“Vivi muitos anos sofrendo violência, sem ao menos perceber”. “Não entendia que os gritos e palavras rudes eram também um tipo de violência”. “O que mais me doía era quando ele usava meus filhos contra mim”. “Nós mulheres somos penalizadas por tentar manter a família unida, por tentar fazer o certo”.
As autoras destas frases são refugiadas e migrantes venezuelanas que participaram, no último dia 10, em um dos eventos promovidos pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e parceiros para marcar o fim dos “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres” em Boa Vista, capital de Roraima.
No campus da Universidade Federal de Roraima (UFRR), mulheres empreendedoras, indígenas, artesãs, artistas e mães receberam a comunidade local com uma agenda para promover o enfrentado à violência de gênero. Nesta atividade, o público se divertiu com coral infantil, leitura de poemas, teatro, desfile de moda, performances de dança, exposição de fotos e de artesanato Warao.
Em uma situação de deslocamento forçado, a violência de gênero é um tema presente que envolve ações de prevenção e enfrentamento. E quanto maior a vulnerabilidade de mulheres meninas e populações LGBTI nesta situação, maior é a suscetibilidade delas à violência.
Sendo assim, o ACNUR apoia e promove os “16 Dias de Ativismo”, uma campanha internacional que começa no dia 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vai até 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
As ações em Roraima foram voltadas para mulheres refugiadas e migrantes vindas da Venezuela. Cerca de 500 pessoas cruzam diariamente a fronteira da Venezuela com o Brasil em Pacaraima, no norte do estado, e muitas delas são mulheres e meninas, acompanhadas de seus familiares ou se deslocando sozinhas.
No campus da UFRR, mulheres que participaram de oficinas promovidas pelo ACNUR e pela ONU Mulheres ao longo dos “16 Dias” expuseram vasos e bonecas de cerâmica inspirados em ícones feministas estudadas pelo grupo, como a cantora norte-americana Nina Simone, a pintora mexicana Frida Kahlo e as ativistas brasileiras Marielle Franco e Sônia Guajajara.
Julia* participou do curso e conta como isso mudou sua percepção sobre violência. “Depois de conhecer a história destas mulheres, percebi que tenho o poder e a força para dizer não. Não tenho que sofrer calada. Sou forte sim, mais forte do que acreditava ser”.
Para Angelica Uribe, oficial de proteção do ACNUR, as mulheres refugiadas e migrantes estão em maior vulnerabilidade não apenas por causa da situação de deslocamento, mas também porque perdem toda a sua rede de proteção.
“Não há por perto parentes, amigos ou vizinhos que acompanhem essas mulheres e as façam se sentir seguras. Elas estão em um novo ambiente, não conhecem ninguém, têm que construir novos relacionamentos. Isso traz riscos por causa de sua vulnerabilidade e de um desequilíbrio de poder”, explica Uribe.
Como parte do processo de deslocamento, muitos homens perdem seu status de provedor e podem se tornar violentos. Os deslocamentos forçados geram situações de angústia e estresse, que também contribuem para aumentar a violência e as agressões (inclusive domésticas) contra mulheres e meninas.
A venezuelana Fatima* conta que foi vítima de violência por muito tempo em seu país e que sua vida mudou ao chegar ao Brasil. “Aqui tem a Lei Maria da Penha. No meu país, a gente denunciava e a polícia nos mandava de volta para casa, com o marido. Quando as mulheres venezuelanas perceberam que a polícia no Brasil leva o homem agressor para a delegacia e pode fichá-lo, passamos a denunciar mais e mais. Eles têm mais medo agora.”
Jovens LGBTI+ também puderam aproveitar das atividades dos “16 Dias” para realizar performances artísticas e desfile de moda. Para Norberto, que está apenas há dois meses no Brasil, participar dessa campanha foi um privilégio.
“Eu sofri xenofobia aqui no Brasil, mas não por culpa dos brasileiros. Mas encontrei espaços de acolhimento como esse aqui hoje que realmente fizeram a diferença para mim”, disse Norberto, que vive no abrigo Rondon 3 e foi aplaudido com entusiasmo após sua performance de dança.
Campanha na fronteira
As ações promovidas pelo ACNUR também chegaram à fronteira do Brasil com a Venezuela. Em Pacaraima, muitas atividades foram desenvolvidas pelo ACNUR e outras agências da ONU com pessoas refugiadas, migrantes e a população local: rodas de conversa, cine-debates, conversas de sensibilização sobre violência doméstica, show de talentos e desfile de moda.
Destaque para o curso de defesa pessoas para venezuelanas e brasileiras, coordenado pelo ACNUR em parceria com a Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI), Polícia Militar, Polícia Civil e a Academia de Jiu-Jitsu de Pacaraima. As aulas foram divididas em três dias, contemplando os direitos das mulheres no Brasil e práticas de defesa pessoal.
As crianças também não ficaram de fora e participaram de diversas atividades, entre elas curso realizada na Escola Municipal Casimiro de Abreu sobre prevenção de abuso sexual infantil. A atividade compreendeu um vídeo interativo sobre o tema, um debate com os alunos e professores, além pinturas baseadas nas percepções que as crianças tiveram. As pinturas artísticas feitas pelas crianças serão expostas na cidade durante as próximas semanas.
“O ACNUR tem a política de garantir que as pessoas que vivem em um ciclo de violência ou sobreviventes de violência tenham acesso a serviços de proteção. Estamos comprometidos em apoiar e acompanhar essas pessoas”, informa Angelica Uribe. “Além disso, a Agência da ONU para Refugiados tem um mandato de proteção referente à proteção dos Direitos Humanos. E a violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos”, completa a funcionária.
As atividades do ACNUR para promover os “16 Dias de Ativismo” em Roraima contaram com o apoio da União Europeia, que investe no fortalecimento da resposta aos venezuelanos na região norte do Brasil por meio de projetos que promovem a proteção de populações em maior situação de vulnerabilidade – inclusive a prevenção à violência de gênero.
obre os 16 Dias de Ativismo – A campanha começou em 1991 a partir de esforços do Centro para Liderança Global das Mulheres e foi, ao longo dos anos, sendo desenvolvida por diferentes agências das Nações Unidas. São elas ONU Mulheres, ACNUR, OIM, UNICEF e UNFPA, além de importantes parceiros da sociedade civil.
A campanha é uma estratégia de mobilização de indivíduos e organizações, em todo o mundo, para engajamento na prevenção e na eliminação da violência contra as mulheres e meninas. Embora os nomes, horários e contextos possam diferir, mulheres e meninas sofrem universalmente estupro, violência sexual e abuso, em tempos de paz ou guerra.
No Brasil, a campanha teve como lema “Pinte o mundo de laranja: geração igualdade contra o estupro!”.
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