Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira. Imagem do Satélite CBERS-4A, produzido e operado pelo INPE.O gasto de R$ 49,7 milhões na compra de imagens de satélite de alta resolução para monitoramento e combate a ilícitos ambientais no país pela Polícia Federal gerou polêmica ao longo do mês de setembro. Vários aspectos da decisão da PF pelo uso de imagens privadas são questionados por especialistas em sensoriamento remoto e também pelo Tribunal de Contas da União, que tem investigação em curso sobre a compra.
O contrato está em vigor desde a última semana. As imagens serão adquiridas da empresa americana Planet Labs, Inc, com sede na Califórnia, e fornecidas localmente pela empresa brasileira Santiago & Cintra Consultoria (SCCON), com sede em São Paulo. Além de imagens de alta resolução, o contrato da PF, de número 18/2020, também prevê o fornecimento de serviços pela SCCON.
((o))eco elencou os principais pontos de questionamentos e como respondem os envolvidos. Confira:
Necessidade de contratação de imagens privadas
O principal questionamento de especialistas em sensoriamento remoto é sobre a necessidade de contratação de uma empresa privada para fornecimento de imagens de satélite, sendo que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) desenvolve pesquisa em monitoramento de desmatamento e queimadas há cerca de 40 anos.
Tal questionamento gerou uma ação no Tribunal de Contas da União, por “possíveis indícios de irregularidades” no contrato. O TCU chegou a suspender a contratação por medida cautelar no dia 18, mas voltou atrás três dias depois, 21 de setembro, revogando a decisão tomada anteriormente.
Apesar da revogação da cautelar, o processo segue aberto no TCU e INPE e Santiago & Cintra Consultoria devem ser ouvidos nos autos do processo para que Tribunal possa averiguar a real necessidade da compra.
Atualmente, os Programas Prodes – criado em 1988 e responsável por mostrar quanto de vegetação é perdido anualmente pelo desmatamento em todo o Brasil – e o Deter – criado em 2004 e responsável por gerar alertas de desmatamento na Amazônia e Cerrado para orientar ações de fiscalização – utilizam-se de imagens de conjunto de satélites, próprios ou de programas que disponibilizam as imagens gratuitamente. Cada satélite funciona com diferentes sensores, que possuem resolução e período de revisita distintos.
O Prodes usa imagens do satélite americano Landsat 8 (resolução de 30 metros e revisita a cada 16 dias) e dos Sino-Brasileiros CBERS 4 e CBERS-4A, construídos pelo INPE, em parceria com a China (resolução de 10 e 8 metros e revisita de 26 e 31 dias).
O Deter usa imagens do CBERS-4 e CBERS-4A (Sensor WFI, com resolução de 55 e 64 metros e revisita a cada 5 dias). A combinação dos dois satélites gera alertas a cada 3 dias. Uma das categorias de dados analisadas pelo Deter é mineração, sendo, portanto, apropriado para monitorar garimpos. Tanto o Prodes quanto o Deter fazem o monitoramento de todo o Bioma Amazônia e Cerrado, com uma cobertura de 6 milhões de km².
Em fevereiro de 2020, o INPE lançou o programa Deter Intenso , que emite alertas de desmatamento ou degradação florestal para áreas consideradas críticas na Amazônia Legal. O Deter Intenso usa imagens ópticas dos satélites CBERs-4, Landsat 8 e do europeu Sentinel 2, além de imagens do sensor radar SAR a bordo do europeu Sentinel -1, que permite detectar perda de floresta mesmo quando há concentração de nuvens. Com o Deter Intenso, são geradas imagens diárias entre 2 e 64 metros de resolução, qualidade suficiente para detectar desmatamentos maiores que 6 hectares, que correspondem a 99% da área desmatada na Amazônia.
Os dados de desmatamento do Deter e Deter Intenso são enviados diariamente para o Ibama. Além do desmatamento e queimadas, segundo site do INPE, a multiplicidade de satélites e sensores é capaz de atender a diversas outras aplicações, como nível de reservatórios, desastres naturais, expansão agrícola e desenvolvimento de cidades.
O programa Queimadas, por sua vez, faz uso de uma série de 10 satélites meteorológicos de diferentes nacionalidades, sendo o satélite de referência o Satélite Aqua, da Nasa.
No entanto, para a PF, esses produtos e serviços gerados pelo INPE não atendem a corporação com a agilidade e resoluções necessárias para as operações policiais. O contrato com a Planet prevê, entre outros produtos e serviços, o fornecimento de imagens diárias de alta resolução (menor do que 3 metros), o que, segundo a PF, é essencial para planejar e redirecionar operações.
Segundo o pesquisador Raoni Rajão, professor associado de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a geração de dados diários não é necessária para monitoramento e controle de todos os ilícitos ambientais que ocorrem no país.
“Para desmatamento, é bom ter dado diário, para poder ir lá e encontrar o infrator e apreender ou destruir os tratores usados no crime. Para todo resto, extração mineral ilegal, detecção de pista de pouso, por exemplo, eu posso ter o dado mensal, porque a pessoa que começou um garimpo ilegal, por exemplo, não vai lá desmatar e vai embora, ele vai continuar lá. Ter esse dado diário faz pouca diferença, sendo suficiente um dado semanal ou até mesmo mensal”, diz.
Em sua defesa na ação no TCU, a PF também argumenta que os programas do INPE são voltados exclusivamente para supressão de vegetação, enquanto o contrato 18/2020 é voltado para questões de segurança pública “onde o desmatamento ilegal é apenas um dos inúmeros ilícitos a serem atendidos e alertados”. Além disso, a PF afirmou que “as tecnologias e insumos utilizados e disponíveis pelo INPE (normalmente gratuitos) não permitem que o Deter Intenso evolua a ponto de atender a demanda” da PF.
Neste ponto – tecnologias e insumos utilizados pelo INPE – também reside uma forte crítica à decisão da PF pela compra das imagens da Planet. Isso porque, atualmente, os três programas de sensoriamento remoto do INPE – Deter, Prodes e Queimadas – custam aos cofres públicos R$ 3,2 milhões/ano. Para 2021, estão previstos apenas R$ 2,7 milhões para tais ações do Instituto.
Investimentos como os feitos pela PF no contrato de R$ 49,7 milhões poderiam ser direcionado ao INPE para aprimoramento e ampliação dos serviços do Instituto, argumentam especialistas, o que reduziria custos a médio e longo prazos e fortaleceria a indústria e a pesquisa espacial brasileiras.
Além dos dados do INPE, o TCU aponta que existem outras tecnologias gratuitas de monitoramento do uso do solo, como o projeto MapBiomas – rede colaborativa formada por universidades, empresas de tecnologia e do terceiro setor para o mapeamento da cobertura e uso do solo no Brasil – que disponibiliza gratuitamente produtos gerados a partir da validação dos alertas do Deter, do INPE, com uso de imagens adquiridas da Planet.
Na última semana, um novo fato somou força aos argumentos dos especialistas e do TCU. No dia 21, o governo da Noruega anunciou a assinatura de um contrato internacional com a norueguesa Kongsberg Satellite Services (KSAT), a europeia Airbus e a americana Planet para fornecimento de acesso universal e gratuito ao monitoramento por satélite das florestas tropicais no mundo, com periodicidade mensal.
Para especialistas, parte das imagens do contrato da PF são as mesmas que vão ser disponibilizadas pela Noruega, inclusive com descrição técnica similar. Procurada, a Planet garantiu que as imagens do contrato da PF são diferentes das do programa norueguês.
Experiência dos fornecedores
O objeto do contrato 18/2020 prevê, além da compra de imagens, a contratação de serviços, como alertas diários e semanais de detecção de mudanças do solo, produção de relatórios e indicadores.
Estes serviços de alerta e geração de relatórios são de responsabilidade da Santiago & Cintra Consultoria, representante legal da Planet no Brasil que recebe, processa e disponibiliza os dados espaciais da empresa americana. Segundo especialistas, o INPE tem expertise de décadas nesse tipo de serviços.
“Qual a experiência da Santiago & Cintra em fazer alertas de desmatamento e mudanças de uso da terra? Que serviços eles já ofereceram com sucesso a clientes no Brasil? Qual a experiência e qualificação científica deles”, questiona o cientista Gilberto Câmara, diretor do Grupo de Observação da Terra (GEO) – rede global de organizações governamentais, instituições acadêmicas e de pesquisa e empresas voltadas para a gestão de informações e dados relacionados à observação da Terra.
O pesquisador Raoni Rajão faz coro com Câmara: “O principal serviço que eles estão vendendo é detecção, que é uma linha de trabalho que o INPE tem desenvolvido, tem aprimorado, nos últimos 50 anos. A comunidade científica sabe da qualidade do trabalho [do INPE], porque pode ir lá, olhar a imagem original, olhar a interpretação e ver se o Instituto está detectando de maneira correta ou não. Ninguém sabe da qualidade do serviço da Planet e Santiago & Cintra porque não é um dado aberto, não foi validado, não tem um cálculo de acurácia”, diz.
A ausência de dados abertos também foi citada pelo TCU em sua ação como um impeditivo para a verificação da acurácia dos dados gerados. Segundo site do INPE, a precisão de seus programas de sensoriamento remoto é de 95%.
((o))eco questionou a Santiago & Cintra Consultoria sobre a experiência da empresa na prestação de serviços de alertas e sobre a qualificação técnica da equipe que realiza o trabalho dentro da empresa. Em resposta, a SCCON informou que “a plataforma web da Santiago & Cintra Consultoria (SCCON) fornece alertas de desmatamento desde 2016. O Projeto de Monitoramento do Estado de Mato Grosso é um exemplo de projeto operacional que utiliza, pelo segundo ano, imagens diárias da constelação de mais de 130 satélites Planet que permite a geração de alertas semanais de desmatamento e degradação da vegetação nativa de todo o Estado, ou seja: mais de 900 mil km2. Os alertas são publicados abertamente na Plataforma Web da Sccon no seguinte endereço: https://alertas.sccon.com.br/matogrosso/#/dashboard ”.
Segundo Rajão, o site informado pela Santiago & Cintra permite, de fato, visualizar um mapa com os alertas, gerados semanalmente, mas não permite baixar os dados para uma avaliação independente.
Leitura das imagens
Ler imagens de satélite não é tarefa simples, dependendo do tipo de sensor utilizado. Além disso, devido ao enorme número de imagens produzidas, é necessário o domínio de programações e uso de algoritmos que filtrem essas imagens. Especialistas questionam se a PF tem pessoal capacitado para realizar esse tipo de serviço.
De fato, os documentos que compõem o Contrato 18/2020 preveem que a contratada ensine à PF como usar a plataforma e apoie a Polícia Federal “na implementação e execução de algoritmos próprios”. “Deverá ser disponibilizada, desde o primeiro dia de vigência do contrato, plataforma de ensino à distância (EAD) que permita a plena utilização dos serviços e a configuração dos módulos e relatórios de forma a melhor atender às demandas de cada instituição”, diz estudo preliminar realizado pela PF para contratação da Planet, ao qual ((o))eco teve acesso.
O Estudo, que embasou o termo de referência do contrato, diz ainda que “deverá ser realizada, a cada 12 meses, pelo menos, uma capacitação EAD no modo presencial à distância [sic], para pelo menos 60 (sessenta) usuários especialistas no uso avançado da ferramenta, produtos e geoserviços”.
Segundo Raoni Rajão, a experiência dos profissionais na leitura e interpretação de imagens de satélite conta muito para o correto e eficiente uso de imagens de satélite. “Eu posso ter uma Ferrari, se o motorista é inexperiente, incapaz de utilizar e aproveitar, é melhor ter um fusca com um bom motorista do que uma Ferrari com mal motorista”, diz.
A contratação de imagens de satélite de alta resolução pela PF para monitoramento de ilícitos ambientais em todo território nacional está prevista no escopo do projeto Brasil M.A.I.S (Meio Ambiente Integrado e Seguro) , lançado internamente na corporação em novembro de 2019 com o objetivo de “melhorar a eficiência e eficácia do Estado na prevenção, repressão e elucidação de crimes e desastres ambientais”.
Antes da iniciativa de abrangência nacional, a PF conduziu, em 2018, um projeto piloto no Amazonas, no qual imagens de satélite de alta resolução fornecidas pela Planet foram utilizadas para monitoramento de uma área de 54.451km² (cerca de 1% da Amazônia Legal). Como resultado, a PF argumenta que “os peritos envolvidos no projeto piloto regional fomentaram ferramentas periciais que trouxeram redução inédita no tempo de produção de laudos, com resultados que chegaram a mais de 200% de eficiência”.
Em agosto de 2019, durante operação de Garantira da Lei e da Ordem (GLO) decretada pelo Executivo, a Planet disponibilizou uma licença temporária gratuita por 30 dias de cobertura de 5,2 milhões de km².
A disponibilização gratuita de imagens pela Planet é investigada pelo Ministério Público Federal do PA em ação que busca elucidar se há favorecimento e vantagens competitivas para a Planet em edital aberto pelo Ibama para contratação de imagens de satélite de alta resolução a serem usados pelo órgão no monitoramento do desmatamento. O inquérito civil que investiga o assunto ainda está em curso no MPF.
Em setembro de 2019, a Polícia Federal ampliou o projeto Brasil M.A.IS para um piloto nacional, cobrindo 181 mil km² (3,5 % da Amazônia Legal). Após os projetos pilotos, em novembro de 2019, a PF lançou internamente o Projeto Brasil M.A.I.S, com recursos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O Programa também prevê a criação de uma rede de parceiros, chamada de RedeMais, que envolveria órgãos e entidades públicas das esferas federal, estadual, distrital e municipal. Essa rede de parceiros teria acesso aos dados fornecidos pela Planet. O programa será gerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e ainda aguarda publicação de portaria ministerial para sua oficialização.
Segundo apurou ((o))eco, pesquisadores do INPE não foram sequer comunicados sobre a criação do programa Brasil M.A.I.S.
Planet no Ministério do Meio Ambiente
A Planet é a mesma empresa que o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pretendia contratar, por R$100 milhões, para criar um sistema privado de monitoramento do desmatamento em tempo real para contrapor dados dos sistemas de monitoramento do INPE, que ele considera “imprecisos”.
Desde o início de sua gestão à frente do MMA, Salles demonstrava seu interesse pelo sistema privado. Em julho de 2019, ele chegou a usar imagens da tecnologia para contrapor captações feitas pelo Deter e exibir o que seriam as “imprecisões” nas medições. Em agosto do mesmo ano, matéria do Estadão revelava que a tecnologia da Planet já estava sendo usada pelo Ibama em “teste gratuito”, o que motivou a investigação pelo MPF.
O sistema Planet é o mesmo utilizado pelo Estado do Mato Grosso e já foi testado no Pará, Estado que também se beneficiou de “testes gratuitos” de imagens da Planet entre 2017 e 2018.
Em nota a ((o))eco, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Semas-PA) informou que “após diversos testes e análises técnicas, a Semas concluiu que os atuais sistemas disponibilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), além de outras plataformas públicas utilizadas pela Secretaria, atendem à demanda de monitoramento do Estado, o que elimina a necessidade de contratação do sistema da empresa Planet”.
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O post “Brasil precisa comprar imagens privadas de satélite? Entenda a polêmica” foi publicado em 30th September 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco