Texto: Lucio Lambranho
Edição: Maurício Angelo
Todas as fotos por Isis Medeiros , de Araçuaí
Um projeto de lei da Prefeitura de Araçuaí, em Minas Gerais, tenta reduzir os limites da APA (Área de Proteção Ambiental) Chapada do Lagoão e tem sido alvo desde o começo deste ano de críticas de ambientalistas porque deve atender aos interesses das mineradoras , incluindo o grupo americano Atlas, que recebeu prioridade do governo mineiro antes mesmo da criação da filial da empresa, como mostramos na primeira matéria.
O projeto, que foi tema de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e pode reduzir a área de proteção em 23%, ainda tramita na Câmara de Vereadores da cidade, embora a pressão de ambientalistas e do Ministério Público tenha retirado o caráter inicial de “urgência urgentíssima” pedido pelo prefeito.
O ponto central é que não houve consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, como determina o Decreto Federal 10.088/2009, quando o Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT, das comunidades quilombolas de Córrego do Narciso, Giral, Malhada Preta, Água Branca e Santa Rita do Piauí, todas diretamente impactadas pelo uso dos recursos naturais da APA e que devem ser afetadas pelos projetos da Atlas e da cobiça internacional pela região.
“A alteração da delimitação da área da APA Chapada do Lagoão pode estar relacionada com interesses de empresas ligadas à mineração de lítio. Observa-se no mapa que há polígonos de processos minerários de lítio com sobreposição na área atual da APA, e em destaque, o mapa apresenta os polígonos dos processos minerários de lítio da empresa Atlas Lithium com projeção da instalação das cavas a céu aberto conforme o EIA/RIMA apresentado no licenciamento ambiental em tramitação”, destaca (veja imagem abaixo) o Manifesto em Defesa da APA do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro.

Segundo os dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), a Atlas Lítio Brasil Ltda tem 14 processos registrados em Araçuaí. Destes, cinco estão na área da APA, sendo que três estão citados em contratos com outros investidores estrangeiros do projeto, mas apenas um deles está incluído na licença operacional iniciada em 2023 e concedida em outubro de 2024.
Os cinco processos da Atlas na região da APA fazem parte de um levantamento realizado por João Luiz Jacintho, professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e especialista em Geoprocessamento. A sobreposição das áreas também foi citada na análise de mapas de processos minerários pelo Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro em um documento técnico contrário à redução da área de preservação ambiental proposta pela prefeitura local.
“Com base no Projeto de Lei apresentado pela prefeitura municipal e as inúmeras notícias do interesse de exploração da APA Chapada do Lagoão por empresas mineradoras, analisei os processos cadastrados na ANM, nas regiões que seriam modificadas com a nova delimitação (entre as curvas de nível de 500 e 575m). Comparando as informações do portal SIGMINE e o projeto anexado pelo Prefeito (Tadeu Barbosa, do PSD) no PL, identifiquei quase 80 processos ativos, entre eles alguns que já possuem autorizações para começar a operar”, explica João Jacintho.
Segundo a análise do professor, dos 75 processos minerários situados no entorno da APA ou em sobreposição com a área de preservação municipal, 30 deles seriam beneficiados com a redução da área de proteção entre as curvas de nível 500 e 575.
Foto de destaque: Área da APA pode ser afetada pelo interesse da Atlas e outras mineradoras / Isis Medeiros


Sobreposição de projetos minerários atingem área pequena, mas relevante, da APA
Em um dos trechos do parecer do órgão do governo mineiro que atendeu o pedido da Atlas é informado que a área de exploração “não intercepta nenhuma unidade de conservação, nem plano de amortecimento destas, apesar de estar próxima aos limites da APA Chapada do Lagoão que constitui uma unidade de conservação municipal”.
Mas em outro, admite uma “pequena sobreposição”. “Todavia, a APA Chapada do Lagoão está distante cerca de 43 metros da área do projeto. Embora a APA não seja interceptada pelo empreendimento, existe uma pequena sobreposição com a área de influência direta (AID) dos impactos decorrentes da atividade”.
O mesmo documento reconhece impactos na fauna da APA, marcada pela transição entre os biomas Cerrado e Caatinga, e minimiza os impactos na flora por se tratar de “área já antropizada com floresta em estágio inicial de regeneração”:
“Apesar dos estudos e da própria Semad reproduzir o discurso de ‘área antropizada, o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) em que pede a expansão do projeto menciona, na página 42, que: 52% são de Floresta Estacional Decidual em estágio médio e avançado + 17% Floresta Estacional Decidual em estágio inicial + 10% áreas alagadas. Ou seja, 79% da ADA do empreendimento é constituída por vegetação natural. Acho esse um dado bastante relevante”, contesta Marcos Cristiano Zucarelli, doutor em Antropologia Social, especialista em licenciamento ambiental e pesquisador do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG).
Zucarelli faz parte de um grupo de pesquisadores envolvidos em um estudo em andamento sobre a região e que envolve quatro instituições: a London South Bank University (Reino Unido), o Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA – Universidade Estadual de Montes Claros), o Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro (Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri) e o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA – Universidade Federal de Minas Gerais).
O projeto de pesquisa avalia justamente a exploração do lítio na região com o título “Local, Indigenous, Quilombola and Traditional Communities and the construction of the ‘Lithium Valley’ in Minas Gerais, Brazil: Empowering silenced voices in the energy transition (LIQUIT)”.

Norma foi alterada em MG para rebaixar potencial poluidor do lítio
Entre as análises do grupo, está o que o pesquisador classifica como a “questão macro política”: a alteração da legislação ambiental feita pelo governo de Minas Gerais, especificamente para o licenciamento ambiental da mineração do lítio.
Segundo o especialista, enquanto os governos locais tentam fazer a parte deles, o governo estadual já estava mudando as leis desde 2021 com a publicação da Deliberação Normativa Copam nº 240/2021.
Pela norma, a atividade de pilha de rejeito/estéril para pegmatitos (rocha de onde se extrai o lítio) deixou de ser considerada como de grande potencial poluidor (como estava definida na DN 217/2017, anterior) e passou a ser classificada como de médio potencial poluidor/degradador.
“Com essa mudança, nenhum licenciamento para pilha de rejeito do lítio passará por um licenciamento ambiental mais restritivo, onde é exigido um tempo maior de estudos sobre a viabilidade ambiental do projeto no âmbito de um licenciamento trifásico, onde as três licenças (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação) são analisadas separadamente. Essa mudança viabiliza licenças concomitantes, sem tempo adequado para avaliação dos impactos ambientais, alternativas tecnológicas e/ou locacionais, pois resulta em licenças ambientais concomitantes, concedidas em prazos curtíssimos que prejudicam a análise da viabilidade socioambiental e também o exercício do controle social”, explica Zucarelli.
Sobre a existência da APA, a sobreposição e os impactos ambientais do empreendimento, a Semad alega, no entanto, que o parecer único referente ao processo de licenciamento ambiental considera a existência da APA Chapada do Lagoão, “mas esclarece que a área diretamente afetada (ADA) pelo empreendimento não intercepta a APA nem qualquer outra unidade de conservação ou zona de amortecimento”.
“De acordo com a Lei nº 9.985 de 2000, as Áreas de Proteção Ambiental (APA) não possuem zona de amortecimento. A análise de impactos ambientais leva em consideração a área de influência direta (AID), sem contradição no processo de licenciamento”, completa o comunicado.
Já no processo em que a empresa solicita a expansão do empreendimento é informado no seu Relatório de Impacto Ambiental (Rima) que parte das operações está dentro da APA (veja as imagens mais abaixo). Ou seja, vai além da sobreposição citada no primeiro licenciamento já concedido.
“Apesar da AER [Área de Estudo Regional] estar inserida predominantemente em uma região de importância biológica muito alta, não existe nenhuma Unidade de Conservação de Proteção Integral nela, mas é registrada a ocorrência da APA (Área de Proteção Ambiental) Chapada do Lagoão, que está parcialmente inserida na ADA, tendo apenas 0,08% da sua área ocupada pelo empreendimento”.
“Não é verdade quando a Semad alega que a ‘área diretamente afetada (ADA) pelo empreendimento não intercepta a APA’”, diz Zucarelli ao mencionar o trecho do documento encontrado pela reportagem onde a empresa admite que 0,08% desta área será ocupada pelo empreendimento. Isto seria equivalente a cerca de 20 hectares e do tamanho da cava do projeto.
O pesquisador também pondera que outros aspectos importantes, mesmo sendo uma área pequena, devem ser considerados no pedido de expansão do projeto.
“O estudo contratado pela Atlas tenta diminuí-la, reduzindo-a a uma fração percentual. Por menor que fosse a área diretamente atingida, o importante seria saber qual é a função que essa ‘fração’ exerce para a região? O que existe nela especificamente? Qual estrutura do empreendimento ocupará essa área? É preciso averiguar a fundo o nível de comprometimento dos corpos hídricos, dispersão de fauna e flora caso essa ‘fração’ seja destruída pelo empreendimento. Isso não está exposto no EIA/RIMA”, questiona Zucarelli.
Este segundo licenciamento ambiental da Atlas tem um pedido de audiência pública protocolado desde 9 de janeiro deste ano pelo MPMG, mas ainda não foi realizada.

Semad defende que mineração pode coexistir com a unidade de conservação
Segundo a Semad, no entanto, a APA permite o uso sustentável, o que significa que empreendimentos podem coexistir com a unidade de conservação, “desde que compatíveis com o plano de manejo da unidade”. “A avaliação da compatibilidade do projeto com a APA é realizada pelo órgão gestor da unidade de conservação”, diz.
Além disso, sustenta o órgão ambiental estadual, que apesar da empresa admitir que parte do seu projeto de expansão está dentro da APA em 0,08%, “a área de lavra autorizada não se sobrepõe à APA ou aos territórios de comunidades quilombolas, estando restrita à poligonal do processo da ANM”.
“A análise da compatibilidade do projeto com o plano de manejo de uma unidade de conservação é de competência do órgão gestor da APA, que pode se manifestar no processo de licenciamento ambiental, conforme o Decreto nº 47.941/2020 e a Resolução CONAMA nº 428/2010”, afirma a Semad.
Além disso, o órgão diz que realizou vistoria técnica em 11 de outubro de 2023 e, recentemente, em 20 de fevereiro de 2025, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) visitou as áreas de ampliação para as avaliações iniciais.
E acrescenta que não há prazo definido para sua realização da audiência pública solicitada pelo MPMG, mas que “a empresa está seguindo as normas para convocação e divulgação prévia que “já iniciou as diligências necessárias para a organização do evento”.
Leia a resposta completa da Semad.
O Observatório da Mineração não conseguiu retorno de posicionamento da Atlas Lítio após inúmeros contatos com os seus representantes nas últimas semanas. O espaço segue aberto para manifestação.

Empresa disse que comunidades quilombolas não existiam no entorno do projeto de extração; Projeto da prefeitura ignorou aval do comitê de bacias mineiras
No caso das comunidades quilombolas, o parecer do primeiro licenciamento diz que atendeu apenas a resposta da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE) de que “o empreendedor, através de equipe multidisciplinar, realizou diagnóstico da situação socioeconômica por meio de consulta à Comunidade Quilombola de Girau e Setor Malhada Preta, conforme demonstrado no documento analisado”.
O texto não esclarece se as comunidades foram consultadas previamente, mas no caso do projeto de lei que reduz a APA não houve nenhum tipo de consulta, como afirma o MPMG. O mesmo parecer diz que num primeiro momento a empresa chegou a dizer que “inexistem comunidades quilombolas na ADA do empreendimento”.
Por enquanto, o governo mineiro não esclareceu se houve consultas às comunidades quilombolas. “A consulta às comunidades quilombolas competiu à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese). O licenciamento ambiental recebe a manifestação da Sedese sobre o tema, que é incorporada no parecer único”, diz a Semad. A Sedese, assim como a Sede, não respondeu até o momento os questionamentos da reportagem sobre essa questão.
Segundo Marcos Zucarelli, pelos dados coletados em campo até agora por ele e outros pesquisadores as comunidades quilombolas não foram consultadas. “Acredito que pelo fato de não ter sociólogo e nem antropólogo na equipe de consultoria que elaborou o EIA/RIMA já antecipa que a consulta aos povos e comunidades tradicionais não foi feita. Me parece ainda que outra comunidade quilombola, que está próximo à ADA, a comunidade de Córrego do Narciso, sequer foi mencionada”, afirma o pesquisador.
“Após a divulgação de notas das entidades e das informações técnicas disponibilizadas por grupos de pesquisa, fica evidente o interesse minerário na área que está sendo retirada da APA da Chapada do Lagoão. Além disso, é gravíssima a forma como a Prefeitura está conduzindo o processo, atropelando direitos de comunidades tradicionais e ignorando até mesmo a recomendação do MPMG”, avalia Danilo Borges (PT), vereador de Araçuaí.

Segundo o vereador, o mais prudente seria a retirada do projeto de lei e a convocação do MPMG, Ministério Público Federal (MPF) que trata dos direitos das comunidades quilombolas, universidades, Instituto Federal, Diocese de Araçuaí, Cáritas e das comunidades para um debate sobre a melhor gestão e preservação da área. “Esse diálogo deve garantir tanto a proteção das nascentes quanto a manutenção do trabalho e da renda dos moradores, sem interesses ocultos, mas com transparência e compromisso democrático”, diz o vereador.
O projeto da Prefeitura de Araçuaí também não ouviu o Conselho Gestor da APA, criado em 2022, que é contra a redução da unidade de proteção. E não foi submetido, como parte da Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha, à avaliação do Comitê de Bacias Hidrográficas do Estado de Minas Gerais. É o que diz um parecer que a reportagem teve acesso do engenheiro florestal e coordenador da equipe de elaboração do plano de manejo da APA, Kaíque Mesquita Cardoso.
“A estratégia da Atlas tem caminhado para viabilizar esse primeiro empreendimento porque depois vai pedir a ampliação do que já foi concedido. E essa ampliação implica justamente nesse avanço para dentro da Chapada do Lagoão. A questão da água é gravíssima porque as famílias já vivem um contexto de escassez hídrica ou de conflito hídrico. E resolver um conflito hídrico com caminhão-pipa não é uma opção digna”, avalia Aline Weber Sulzbacher, geógrafa e professora da UFVJM.
Em resposta ao Observatório da Mineração, a prefeitura de Araçuaí afirmou que retirou o projeto em tramitação de urgência por “necessidade de maior debate e análise do projeto” e alegou que a motivação seria que os atuais limites da APA interferem em um munícipio vizinho, o que também é questionado. A prefeitura de Araçuaí “entende que o Projeto de Lei preserva a autonomia política do Município de Caraí, já que parte da APA, tal como foi criada, adentra indevidamente no território de Caraí. Assim, inobstante a força dos direitos dos povos originários, os quais o Município de Araçuaí busca incansavelmente assegurar e preservar, afigura-se inegável que, no sobrepeso entre as duas situações jurídicas, a prerrogativa constitucional de autonomia dos entes federados possui maior relevância. Com relação a possíveis alterações, estamos analisando a necessidade”, disse a nota do prefeito Tadeu Barbosa do PSD.
Fonte
O post “Comunidades quilombolas ignoradas e tentativa de reduzir área protegida: Atlas Lítio está no centro da corrida pelo “ouro branco” em MG” foi publicado em 20/03/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração