Terça passada, a Câmara dos Deputados aprovou, por 238 votos a favor e 192 contra, a urgência do PL 2630, o projeto de lei das Fake News, que a extrema-direita chama de PL da Censura. Hoje a Câmara pode aprovar o PL.
Lógico que o que vimos durante a semana foi todo tipo de mentira para barrar o PL. Por exemplo, a Meta, empresa que controla o Facebook, Instragram e WhatsApp, criou e divulgou a fake news de que o PL proibiria
versículos bíblicos .
Mas o que aconteceu ontem ultrapassou qualquer limite: as big techs se uniram para censurar, manipular e mentir na cara dura contra o PL 2630. O Google, além de só direcionar para conteúdo (da direita) contra o projeto, também incluiu uma frase no site de busca, “O PL das fake news pode piorar sua internet”. O Twitter removeu a hashtag PL 2630 pelas Crianças, não permitiu várias mensagens favoráveis ao PL, e ainda deslogou um monte de gente, que ficou um tempão sem conseguir acessar a plataforma com a sua própria conta. O Tik Tok derrubou vídeos em defesa do PL. E por aí foi.
O negócio foi tão absurdo que o ministro da Justiça
Flavio Dino avisou que iria encaminhar o assunto para ser analisado pela Secretaria Nacional do Consumidor para ver se as empresas não estavam realizando práticas abusivas.
Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL, disparou : “As artimanhas que essas big techs utilizam para combater esse projeto torna evidente a necessidade de regulação dessas empresas”.
É um perigo a ação censora das plataformas. Se podem mentir para tentar derrubar um projeto de lei que corre no parlamento de um país, podem muito bem tentar fazer o mesmo para derrubar um governo democrático que vá contra seus interesses. Elon Musk é especialista nisso, aliás.
E por que o PL 2630 é tão importante? Bom, o Fantástico deu uma boa amostra no domingo ao exibir uma reportagem longa (quase 20 minutos; longa, pro padrão televisivo) e chocante sobre o aplicativo Discord, tão popular entre crianças e adolescentes. O que rola solto por lá? Automutilação, tortura e morte de animais, incentivo a massacres em escolas, todo tipo de ódio…
Algo muito comum é meninas serem vítimas de doxxing (que é quando descobrem dados pessoais, endereço residencial etc) para em seguidas serem chantageadas a fazer o que um grupo de neonazis mirins mandam. Fica aqui a minha súplica desde já: por favor, garotas, desobedeçam! Falem com seus pais, professoras, procurem a polícia. Não sejam alvos e nem cúmplices da crueldade recreativa que impera nesses recintos.
O Fantástico entrevistou a advogada e professora da UnB Ana Frazão, que pontuou que o Brasil tem um estatuto que obriga a proteção da criança. Portanto, nenhuma interpretação das redes sociais pode fugir do dever de proteger a infância.
Uma pesquisadora contou ao repórter do programa que muito desse conteúdo violento não nasce necessariamente no Discord, e circula impunemente em várias outras plataformas, como Twitter e Tik Tok. O Fantástico entrou em contato com o Twitter para pedir esclarecimentos e recebeu a resposta padrão de Elon Musk: um emoji de fezes. Esse símbolo da plataforma dialoga com o que é chamado de “shitposting”, o conteúdo de ódio que os usuários juram que é brincadeira.
Eu nunca tinha ouvido falar no Discord até o final de 2020. Foi quando constatei que algumas das ameaças por telefone que estava recebendo partiam de adolescentes de 13, 14 anos, não de adultos. Era uma nova geração de misóginos querendo ser aceita pela “velha guarda” através de ataques a uma inimiga em comum.
Eu nunca tinha ouvido falar, mas estudos provaram que o Discord foi o canal usado para organizar a marcha da extrema-direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017, que uniu supremacistas brancos e neonazis. Sem o Discord, Charlottesville não teria existido.
Uma excelente matéria da Agência Pública aponta que, apesar do Brasil ser o segundo maior público do Discord no mundo, a plataforma não tem representação legal no país e, assim, demora ou ignora as notificações da Justiça. Além disso, como lembra Thiago Tavares, presidente da SaferNet, embora as
regras do Discord proíbam discurso de ódio e pornografia infantil, não há moderação, muito menos em português. Respondendo à Pública, a plataforma alegou: “Qualquer tipo de conteúdo ou atividade que coloque em risco ou sexualize crianças é terrível, inaceitável e não tem lugar no Discord ou na sociedade”. Compare essa resposta com a reportagem do Fantástico.
Segundo o pesquisador Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e parte do Observatório da Extrema Direita (OEB), “Redes como o Discord têm sido utilizadas como plataforma para articulação de grupos neonazistas. Eles utilizam as redes não somente como meio de propaganda de seus ideais, mas também como meio de formação. Eu sempre insisto nisso: existe um percurso formativo do jovem neonazista, ele tem contato, ele dialoga, ele produz conteúdo, ele recebe conteúdo, ele traduz conteúdo e ele exporta conteúdo. Existe uma rede estruturada, uma rede onde esse indivíduo vai se encontrar e se formar”. O mesmo método utilizado para a formação de neonazis pode ser visto na formação de mascus.
Hoje, pela lei (o marco civil da internet), as plataformas não são responsáveis pelo conteúdo divulgado nelas. Só são obrigadas a remover algo do ar sob ordem judicial. O debate sobre regulamentação está longe de ser exclusividade no Brasil. E as big techs agiram dessa forma histérica como estão agindo agora quando a regulação foi votada na Austrália (elas perderam).
Após mais de três anos de discussão, com todas as plataformas e a extrema-direita contra, é hoje que a Câmara pode votar o
projeto de lei que criminaliza as fake news de contas robôs, determina que as plataformas sejam transparentes quanto à moderação e seus algoritmos, e que elas sejam rápidas para remover e reduzir práticas ilícitas como terrorismo, crimes contra crianças e adolescentes, racismo, e violência contra a mulher. Não me parece pedir demais que essas empresas bilionárias atuem conforme manda a Constituição brasileira.