DO OC – A caixa d’água do Brasil está secando, com impactos potencialmente graves para a principal fronteira agrícola e para a região de maior crescimento populacional do país.
Um estudo publicado na última terça-feira (11) no periódico Scientific Reports indica que o Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, teve reduções importantes nas suas chuvas nos últimos 30 anos. A precipitação anual entre 1991 e 2021 declinou de maneira geral na região em comparação com 1960 -1990, bem como o número de dias chuvosos no ano.
Isso impacta diretamente grandes polos agrícolas, como Barreiras e Correntina, na Bahia, que perderam 15,2% e 11,7% das chuvas , respectivamente, e a capital federal, que teve 1,5% de redução na precipitação média no período – e já racionou água na década passada. O oeste baiano é uma das regiões que mais perderam chuva – e ganharam soja – nas últimas décadas.
De 70 locais analisados, 54 tiveram declínio nas chuvas ao longo do ano, enquanto 16 tiveram aumento. Na estação seca, entre junho e setembro, e no começo da estação chuvosa, em outubro e novembro (meses de inverno e primavera), a queda na quantidade de chuva e no número de dias chuvosos chega a 50%.
As conclusões alarmantes são de um grupo de pesquisadores liderados pelo ecólogo Gabriel Hofmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os cientistas coletaram dados de estações meteorológicas distribuídas por todo o bioma e que registram chuva, temperatura e outros parâmetros desde 1960. Os dados receberam tratamento estatístico e foram cruzados com um modelo climático global, que permite capturar a influência de fatores como a circulação do ar sobre os oceanos.
A análise confirmou aquilo que os cerratenses mais velhos já sabiam: na maior parte do Cerrado a temporada de chuvas tem demorado mais a chegar. Isso impacta a recarga dos aquíferos e reduz a disponibilidade de água nos reservatórios que abastecem cidades como Brasília. Em 2017, a capital federal entrou em racionamento de água depois que suas duas barragens ficaram vazias em plena estação chuvosa.
Dados do MapBiomas já haviam mostrado que o Cerrado sofreu uma redução de 68 mil hectares em sua superfície de água entre 1985 e 2021. “É uma área maior que Porto Alegre, só que é subestimada, porque você teve essa perda mesmo com o aumento do número de grandes barragens na região nesse período”, diz Hofmann.
O pesquisador gaúcho, que fez seu doutorado em ecologia em Mato Grosso e voltou a Porto Alegre para estudar climatologia, diz que há duas causas principais para o sumiço gradual da chuva no Cerrado. O primeiro é o desmatamento do bioma, que já perdeu 50% de sua vegetação nativa, sumindo proporcionalmente mais depressa que a Amazônia.
Diferentemente da floresta amazônica, a savana do Brasil central tem um limite de desmatamento legal muito mais alto: pelo Código Florestal, 80% da área de propriedades rurais no Cerrado pode ser desmatada – 65% no caso do Cerrado dos Estados da Amazônia Legal. Além disso, as terras no bioma são sobretudo privadas e as áreas protegidas são ínfimas. Essa permissividade ambiental e a topografia favorável à agricultura mecanizada tornaram o Cerrado a principal fronteira de expansão da agricultura, na região entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o chamado Matopiba.
O desmatamento reduz drasticamente a evapotranspiração, ou seja, o “suor” das árvores, algo que no Cerrado ajuda a manter alguma umidade mesmo nos meses de seca. Hofmann e colegas já haviam demonstrado em 2021 que o bioma está ficando mais quente e seco por conta do desmate. “A vegetação umidifica o Cerrado. Se você tira a vegetação esse efeito some”, disse o cientista.
A esse efeito soma-se um outro, que ocorre a milhares de quilômetros da savana: o aquecimento da Terra vem alterando o regime de ventos no Atlântico Sul e espantando a umidade para longe do Cerrado.
O clima das regiões tropicais, como o Brasil central, é fortemente influenciado por um fenômeno atmosférico chamado Células de Hadley. Estas células se formam devido ao gradiente de temperatura e de pressão entre a zona equatorial e as áreas temperadas, dando origem a movimentos de convecção do ar que sobe para a alta atmosfera no equador e desce nos sub-trópicos. As células de Hadley causam a formação de uma zona de alta pressão atmosférica sobre o oceano, chamado “anticiclone” pelos climatologistas. Durante o inverno, quando o anticiclone está muito fortalecido,e posicionado junto á costa brasileira, a alta pressão inibe as chuvas no Brasil Central. No verão ele enfraquece e se afasta para longe da costa, permitindo a entrada da umidade que causa as chuvas.
Com o aquecimento da Terra, a diferença de temperatura entre equador e polos intensifica e expande e as células de Hadley. Os ventos verticais que despencam sobre a zona tropical ficam mais fortes, impedindo a formação de nuvens de chuva. Mal comparando, é como se um campo de força fosse colocado em volta do Cerrado, rebatendo os ventos úmidos do Atlântico para bem longe – o noroeste amazônico e a bacia do Prata, por exemplo. Esse processo é mais forte no inverno e na primavera, períodos em que o anticiclone está bombando. “Por mais que haja evapotranspiração não se formam nuvens, porque o vento de cima para baixo não deixa”, afirma Gabriel Hofmann.
“A chuva média está diminuindo, e agora a gente deu um passo a mais para explicar como.” Como o Cerrado concentra as nascentes das principais bacias hidrográficas do país, o dano econômico, ecológico e humano é potencialmente imenso nos próximos anos, em especial para o Pantanal, bioma que depende 100% das águas do Cerrado.
E isso porque o grupo ainda não olhou para um outro grande controlador do clima no país: a Amazônia, que também contribui com umidade para o Cerrado e o restante da América do Sul. “Embora prováveis, os efeitos do desmatamento maciço na Amazônia sobre a chuva no Cerrado ainda são desconhecidos”, escrevem os autores. E continuam:
“Nossos resultados e as projeções de cenários futuros geradas por outros estudos põem em questão a manutenção do modelo de produção agrícola praticado atualmente no Cerrado, em particular no que diz respeito à agricultura industrial.”
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