cães domésticos, por exemplo, mas tudo acaba entrando na conta das onças. De fato os ataques de onças às criações existem e precisam ser avaliados e diminuídos, mas é urgente e necessário reconhecer as causas das perdas nos rebanhos como elas realmente são e não mais atribuir a responsabilidade apenas às onças.
Qual foi a reação da comunidade quando sugeriram a utilização dos chiqueiros? Houve aceitação ou relutância?
O Programa Amigos da Onça foi pioneiro no Brasil na criação e implantação de um método de redução de predação de rebanhos por grandes felinos. Em outros países isso já vem sendo feito, alguns com condições climáticas similares e contextos socioeconômicos, institucionais e políticos igualmente desafiadores, como é o caso da província de Ladakh, na Índia, e nas Montanhas Pamir, no Tajiquistão, onde o leopardo-das-neves (Panthera uncia) é o predador visto como problema a eliminar.
Assim como tudo o que é novidade precisa de um tempo para ser aceito, também foi nossa proposta. A mudança do tipo de manejo de extensivo para semi-intensivo nunca foi imposta pelo Programa, mas sim, apresentada como convite aos moradores da região a fazer parte deste desafio. Na primeira comunidade que apresentamos nossas justificativas e fizemos o convite, 10 criadores se interessaram em participar e três deles desistiram logo em seguida. Procuramos saber os motivos da desistência e, basicamente, foi medo do desconhecido. Porém, quando estávamos construindo os chiqueiros muitos manifestaram interesse em participar, mas infelizmente não tínhamos mais verba para aumentar o número de participantes. No ano seguinte, quando conseguimos mais verba, selecionamos outra comunidade para fazer o convite e construímos mais 11 chiqueiros. Até hoje, recebemos manifestação de interesse de moradores locais em receber os chiqueiros no nosso modelo. Mas precisamos de mais recursos financeiros para dar a continuidade nesta proposta e também mostrar que o segredo não está simplesmente no tipo de chiqueiro construído, mas principalmente no tipo de manejo utilizado.
Quais os próximos passos e expectativas do Programa para a conservação das onças na região do Boqueirão?
Como todo trabalho de conservação com grandes carnívoros a demanda por esforços de tempo, investimento e pessoal é grande, há muito a ser feito e estamos dispostos a continuar com a proposta do Programa, fazendo o possível pela conservação das onças no Boqueirão da Onça. Como a água é o recurso mais valioso em um ambiente semiárido, tanto para os animais, quanto para as populações humanas, entre os próximos passos está a busca de recursos para deixar os chiqueiros em pleno funcionamento, o que inclui a instalação de um sistema de captação, armazenamento e distribuição de água dos chiqueiros já construídos pelo Programa em duas comunidades do Boqueirão da Onça, objetivando melhorar as condições de manejo das criações, facilitar a vida dos criadores e suas famílias e reduzir a predação dos animais domésticos.
Pretendemos também expandir a construção de chiqueiros à prova de ataques para mais comunidades do Boqueirão da Onça, assim como continuar os estudos sobre a ecologia e biologia destes dois grandes felinos e, ainda, começar as ações de educação para a conservação destas espécies e da região, incluindo abordagens da área social, principalmente na mudança de hábitos e promoção de comportamentos favoráveis à coexistência com os predadores.
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O post “Construindo chiqueiros para salvar as onças da Caatinga” foi publicado em 12th January 2020 e pode ser visto originalmente na fonte ((o))eco